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3.1 TRATAMENTO DOUTRINÁRIO

3.1.1 O Sentido Jurídico da Legitimidade Administrativa

Cumpre aqui examinar o significado jurídico que a doutrina atribui ao termo

“legitimidade” ao se falar da presunção de legitimidade no âmbito do Direito Administrativo.

Este sentido, específico para a Ciência Jurídico-Administrativa, não se confunde com aqueles

atribuídos pela Filosofia ou pela Sociologia e relacionados à legitimidade no exercício do poder.

São formas diferentes de abordagem do fenômeno, não obstante estarem inegavelmente

interligados.

Do ponto de vista filosófico, ensina Paulo Bonavides, “a legitimidade repousa no

plano das crenças pessoais, no terreno das convicções individuais de sabor ideológico, das

valorações subjetivas, dos critérios axiológicos variáveis segundo as pessoas”

487

e se funda “em

noção puramente metafísica que se venha a eleger por base do poder”.

488

Sob um prisma

sociológico, segundo Georges Vedel, “chama-se princípio de legitimidade o fundamento do

poder numa determinada sociedade, a regra em virtude da qual se julga que um poder deve ou

não ser obedecido”.

489

Tem-se aí a concepção de legitimidade que, segundo Max Weber, pode se

manifestar de variadas formas, a depender do tipo de organização social, destacando-se a

legitimação carismática, a tradicional e a legal ou racional.

490

487

Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 115. 488

Idem. 489

Introduction aux Études Politiques, Fascículo I, p. 28. Apud Paulo Bonavides, op. cit., p. 116. 490

Eis a síntese feita por Paulo Bonavides, acerca do pensamento de Weber: “Debaixo do mesmo prisma sociol ógico, Max Weber faz que a legalidade repouse sobre três formas básicas de manifestação da legitimidade: a carismática, a tradicional e a legal ou racional. Esses três tipos de poder legítimo abrangido no clássico esquema de Max Weber têm resumidamente a explicação que se segue, segundo as palavras mesmas do celebrado sociólogo. A autoridade carismática assenta sobre as ‘crenças’ havidas em profetas, sobre o ‘reconhecimento’ que pessoalmente alcançam os heróis e os demagogos, durante as guerras e as sedições, nas ruas e nas tribunas, convertendo a fé e o reconhecimento em deveres invioláveis que lhe são devidos pelos governados. O poder carismático se baseia, segundo o sociólogo, na direta lealdade pessoal dos seguidores. A autoridade

Já o significado da legitimidade, enquanto categoria jurídica aqui tratada, tem variado

conforme o paradigma epistemológico adotado no estudo do Direito. A partir de um modelo

positivista puro, de viés conceitual e mecanicista, a expressão veio sendo empregada

praticamente como sinônimo de legalidade, entendida esta como vinculação ao quanto disposto

literalmente nos textos legais.

491

Atualmente, porém, predomina na doutrina um sentido mais

amplo, como “legalidade acrescida de sua valoração”, no dizer de Bonavides, para quem a

legalidade de um regime democrático se legitima nos moldes de uma constituição e “será sempre

o poder contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com as crenças, os valores

e os princípios da ideologia dominante, no caso a ideologia democrática”.

492

Traçando um paralelo entre a legalidade e a legitimidade, Diogo de Figueiredo

Moreira Neto ressalta que “a captação política dos interesses da sociedade é imediata e define a

legitimidade, enquanto a cristalização jurídica desses interesses é mediata e define a

legalidade”.

493

Nesse prisma, a legitimidade jurídica seria algo mais do que o simples apego

literal aos textos legais, pois “a Administração está sempre duplamente vinculada, embora com

relevâncias defasadas: imediatamente, para a legalidade e mediatamente, para a legitimidade”.

494

Tem-se, pois, a legitimidade como “a conformidade do agir do Estado ao interesse público”, pelo

carismática, acrescenta Max Weber, a despeito de haver sido uma das potências mais revolucionárias da História, transformadora dos sentimentos e destinos dos povos e civilizações inteiras, conserva nas suas formas mais puras o caráter autoritário e imperativo. Já a autoridade tradicional se apóia na crença de que os ordenamentos existentes e os poderes de mando e direção comportam a virtude da santidade. O tipo mais puro, prossegue Max Weber, é o da autoridade patriarcal, onde o governante é o ‘senhor’, o governado, o ‘súdito’ e o funcionário, o ‘servidor’. Afirma o sociólogo: presta-se a obediência à pessoa por respeito, em virtude da tradição de uma dignidade pessoal que se reputa sagrada. Todo o comando se prende intrinsecamente à tradição, cuja violação brutal por parte do chefe poderá eventualmente pôr em perigo seu próprio poder, cuja legitimidade se alicerça tão- somente na crença acerca de sua santidade. A criação de um novo direito em face das normas oriundas da tradição é em princípi o impossível. Consequentemente, a direção política do meio social goza de uma solidez e estabilidade que se acha sob a dependência imediata e direta do aprofundamento da tradição na consciência coletiva. Quanto ao último tipo, o da autoridade ‘legal’, que informa toda a época do racionalismo ocidental, temos o poder fundado no estatuto, na regulamentação da autoridade. Aqui assevera Max Weber: o tipo mais puro é o da autoridade burocrática. Sua concepção fundamental se resume na postulação de que qualquer direito pode ser modificado e criado ad libitum, por elaboração voluntária, desde que essa elaboração seja formalmente correta. A obediência se presta não à pessoa, em virtude de direito próprio, mas à regra, que se reconhece competente para designar a quem e em que extensão se há de obedecer. Demais, o poder racional ou legal cria ademais em suas manifestações de legitimidade a noção de competência, o poder tradicional a de privilégio e o carismático, desconhecendo esses conceitos, dilata a legitimação até onde alcance a missão do chefe, na medida de seus atributos carismáticos pessoais, conforme observa aquele pensador”. Idem, p. 117-118.

491

Anota Florivaldo Dutra de Araújo que “em Kelsen, como na quase totalidade dos autores do Direito administrativo, a expressão ‘legitimidade’ é usada com o significado de respeito ao direito positivo, ou seja, como sinônimo de ‘legalidade’. Parece-nos necessário, contudo, fazer a devida distinção entre esses dois termos. Legal significa o que é conforme as leis estabelecidas (direito positivo). Legítimo é o que existe sobre a base de um justo título. (...) Vejam-se aí as idéias de legitimidade, justiça e eqüidade, como condicionantes da legalidade. Pois o Direito é um fenômeno social, que precisa ser visto e entendido desde relações sociais concretas, onde ele nasce e tem aplicação (...) Neste sentido, a legitimidade é um plus necessário para se alcançar a justiça social, mas cuja ausência não invalida a exigência mínima da legalidade. Mas o requisito de legalidade no comportamento da Administração não se completa, se não for referenciado pelo princípio da finalidade”. Motivação e controle

do ato administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 51-52.

492

Idem, p. 112. Acrescenta o jurista cearense que “a legalidade é a conformação do governo com as disposições de um texto constitucional precedente, ao passo que a legitimidade significa a fiel observância dos princípios da nova ordem jurídica proclamada; a legalidade será assim um conceito formal, a legitimidade, um conceito material, de maneira que, segundo essa posição, um governo de fato far-se-á eventualmente legítimo se proceder segundo as regras por ele mesmo estabelecidas, fundamentando uma nova ordem política ou constitucional (Duverger)”. Idem, p. 119.

493 Legitimidade e discricionariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p.07. 494

que “se torna um requisito legalmente exigível da ação administrativa pública e leva à invalidade

os atos que não atendam a finalidade que a expressa”.

495

Em suma, pode-se afirmar que a legitimidade administrativa consiste na legalidade

qualificada pelo interesse público. Por isso não se olvida que, no atual contexto do Estado de

Direito, a expressão, empregada para qualificar a atuação da Administração Pública, envolve

algo mais do que a simples obediência à legislação em seu sentido formal. Atuação

administrativa legítima implica obediência a todos os mandamentos do sistema jurídico, não

apenas as regras extraídas dos dispositivos escritos de determinada lei, mas, sobretudo, as

normas de natureza principiológica que dão flexibilidade ao processo de adequada aplicação do

Direito aos casos concretos. Há de se levar em conta os princípios jurídicos consagrados

expressa e implicitamente no ordenamento constitucional tais como, v.g., a moralidade

administrativa

496

, a impessoalidade

497

, a razoabilidade e a proporcionalidade.

498

Noutro giro, é perfeitamente possível se resgatar a idéia tradicional da sinonímia entre

legitimidade e legalidade, não no sentido original que restringe aquela à estrita obediência literal

495

Ib idem. O autor, com amparo na doutrina italiana, chama à atenção o fato de que as opções legítimas da Administração Pública somente podem ser aquelas que conduzam à satisfação ótima do interesse público. Escreve que para o administrador, “ao qual cabe aplicar a lei para promover os interesses públicos confiados ao Estado, a legitimidade tanto poderá estar integralmente contida na legalidade, devendo praticar atos vinculados, como apenas parcialmente nela contida, necessitando praticar atos em que lhe caberá fazer, abstrata ou concretamente, opções legítimas (Interessenvertretung, para Laun). Especificamente, no tocante à Administração, dois autores clássicos, ambos italianos, dedicaram-se ao exame dessas indagações com resultados diferentes. Resta defendeu que se a lei confia à Administração a dicção do interesse público, o faz porque está melhor aparelhada para qu e possa defini-lo otimamente in concretu: o dever da boa administração só pode levar à satisfação ótima do interesse público, o que supõe que todas as demais seriam inválidas. Alessi concebeu a vinculação com maior cautela, pois se o inimigo do bom é o ótimo, preferiu aceitar, como suficiente para a validação do ato, uma correspondência a ‘um grau mínimo de interesse público’, a que chamou de ‘legitimidade substancial’ (...) Ante o exposto, parece ter ficado claro que a legitimidade é definida pelos fins e, desde que tais fins estejam expressa ou implicitamente contidos na lei, torna-se possível traduzi-la em termos de legalidade e, assim, indiretamente, submetê-la a controle”. Idem, p. 17-19.

496

A Administração Pública deve atuar segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé, como, aliás, expressamente previsto no art. 2º, p. único, IV, da Lei n. 9.784/99. Este princípio assume grande importância quando se investigam atos da Administração formalmente legais, mas que, em sua substância, não visam o interesse público, traduzindo verdadeiro desvio de finalidade. Por outro lado, Maria Sylvia Di Pietro salienta que o direito ampliou o seu círculo para abranger matéria que antes dizia respeito apenas à moral, destacando que “o desvio de poder ou finalidade passou a ser visto como ilegalidade, sujeito, portanto, a controle judicial”. Op. cit., p. 78. Com isso, a moralidade administrativa teve o seu campo reduzido, o que não impede, diante do critério do Direito positivo brasileiro, o reconhecimento de sua existência como princípio autônomo.

497

É interpretado em dois sentidos. Primeiro, diz-se que o Administrador não pode prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, devendo praticar os seus atos sem ter em mira interesse pessoais nem de terceiros, mas sim o interesse público. Em segundo lugar, as ações da Administração não devem ser imputadas à pessoa do administrador, que apenas age por delegação do Estado e em nome do povo. Daí porque o art. 37, § 1º, da Carta Magna, assim como os arts. 18 a 21 da Lei n. 9.784/99, proíbem que conste nome, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal. Outrossim, o art.2º, p. único, III, da Lei 9784/99 impõe que a Administração busque objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou

autoridades. A publicidade das ações do governo deverá ter estritamente caráter educativo, informativo ou de orientação social.

498

O princípio da razoabilidade impõe limitações à discricionariedade administrativa, traduzindo o controle de decisões manifestamente inadequadas para alcançar a finalidade legal. Já a proporcionalidade está contida na razoabilidade; é um de seus elementos, especificamente no tocante à relação entre meios e fins. É este o seu objeto específico. Em suma, na prática de um ato administrativo, o Poder Público deverá utilizar um meio adequado (razoabilidade) e na estrita medida do necessário (proporcionalidade) para o alcance da finalidade a que se propõe. Nos termos do art. 2º, p.único, VI, da Lei n. 9.784/99, a Administração deve buscar a adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público. A doutrina costuma apontar três aspectos que compõem o princípio da proporcionalidade: a adequação (deve haver uma relação de causalidade entre meio e fim, isto é, o meio deve ser idôneo à produção do fim), necessidade (inexistência de outro meio mais suave, isto é, menos restritivo a direitos individuais) e proporcionalidade em sentido estrito (o meio deve produzir mais vantagens do que desvantagens).

ao texto legislativo, mas, sim, com o escopo de ampliar o próprio sentido da legalidade, de modo

a alcançar todos os mandamentos (regras e princípios) dispostos no sistema jurídico.

Comparando metaforicamente com o que faz um físico-matemático ao calcular a soma vetorial

de forças incidindo sobre determinado móvel, a fim de saber em que direção se dará o seu

deslocamento, deve o administrador esforçar-se para, no balizamento de sua conduta, levar em

conta todas as forças normativas existentes no sistema jurídico. Vistas as coisas deste modo, a

legalidade administrativa se traduz exatamente na busca, pela Administração Pública, da “norma

resultante” da soma de todos os vetores normativos incidentes nos casos concretos e da qual

decorra a solução juridicamente mais adequada às peculiaridades de cada situação. É isto que

torna a decisão administrativa legitimamente legal ou, se se preferir, legalmente legítima.

É nesta concepção abrangente que a vinculação da Administração Pública à

legalidade, escreve Paulo Otero, “determina que cada ato jurídico dela integrante se tenha

sempre de mostrar ‘sintonizado’ com o sistema, sabendo-se que qualquer ‘falta de sintonia’

interna se encontra condenada a ser erradicada da ordem jurídica”.

499

É assim que Renato Alessi

considera a legitimidade como a legalidade tomada em seu sentido amplo, envolvendo não

apenas o seu aspecto formal senão também o aspecto substancial.

500

Nesse mesmo diapasão,

Lúcia Vale Figueiredo acentua que “o princípio da legalidade é bem mais amplo do que a mera

sujeição do administrador à lei, pois aquele, necessariamente, deve estar submetido também ao

Direito, ao ordenamento jurídico, às normas e princípios constitucionais”.

501

Interessante observar que a evolução do que se entende por “Estado de Direito”

(conceito amplo e variável) está relacionada à própria mudança histórica dos paradigmas em

torno dos conceitos de legalidade e legitimidade, desde um modelo apenas calcado na forma, até

um modelo mais aberto que leva em conta também o conteúdo das decisões, consoante destaca

Luigi Ferrajoli.

502

Pensar-se hoje em legitimidade em termos apenas de legalidade formal

499

Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Lisboa: Almedina, 2003, p. 210. 500 “El respecto de todos estos límites constituye la condición para la legalidad (o legitimidad, en sentido amplio) de la actividad administrativa, esto es, condición para la conformidad con la ley de la referida actividad, conformidad de la que deriva la

juridicidad de esta actividad y, por lo tanto, su validez para producir efectos jurídicos. Como se ve, la conformidad con la ley,

fuente de la juridicidad y, por lo tanto, de la validez de la actividad administrativa, debe ser no solamente formal (por el respecto a las prescriciones formales de que se há hecho mención), sino también sustancial, por el respecto del límite sustancial inherente al grado de interés que debe existir en concreto para justificar el desarrollo de la actividad”. Op. cit., p. 190.

501

Op. cit., p. 42. Acrescenta ainda a jurista que “o princípio da legalidade está atrelado ao devido processo legal, em sua faceta substancial, e não formal”. Idem.

502

“Estado de direito é um daqueles conceitos amplos e genéricos que tem múltiplas e variadas ascendências na história do pensamento político: a idéia, que remonta a Platão e Aristóteles, do ‘governo das leis’ contraposto ao ‘governo dos homens’, a doutrina medieval da fundação jurídica da soberania, o pensamento político liberal sobre os limites da atividade do Estado e sobre o Estado mínimo, a doutrina jusnaturalista do respeito às liberdades fundamentais por parte do direito positivo, o constitucionalismo inglês e norte-americano, a tese da separação dos poderes, a teoria jurídica do Estado elaborada pela ciência juspublicista alemã do século passado e pelo normativismo kelseniano. Segundo uma distinção sugerida por Noberto Bobbio, isto pode querer dizer duas coisas: governo sub lege ou submetido às leis, ou governo per leges ou mediante leis gerais e abstratas. (...) Poder sub lege pode, de outra parte, ser entendido em dois sentidos diferentes: num sentido débil, ou lato, ou formal, no qual qualquer poder deve ser conferido pela lei e exercitado nas formas e com os procedimentos por ela estabelecidos; e num sentido

poderia representar um retrocesso a modelos rígidos de Estados que, apesar de haverem sido, no

aspecto sub lege, considerados “de Direito”, respaldavam-se em ordenamentos de viés totalitário.

Legitimidade jurídica, no contexto do Estado de Direito contemporâneo, de viés

nitidamente democrático, é conceito que vai muito além da mera aplicação das normas extraídas

mecanicamente dos textos escritos da legislação (legitimação formal). Decisão legítima é aquela

que, tomando o texto abstrato da lei como mero ponto de partida, deve inspirar-se em todos os

valores que emanam do sistema jurídico, mormente aqueles decorrentes dos princípios

constitucionais, de modo a se lograr a aplicação do Direito do modo mais adequado à hipótese do

caso concreto (legitimação substancial).