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2.3 ANTECEDENTES HISTÓRICOS

2.3.1 James Goldschmidt e a Situação Jurídica Processual

Já no início do século passado, James Goldschmidt tecia críticas à concepção estática

do processo daqueles que, a exemplo de Bulow e Wach

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, pugnavam pela existência de uma

relação jurídica processual autônoma e dissociada do direito material. Na esteira de pensamento

de Goldschmidt, o processo deve ser concebido como mecanismo de produção do próprio direito

material, empregado naquelas situações de conflito de interesses em que o Estado é chamado a

decidir.

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Assim sendo, rompe com a distinção clássica entre direito material e direito

processual, instituindo uma nova categoria a que chama de direito judiciário material civil.

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Sobre os pensamentos de Bulow e Wach acerca da ação como direito autônomo, escreve Ernani Fidélis dos Santos que “ainda em meados do século passado, Oscar Von Bulow firmou, de forma definitiva, os fundamentos da relação jurídica processual, a ela atribuindo completa autonomia. Relação que envolve juiz, autor e réu, nada tem a ver com a relação de direito material qu e se discute no processo, tanto que, conforme lembrou Goldschmidt, no livro de Bulow: ‘La teoria de las excepciones dilatorias e los

pressupuestos procesales’, as exceções processuais nada tinha a ver com as dilatórias, o que, inclusive, levou o jurista a substituir

a expressão ‘exceções dilatórias’ por ‘pressupostos processuais’ (Bulow, 1961, vol.1, p.17). O abstrativismo de Bulow levou Adolf Wach a concepção inteiramente nova da ação. Fazendo referência à ação declaratória negativa, cuja procedência podia ocorrer independentemente da existência de qualquer direito, chegava à conclusão, todavia, de que a ‘ação’ só existia para dar proteção a quem efetivamente merecesse, isto é, seria ela o socorro a quem estivesse com a razão. Com fundamento no sentido protetivo, para Wach a ‘ação’ seria um direito público subjetivo, exercido perante o Estado, para que este desse ao autor proteção jurídica e contra o adversário, que teria de suportar os efeitos de uma sentença favorável. Goldschimdt traz a lembrança que Bulow e Kohler vieram, mais tarde, contestar a doutrina de Wach, já que nenhum direito poderia ser exercitado cont ra o adversário, visto que, fora do processo, não há possibilidade de existir sentença favorável. Coerentemente com sua posição, Wach afirmava que ‘existência’ não se confundia com ‘evidência’ de um direito e a existência de proteção jurídica existe antes do processo, sua evidência é que nele se revela”. Algumas considerações sobre a teoria geral do processo. Disponível em: http://www.uniube.br/institucional/publicações/unijus/ unijus_1.pdf. Acesso em: 28 dez. 2006.

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Segundo ensina Wilson Alves de Souza, “partindo da teoria do processo com o situação jurídica, sustentada por James Goldschmidt, para quem os vínculos jurídicos que nascem no processo não são propriamente relações jurídicas (consideração estática do direito), mas sim situações jurídicas (consideração dinâmica do direito), surgiu na Argentina, no que se refere à repartição do ônus da prova, a teoria denominada doutrina das cargas probatórias ‘dinâmicas’ e outra similar denominada

Em sua obra Direito Judicial Material Civil, editada em 1905, Goldschmidt defende

que as normas do ordenamento jurídico têm um caráter dúplice: “sob o prisma estático ou

material, são imperativos de conduta endereçados aos cidadãos e sob o prisma dinâmico ou

processual, constituem-se comandos ao juiz, a serem utilizados em sua atividade decisória”.

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Quando a produção do Direito não se dá por mera obediência espontânea às normas de conduta

previstas no ordenamento jurídico, é a autoridade estatal, detentora do monopólio da jurisdição,

que por meio do processo direciona a atuação dos litigantes em busca da sentença que instituirá a

norma de conduta do caso concreto. Os vínculos jurídicos entre as partes em um processo não

são propriamente relações jurídicas (consideração estática do Direito), mas sim situações

jurídicas (consideração dinâmica do Direito), isto é, situações de expectativas, esperanças sobre a

conduta jurídica que deve ser produzida por meio da sentença judicial.

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Vale dizer, o

comportamento das partes no bojo do processo não traduz uma simples relação de direitos e

deveres entre elas, mas, sim, um conjunto de situações jurídicas que podem variar de caso a caso.

Daí adveio a concepção dinâmica do ônus da prova, não como um dever de uma parte

correspondente a um direito da outra, mas sim como uma situação jurídica, um imperativo

segundo o qual cumpre a determinado litigante agir desse ou daquele modo a fim de satisfazer o

seu próprio interesse. E a depender de como se comportem no decorrer do processo, as partes

vivenciam tais situações jurídicas que vão lhes dando expectativas de vantagens ou perspectivas

de desvantagens. Segundo Isidoro Eisner, a doutrina de Goldschmidt está fundada no dinamismo

da situação processual “en virtud del cual cada uno de los litigantes se halla sujeto a estados de

expectativa, de riesgo y chances según su comportamiento activo y diligente que lo aproxima o

princípio da solidariedade ou cooperação, cujos principais mentores são Jorge W. Peyrano e Augusto M. Morello”. Op. cit., p. 244.

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“Según Roberto Goldschmidt, quizás la mejor explicación que se ha dado sobre la teoría del Derecho justicial material civil sea la de Kipp, quien señala que los preceptos de dicho Derecho ‘siguen al contenido del Derecho Privado paso a paso. Por donde quiera que el Derecho Privado imponga al particular un deber jurídico, está silenciosamente el precepto dirigido al juez de resolver cuando se le pida, de conformidad con la obligación de Derecho Privado. Cuando el deudor está obligado a cumplir con su obligación de acuerdo con el principio de la buena fe considerando el uso, el juez está obligado a condenar al deudor, com o demandado, a una prestación establecida de conformidad con esse princípio. Carece de importancia el hecho de que, unas veces el precepto de la ley se presente como un mandamiento cuyo destinatario es el órgano estatal. Lo real es que de una de las especies de mandamientos antedichas se debe derivar, sin más, los mandamientos de la otra categoría, sin que sea necesária una disposición especial para que así se proceda. Todo el Código Civil está escrito bajo el aspecto del Derecho Privado; su image n de reflejo no escrito la constituyen los preceptos correspondientes ao Derecho justicial. El Derecho justicial no es ni Derecho Privado, ni Derecho Procesal. Del Derecho Procesal resulta cómo se debe llegar al fallo, pero no cuál contenido se le debe dar a él. El Derecho Privado establece lo que el particular debe a outro particular; el Derecho justicial, como un fenómeno concomitante del Derecho Privado, determina el contenido de la sentencia judicial’”. Inés Lépori White, op. cit., nota de rodapé, p. 46.

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Maricí Giannico. A prova no Código Civil: natureza jurídica. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 148. 451

“los vínculos jurídicos que nacen de aquí entre las partes no son propiamente relaciones jurídicas (consideración estática de l Derecho), esto es no son faculdades ni deberes en el sentido de poderes sobre imperativos o mandatos sino situaciones jurídicas (consideración dinámica del Derecho) es decir, situaciones de expectativa, esperanzas de la conducta jurídica que ha de producirse y, em último término, de fallo judicial futuro; en uma palabra: expectativas, posibilidades y cargas. Sólo aquellas son derechos en sentido procesal – el mismo derecho a la tutela jurídica (acción procesal no es, desde este punto de vista, más que una expectativa jurídicamente fundada) – y las últimas, las cargas, ‘imperativos del próprio interés’, ocupan en el proceso el lugar de las obligaciones”. James Goldschmidt, op. cit., p. 108.

aleja en cada instante de una sentencia favorable”.

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E conforme o litigante vá cumprindo os

encargos que lhe dizem respeito, vão aumentando as suas possibilidades de obter êxito na

demanda.

Nesse diapasão, para Goldschmidt as normas estritamente processuais somente

seriam aquelas que orientam como o juiz deve proceder até o momento de decidir, ao passo que

as normas que estabecem como deve ser o conteúdo desta decisão (v.g. as normas sobre ônus da

prova) seriam normas de direito judicial material.

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E esta característica dinâmica por ele

concebida revela quão importante se torna a atividade processual na aplicação do Direito aos

casos concretos, importância esta que reflete não apenas o interesse particular dos litigantes mas,

também, o próprio interesse público na implementação da justiça.

Em que pese ter sido Goldschmidt o precursor da própria idéia de ônus da prova,

Jorge Peyrano e Inés White destacam que os doutrinadores se afastaram dessa concepção

dinâmica na medida em que optaram por defender a fixação de regras estáticas de distribuição

dos encargos processuais.

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Não obstante, a consideração dinâmica da atividade processual, tal

como preconizada por Goldschmidt há mais de cem anos, não foi esquecida por aqueles que,

ressaltando a ocorrência de situações nas quais se observa a insuficiência das normas rígidas da

legislação, voltaram a pugnar por soluções mais adequadas aos casos concretos, trazendo aquela

concepção inicial novamente ao palco das considerações em torno do tema da distribuição do

ônus da prova.

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Apud Beatriz S. Ruzafa, op. cit., p. 368. 453

Assim explica Inés Lepori White, sobre o pensamento de Goldschmidt: “Podría decirse que lo que caracteriza a la teoría de James Goldschmidt es que distingue netamente, por una parte, entre el concepto de derecho material, o sea derecho substancial, y el de derecho privado, y, por outra parte, distingue entre el concepto de derecho procesal y el derecho público. Hechas tales distinciones, atribuye al Derecho Procesal solamente aquellas normas que establecen cómo el juez debe proceder, pero no las que establecen cómo debe decidir. A estas últimas, dado su carácter, consideradas como normas materiales, aunque de derecho público, la teoría de Goldschmidt las agrupa bajo el nombre de derecho justicial material civil, el cual no viene a ser otra cosa que el mismo derecho privado, sólo que considerado y completado desde un punto de vista jurídico público”. Op. cit., p. 44-45. 454

Escreve Peyrano: “Ahora bien: durante un largo lapso y aun luego de haber sido plenamente incorporado al lenguaje procesal el concepto de ‘carga probatoria’, se diseñaron las reglas de la carga de la prueba como algo estático, conculcando asi, a nuestro entender, el espíritu de su primer mentor, quien siempre concibió a su teoría del proceso como una consideración dinámica de los fenómenos procedimentales. Ocurrió entonces que, adoptando una visión excesivamente estática de la cuestión, los doctrinarios ‘fijaron’ (y aquí este verbo deber ser entendido de un modo literal) las reglas de la carga de la prueba de una manera demasiada rígida, y sin miramientos, además, para las circunstancias del caso; circunstancias que, eventualmente, podrían llegar a aconsejar alguna outra solución”. La doctrina de las cargas probatorias dinâmicas y la máquina de impedir en materia jurídica, p.78. Também Inés Lépori White salienta que “se olvidó de la dinámica, elemento esencial del proceso para el creador del concepto de

carga procesal (Goldschmidt), quien de tal modo intentó tender un puente, volver a unir los hilos que se habían roto entre el

derecho substantivo y el procesal, desde la autonomía del concepto de acción. La doctrina procesal se enamoró tanto de sus obras, algunas muy buenas por cierto, que preferió verlas solas y aisladas, lejos incluso de la materia sobre la que iban a s er aplicadas y a la cual debían aprovechar. En definitiva, se olvidó de los hechos”. Op. cit., p. 64.