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1.4 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PROVAS

1.4.1 O Problema da Verdade

Já se falou que quando a aplicação do Direito envolve exclusivamente o interesse

pessoal do próprio aplicador, a regra é a liberdade de método empregado na percepção sobre os

fatos relacionados ao fenômeno jurídico. Não atingindo a esfera de direitos de outras pessoas e

não infringindo qualquer dever legal, o ato de aplicação se exaure com a conduta do agente.

Problemática se revela a questão, todavia, quando os atos de aplicação irradiam efeitos que vão

além da pessoa do aplicador, atingindo interesses de terceiros (inclusive da Administração

Pública), podendo haver, então, choques de percepções entre os envolvidos, daí decorrendo

litígios a serem dirimidos no bojo dos processos de impugnação. Surge então a necessidade de se

fazer outro exercício de percepção do fenômeno, visando um novo ato de aplicação do Direito

que, em substituição ao ato controverso, venha a dirimir o conflito.

Essa nova percepção geralmente coincide com a percepção de um dos litigantes (a ser

declarado o vencedor do litígio), em detrimento da percepção do outro (perdedor); mas não raro

pode ocorrer que a percepção deste novo aplicador seja diversa daquelas, impondo-se então uma

outra solução ao litígio, em regra intermediária dos interesses conflitantes. Nesse caso, diante das

distintas versões sobre o fato, poderá o aplicador, como escreve Dellepiane, “optar por una de

ellas o construír una tercera versíon que ponga de lado o combine las de ambos contrincantes”.

197

Em todas essas situações, restará alcançada a finalidade primordial do processo, qual seja a

eliminação jurídica do conflito e a garantia da segurança do Direito objetivo. Por outro lado,

como já enfocado, é equivocado se pensar que este procedimento complexo, a ser adotado pelo

aplicador no bojo de um processo probatório, deva alcançar um grau ideal de percepção que

venha a traduzir a verdade absoluta do fato investigado.

“Que é a verdade? Disse zombando Pilatos e não esperou pela resposta’: assim

começa Bacon começa o Ensaio sobre a Verdade”

198

, salientando o seu grau de relatividade. A

crença no alcance de uma verdade absolutamente certa e objetiva é, na expressão de Ferrajoli,

197 Op. cit., p. 10. 198

“uma ingenuidade epistemológica”.

199

Neves e Castro afirma que “a evidência filosófica é quase

uma utopia”.

200

Primeiro porque, sendo a percepção uma atividade insitamente subjetiva, seria até

mesmo difícil dizer o que seria essa tal verdade absoluta a ser descoberta. A plena

correspondência entre a verdade absoluta e a verdade possível de ser alcançada pela atividade

humana encontra obstáculos intransponíveis que, segundo Ferrajoli, podem ser resumidos sob

quatro aspectos: a) o caráter irredutivelmente provável da verdade fática; b) o caráter

inevitavelmente opinativo da verdade jurídica das teses judiciais; c) a subjetividade específica do

conhecimento pelo aplicador do Direito; d) a subjetividade de muitas fontes de prova.

201

Na via

processual, por mais que se exija que o aplicador do Direito aja com imparcialidade, jamais se

poderá dele esperar uma neutralidade, até porque muitos de seus valores pessoais estão acima

das suas forças conscientes. Em todo juízo de valor feito pelo aplicador do Direito, “sempre está

presente uma certa dose de preconceito”

202

e “esta disposição de ler a realidade sub specie juris

gera uma forma especial de incompreensão, às vezes de cegueira, a respeito dos eventos

julgados, cuja complexidade resulta por isso mesmo simplificada e distorcida”.

203

Em suma,

como bem salienta Wilson Alves de Souza, “por mais que se investigue a respeito de

determinado fato da vida humana, a verdade real dificilmente se apresentará porque a percepção

humana está sujeita a diversidade de interpretações”

204

Em segundo lugar, há de se considerar que a maioria dos conflitos envolvendo a

aplicação do Direito refere-se a fatos pretéritos e já cessados, de forma que se torna impossível,

para o aplicador, perceber diretamente, por meio de seus próprios sentidos, o fato objeto da

controvérsia, tendo então de se valer da percepção de outros fatos que conduzam à representação

daquele, “mediante una reconstrucción histórica de los elementos particulares que han

199 Op. cit., p. 52. 200 Op. cit., p. 31. 201

“Bastariam os dois limites até agora descritos – o caráter irredutivelmente provável da verdade fática e o inevitavelmente opinativo da verdade jurídica das teses judiciais – para privar a verdade processual da certeza da verdade predicável das proposições experimentais singulares. Mas há um terceiro fator de incerteza, também insuperável. Trata-se do caráter não impessoal deste investigador particular legalmente qualificado que é o juiz. Este, por mais que se esforce para ser objetivo, está sempre condicionado pelas circunstâncias ambientais nas quais atua, pelos seus sentimentos, suas inclinações, suas emoções, seus valores ético-políticos. A imagem proposta por Beccaria do juiz como ‘investigador imparcial do verdadeiro’ é, sob este aspecto, fundamentalmente ingênua. Não é uma representação descritiva, mas uma fórmula prescritiva que equivale a um conjunto de cânones deontológicos: o compromisso do juiz de não se deixar condicionar por finalidades externas à investigação do verdadeiro, a honestidade intelectual que, como em qualquer atividade de investigação, deve encerrar o interesse prévio na obtenção de uma determinada verdade, a atitude ‘imparcial’ a respeito dos interesses das partes em conflito e das distintas reconstruções e interpretações dos fatos por ela sustentadas, a independência do juízo e a ausência de preconceitos no exame e valoração crítica das provas, além dos argumentos pertinentes para a qualificação jurídica dos fatos por ele considerados provados. (...) “À subjetividade do juiz se deve somar, ademais, na investigação judicial, a subjetividade de muitas fontes de prova, por sua vez não impessoais, como os interrogatórios, os testemunhos, os reconhecimentos, as acareações, as perícias e a mesma formulação da notitia criminis nos boletins policiais, nas denúncias e nas queixas”. Op. cit., p. 58-60.

202

Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 59. 203

Idem, p. 60.

204 Ônus da prova – considerações sobre a doutrina das cargas dinâmicas. Revista jurídica dos formandos em direito da UFBA, 1999. v 6, p. 237.

concurrido a formalo”.

205

E ainda quando se trate de um fato presente ou continuado, mesmo a

percepção direta do aplicador, por seus próprios sentidos, estará inevitavelmente “contaminada”

por sua carga de valores pessoais que necessariamente interferem quando se atribui significação

ao fenômeno, além do que a falibilidade humana enseja que nem todos os aspectos juridicamente

relevantes envolvidos no fenômeno possam vir a ser percebidos pelo aplicador.

Atento à exata compreensão de como se desenvolve a atividade de aplicação do

Direito nos processos litigiosos, Hans Kelsen exemplificou que o fato de alguém haver praticado

um homicídio não constitui o pressuposto estatuído pela ordem jurídica para a aplicação de uma

sanção, mas, sim, “o fato de um órgão competente segundo a ordem jurídica ter verificado, num

processo determinado pela mesma ordem jurídica, que um indivíduo praticou um homicídio”.

206

O processo probatório trata, assim, de investigar um passado do qual, no dizer de

Lanson, “solo subsisten indicios o vestigios con ayuda de los cuales se reconstruye su idea”.

207

Por mais esforço investigativo que depreenda o aplicador do Direito, jamais conseguirá ter

acesso a todos os aspectos fáticos envolvidos no fenômeno investigado, já que “a onisciência não

é, definitivamente, um atributo do ser humano”.

208

Outrossim, razões de ordem política

recomendam que não se devam conduzir indefinidamente os processos em nome de uma suposta

investigação dos fatos tal como efetivamente ocorreram, pois isto, além de ilusório como dito,

viria a perpetuar os conflitos em detrimento da pacificação social.

Por isso mesmo, cumpre afastar, por mais nobres que possam se revelar, os anseios e

impulsos ideológicos que reputam a verdade “real” ou “absoluta” como fim do processo,

prejudicando a exata compreensão da ciência jurídica das provas. Em tempos nos quais tanto se

preconiza inadvertidamente a chamada instrumentalidade do processo

209

, torna-se importante

destacar que o fim do processo litigioso de aplicação do Direito não pode jamais ser encarado

205 Carlo Furno. Teoria de la prueba legal. Madrid: Ed.Revista de Derecho Privado, 1954, p. 13. 206

Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 257. Desta concepção de verdade no processo de aplicação do Direito (que não necessita ter correspondência com a tal verdade absoluta) vê-se ao menos a indiscutível coerência da obra de Kelsen, na medida em que sempre parte de uma idéia meramente normativa da verdade. Na teoria pura, Kelsen deixa claro o seu pensamento de que as preocupações relativas a uma desejada aproximação entre a verdade processual e a verdade absoluta devem estar situadas fora do campo jurídico. Nessa senda, a verdade que importa para o Direito é simplesmente aquel a obtida segundo o processo previsto na lei. Muitas críticas podem ser feitas ao normativismo kelseniano, mas jamais a pecha de incoerência, pois Kelsen fixou muito bem as premissas que respaldaram as suas conclusões.

207

Apud Dellepiane. Op. cit., p. 22. 208

Gladston Mamede. Op. cit., p. 126. 209

Calmon de Passos tece contundentes críticas à teoria da instrumentalidade do processo, pois, considerando que o Direito é indissociável do seu processo de produção, assevera que o processo tem caráter integrativo e não apenas instrumental. Assinala que “a relação entre o chamado direito material e o processo não é uma relação de meio-fim, instrumental, como se proclama com tanta ênfase, ultimamente, por força do prestígio de seus arautos, e sim uma relação integrativa, orgânica, substancial”.

Comentários ao Código de Processo Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998,v 3, p. 13. Reconhecendo que o devido processo

constitucional jurisdicional “não é sinônimo de formalismo”, Calmon admite se falar na instrumentalidade das formas, mas não na do processo em si. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 69.

como o alcance, a todo custo, da tal verdade absoluta

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, senão tão-somente daquela concepção

que venha, dentro dos meios possíveis e segundo os procedimentos legalmente previstos, a ser

objeto da percepção pelo novo aplicador encarregado de dirimir o conflito, isto é, a sua

representação subjetiva da verdade. Consoante salienta Carlo Furno, “el problema de la verdade

es, siempre y exclusivamente, un problema de pura índole filosófica”.

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Não diz respeito ao Direito o problema da verdade absoluta, eis que, por meio do

processo, o aplicador vai apenas buscar, dentro do possível, reconstruir histórica e criticamente

uma versão aproximada do fato controverso, jamais o próprio fato, que não mais existe. É a

verdade relativa, portanto, que interessa e é suficiente, em todos os casos, à aplicação do

Direito.

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Por outro lado, tal constatação não pode justificar a aceitação de qualquer expediente

decisório no campo jurídico, pois, na busca da adequada percepção dos fatos, o aplicador do

Direito deve se valer dos mecanismos que lhe propiciem o maior grau convicção possível. No

dizer de Alberto Xavier, “as naturais limitações na fixação da verdade não devem conduzir a

arvorar-se a simples probabilidade em princípio de decisão”.

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