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1.5 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PRESUNÇÕES

1.5.6 A Presunção Relativa e a Questão da Inversão do Ônus da Prova

Vem do Direito Romano a idéia de que o efeito imediato das presunções relativas

seria a inversão do ônus da prova, tornando desnecessária a produção de prova em derredor do

fato presumido e direcionando a atividade probatória para a verificação do fato contrário

(praesumptio relevat ab onere probandi eum cui assistit, et in adversarium probandi onus

probandi onus transfert).

Todavia, é preciso fazer algumas ressalvas quanto a esta simplória assertiva.

Em primeiro lugar – partindo a presunção de um determinado fato ocorrido (fato x),

para daí se inferir a ocorrência de um outro fato (fato y) – é preciso ao menos que se constate a

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“A distinção entre presunção e ficção existe apenas no plano pré-jurídico, enquanto serviam de elemento intelectual ao legislador que estava construindo a regra jurídica. Uma vez criada a regra jurídica, desaparece a diferenciação porque, tanto a presunção quanto a ficção, ao penetrarem no mundo jurídico por intermédio da regra jurídica, ambas entram como verdades (realidades jurídicas)”. Teoria geral de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1963, p.477. Apud Teresa Magalhães, op. cit., p. 375.

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Sistema de ciência positiva do direito, p.106. Em outra obra, Pontes de Miranda ressalta que “quando o legislador estabeleceu ficções, presunções de direito e regras sobre ônus da prova, já violentou, até certo ponto, a realidade. Seria absu rdo que enchesse de presunções de direito e ficções, criações suas, o espaço que pertence à matéria da vida, à realidade do vivido”. Comentários ao

Código de Processo Civil, p.420.

365 Op. cit., p.139. 366

efetiva ocorrência do fato x (que teria o condão de desencadear a presunção), sobretudo quando

se trate de fato cujo método de percepção impõe ao aplicador que verifique a ocorrência de

certos pressupostos específicos previstos na lei. E como a prova do fato que constitui a premissa

da presunção cabe, em regra, àquele que dela se beneficia, significa que “a inversão do ônus

probatório não é total nas presunções, pois quem invoca a presunção tem de provar o fato-base, o

indício”.

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Isso traz inegáveis implicações no que concerne à presunção de legitimidade dos atos

administrativos, que não dispensa, portanto, prova dos mínimos requisitos formais e substanciais

de existência do ato, o que a princípio deve ficar a cargo da Administração Pública.

Em segundo lugar, quando se tem em mira os efeitos probatórios da presunção

relativa, não é propriamente de inversão do ônus que se cuida. Deveras, a assertiva geral de que

com a presunção relativa (juris tantum) estar-se-ia invertendo o ônus da prova está calcada num

equívoco por parte daqueles que confundem o fenômeno processual, relativo ao encargo

probatório sobre os fatos controversos afirmados no processo, com o fenômeno material da

percepção da existência mesma destes fatos, que nada tem a ver com o processo ou com a

posição das partes neste. Melhor esclarecendo, o que a presunção relativa ocasiona é a simples

admissão de um fato como verdadeiro, se não houver prova em sentido contrário. Isto significa

apenas que, em caso de processo litigioso, aquele a quem caberia provar o fato presumido (fato

y) já o fez com a simples demonstração da ocorrência do fato-base da presunção (fato x). Não há

inversão do ônus, mas apenas uma facilitação da prova do fato constitutivo do direito invocado.

A inversão do ônus da prova, como a própria expressão indica, acontece

simplesmente quando se altera uma regra processual geral de distribuição que seria aplicável,

caso não houvesse uma outra regra específica prevendo distribuição em sentido contrário. Não é

isso, porém, o que ocorre com as presunções relativas. A existência da presunção em nada altera

a regra originária de distribuição do ônus da prova, apenas “dispensando deste o litigante a quem

interessa a admissão do fato presumido como verdadeiro, e correlativamente atribuindo-o à outra

parte (segundo a mesma regra), quanto ao fato contrário”

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, sendo que “essa atribuição

prescinde de qualquer referência à posição acaso ocupada no processo pela pessoa de que se

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Covello, A presunção em matéria civil, p. 43. Acrescenta o autor: “‘Sé para uma parte dos fatos dos quais se quer a prova – diz Coniglio – ocorre dispensa do ônus da prova, subsistindo, porém, o ônus de provar a outra metade, ou seja, os fatos em que se funda a presunção’. De igual entender, Ugo Rocco: ‘Discute-se, a este propósito, se é (a presunção juris tantum) um verdadeiro meio de prova, ou bem uma dispensa do ônus da prova, que produzirá a inversão de tal ônus. Mas é preciso obs ervar que a dispensa da carga da prova não é absoluta, senão relativa, já que o que tem a seu favor a presunção de lei juris tantum está dispensado de provar o fato alegado, que a lei presume, devendo provar, todavia, os fatos que constituem as premissas ou os pressupostos da presunção legal. Disso, pode inferir-se que a prova contrária não constitui uma inversão do ônus da prova, senão que encontra sua origem no princípio geral de que toda prova pode ser contestada por outra”. Idem.

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trata”.

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Consoante também pondera Héctor Leguisamón, a parte beneficiada pela presunção

não se encontra isenta de atividade probatória, já que deve provar os pressupostos fáticos que

fazem atuar a presunção. Nesse particular, acrescenta, o ônus da prova não se desloca para o seu

adversário, pois o que varia são apenas os fatos a serem provados.

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Ademais, ainda que se conferisse à presunção o condão de inverter a regra de

distribuição do ônus, há casos em que o ônus da prova é naturalmente afastado daquele a quem

aproveitaria a presunção, ou seja, a própria regra geral do processo já atribui de logo o encargo

da prova à parte contrária. E também aí não se poderia falar em inversão do ônus

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.

Em suma, se uma parte, a quem cabe a prova do fato y, cumpre o seu encargo

demonstrando a ocorrência do fato x (que, por presunção, levou o julgador a considerar a

ocorrência do fato y), cabe naturalmente à parte contrária a prova da ocorrência do fato z, que

elide a ocorrência do fato y. Nada de inversão houve aí. Na verdade, os efeitos da presunção

incidem no campo da avaliação da prova e não propriamente no da distribuição do encargo

probatório. É o julgador que, avaliando os fatos demonstrados segundo o quadro probatório

exposto, vai avançando nas etapas de sua percepção fática. Portanto, se de alguma “inversão” se

pode falar, não é do ônus probatório, mas sim do fato a provar: considerando provado o fato x,

tem-se por presumida a ocorrência do fato y, pelo que a atividade probatória deve então se voltar

para z. Tendo assim se desenvolvido a seqüência de percepção do aplicador, nada terá sido

modificado no tocante à regra de distribuição definidora das partes encarregadas de provar

respectivamente x, y e z.

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Idem. Acrescenta ainda Covello: “Em geral, como se sabe, o ônus da prova é distribuído precisamente em função dessa posição; quer dizer, o critério básico repousa na circunstância de ser autor ou réu, no processo, o sujeito considerado: de acordo com as regras tradicionais, se autor, caber-lhe-á provar o fato constitutivo do (suposto) direito; se réu, os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos. A presunção legal, porém, faz abstração dessa circunstância que, nas restantes hipóteses, é deci siva: a pessoa a quem a presunção desfavorece suporta o ônus de provar o contrário, independentemente de sua posição processual, nada importando o fato de ser autor ou réu”. Idem.

370

“En mi opinión, ninguna de las presunciones legales substanciales, como tampoco las presunciones jurisprudenciales, producen una inversión en la carga de la prueba, sino que el onus probandi se mantiene intacto. Lo que sucede es que varían los hechos a probar. Aquí encontramos la utilidad práctica de diferenciar si ante una presunción legal se invierte la carga de la prueba o no: determinar quién y qué debe probar. El beneficiado por una presunción legal substancial o jurisprudencial no se encuentra exento de actividad probatoria, porque la carga radica justamente en probar el o los presupuestos fácticos que hagan actuar la presunción. De lo contrario, de no cumplir con tal carga, la presunción no se aplicará”. La necesaria madurez de las cargas probatorias dinámicas. In: Jorge W. Peyrano, Cargas probatorias dinámicas. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni Editores, 2004, p. 113. 371

Ainda segundo Sérgio Covello, “não parece inteiramente exato dizer que a presunção legal (relativa) se resolve em inversão do onus probandi. Com efeito, o resultado da aplicação da regra especial (contida no dispositivo que estabelece a presunção) pode perfeitamente coincidir, em determinado caso, com o resultado que se obteria aplicando à espécie a regra geral de distribuição daquele ônus. Isto é: pode acontecer que o ônus houvesse mesmo de recair, em virtude de sua posição processual, sobre a pessoa a quem a presunção legal desaproveita. É claro que a importância da presunção legal avulta precipuamente nos casos de não-coincidência, pois nestes é que ela produz efeitos práticos apreciáveis; mas permanece válida a observação de que as presunções legais não constituem propriamente exceções à regra comum sobre distribuição do ônus da prova: as normas que as consagram são, isso sim, normas especiais, que prevalecem sobre a geral, sem necessariamente contradizê-la in concreto”. Op.

Posta a questão nestes termos, cabe salientar que, conforme será abordado

minuciosamente em tópico posterior, o princípio da presunção de legitimidade dos atos

administrativos não dispensa a Administração Pública de demonstrar o preenchimento dos

pressupostos legais de constituição do fato-base da presunção (fato x) nem implica uma

automática inversão do ônus da prova ao administrado. Cumpre verificar precipuamente se a

incidência da presunção encontra fundamento razoável no caso concreto, no sentido de servir

como mecanismo de facilitação das provas cujo encargo de produção, segundo a regra de

distribuição do ônus, sempre foi e continua sendo atribuído à Administração, e isso somente se

justifica naquelas situações em que não tenha sido possível a adoção de procedimentos

administrativos que permitissem a devida reconstrução probatória do fato x.

2 A DOUTRINA DAS CARGAS PROBATÓRIAS DINÂMICAS