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3.2 PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE E EXECUTORIEDADE

3.2.1 Divergências Terminológicas

A doutrina em geral distingue a presunção de legitimidade de outro atributo dos atos

administrativos, geralmente apontado como dela decorrente, por força do qual podem ser

materialmente implementados pela própria Administração, ainda que coativamente, sem

necessidade de prévia autorização judicial. É o que se costuma chamar de executoriedade ou

auto-executoriedade, característica presente, sobretudo, nos atos afetos ao exercício do poder de

polícia administrativo.

534

Na lição de Régis Fernandes de Oliveira, “a executoriedade do ato administrativo

habilita o Poder Público a compelir, coativamente, à obediência do que nele se contém. É o que

os franceses chamam de droit préalable”.

535

Cretella Júnior, também se referindo ao privilège du

préalable ou privilège d’action d´office, assinala a estreita relação existente entre a presunção de

legitimidade e a executoriedade, como aspectos praticamente indissociáveis da ação

administrativa

536

. Jean Rivero aponta que a decisão executória se beneficia de uma “présomption

de conformité au droit”

537

.

534

“De fato, entende Hely Lopes Meirelles ser a auto-executoriedade uma das peculiaridades da polícia administrativa, salientando a impossibilidade de condicionar-se os atos de polícia a uma prévia aprovação de qualquer outro órgão ou poder estranho à Administração. Nesse mesmo sentido, preleciona Caio Tácito serem as decisões de polícia executórias por natureza, salientando ser a coação administrativa, desde que exercida de forma moderada e dentro dos parâmetros legais, um meio essencial à realização do poder de polícia”. Clovis Beznos. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 37.

535 Ato administrativo. São Paulo: RT, 1978, p. 29.

536

Escreve o jurista que “diferentemente do que sucede no âmbito do processo civil, não precisa a Administração fazer prova, de antemão, da iniciativa que vai tomar. Em princípio, tem a Administração o privilégio de fazer executar, por seus agentes credenciados, as decisões tomadas, sem basear-se em título hábil executório, expedido por um juiz. Presume-se, aliás, que os atos administrativos, exatamente por emanarem de órgãos do Estado, são legítimos. Trazem em seu bojo uma presunção de

legitimidade. A tal posição privilegiada da Administração, diante do particular, posição que lhe assegura expedir atos

administrativos auto-executáveis, costumam os autores franceses denominar de privilège du préalable ou privilège d’action

d’office. Cumpre ao administrado, funcionário ou particular, lesado em seus interesses, recorrer à Administração ou, ferido em

seus direitos, apelas, entre nós, ao Poder Judiciário, atuando, então, em qualquer dos casos, as autoridades, a posteriori, na revisão daqueles atos e ficando o ônus da prova inteiramente a cargo do prejudicado. Do ato administrativo, p. 62-63.

537

“La décision exécutoire béneficie, avant toute vérification par le juge, d’une présomption de conformité au droit. Il en découle un certain nombre de conséquences. (...) Le particuler peut faire tomber la présomption de légalité qui autorise cet effet en faisant, devant le juge, la preuve de la non-conformité de la décision au droit, normalement par le recours pour excès de pouvoir, éventuellement par le jeu de l’exception d’illégalité. (...) On désigne en général par privilège du préalable la situation ainsi faite à l’administration du fait de l’autorité qui s’attache à sa décision préalablement à toute vérification par le juge. Le doyen Vedel utilise l’expression ‘autorité de chose déciddé’, par analogie avec l’autorité de chose jugée”. Droit administratif. 5. ed. Paris: Précis Dalloz, 1971, p. 94.

Nessa concepção, portanto, a presunção de legitimidade se torna o fundamento

jurídico da executoriedade, ao passo que esta é a principal conseqüência jurídica daquela.

Todavia, conforme adverte Cassagne, persiste uma confusão terminológica acerca do tema,

sobretudo entre aqueles que buscaram inspiração na França, “donde las nociones del privilège du

préalable y de la action d’office o execution forceé no se han perfilado con nitidez”.

538

As

divergências remontam ao próprio Direito francês, no qual muitas vezes as expressões são

empregadas em sentidos distintos. Exemplificando, enquanto Rivero e Laubadére utilizam a

expressão action d’office para designar a possibilidade de execução material das medidas

administrativas (aqui chamada de executoriedade), Vedel a emprega no sentido de mera

constituição de decisões administrativas executivas, etapa anterior à execução propriamente dita,

preferindo falar, neste caso, em execution forceé.

539

Em outros países, a doutrina também não segue uma terminologia uniforme. Na

Espanha, v.g., Garcia Trevijano Fos e González Pérez valem-se da expressão decisión ejecutiva,

enquanto García Oviedo fala em ejecutoriedad.

540

Na Alemanha, cite-se Forsthoff ao mencionar

algo que, na língua espanhola, traduziu-se como coacción inmediata

541

, ao passo que Oto Mayer

fala em coacción directa.

542

Nos Estados Unidos, a faculdade que tem a Administração de

executar seus atos recebe o nome de summary powers.

543

Nos países latino-americanos, a

terminologia empregada é a mesma do Direito italiano, utilizando-se a expressão ejecutoriedad

“para hacer referencia a la ejecución coactiva del acto administrativo por parte de la

Administración pública, sin acudir a la justicia, aunque acusan marcadas diferencias respecto a

los alcances de la noción”.

544

538

El acto administrativo, p.337. O autor destaca a confusão terminológica existente entre os administrativistas franceses: “Así, entre los autores franceses contemporâneos, tanto Rivero como Labadère, han coincidido en líneas generales en que el privilegio del ‘préalable’ significa la prerrogativa con que cuenta de atenerse a su decisión sin acudir previamente al juez para obtener la comprobación judicial de su derecho habiéndose sostenido en un sentido más particular que significa la creación por vía unilateral de una nueva situación jurídica que tiene a su favor una presunción de conformidad al derecho. La ejecución de ofi cio consiste en cambio en la faculdad de ejecutar un acto administrativo por la fuerza. Por su parte, Waline designa a la acción de ofício bajo la denominación de ‘action d’office ou prèalable’ confundiendo ambas situaciones y motivando sucesivas confusiones de parte de los juristas que utilizaron esta noción sin realizar mayores indagaciones. En realidad, como lo senãla el próprio Waline, la confusión proviene de Hauriou quien es probable haya pretendido destacar que en tales supuestos la Administración prescinde de la intervención previa del juez. En cambio, Vedel se aparta de la doctrina y jurisprudencia francesas dominantes ya que designa acción de oficio a la prerrogativa de la Administración de dictar decisiones ejecutorias que en forma unilateral crean derechos y obligaciones respecto de los administrados, designando ‘execution forceé’ a la ejecución por la fuerza de una decision ejecutoria”. Idem, p. 337-338. 539 Ib idem. 540 Ib idem. 541

Tratado de derecho administrativo. 542

Derecho administrativo alemán, p.141.

543 Casagne, La ejecutoriedad del acto administrativo, p. 35-39. 544

Entre nós então, na esteira das nomenclaturas adotadas na Itália

545

, a doutrina

costuma desdobrar as prerrogativas administrativas, destacando de um lado a exigibilidade

(estabelecimento unilateral de obrigações a serem cumpridas pelos administrados) e de outro a

executoriedade (adoção de medidas materiais concretas para assegurar o efetivo cumprimento

das obrigações).

Maria Sylvia Di Pietro considera que enquanto na exigibilidade “a Administração se

utiliza de meios indiretos de coerção, como a multa ou outras penalidades administrativas

impostas em caso de descumprimento do ato”

546

, na executoriedade, “a Administração emprega

meios diretos de coerção, utilizando-se inclusive da força”

547

, razão pela qual conclui que “a

coercibilidade é indissociável da auto-executoriedade”.

548

Celso Antônio também assinala que “a

executoriedade não se confunde com a exigibilidade, pois esta não garante, só por si, a

possibilidade de coação material, de execução do ato. Assim, há atos dotados de exigibilidade

mas que não possuem executoriedade”

549

, concluindo, em suma, que “a executoriedade é um

plus em relação à exigibilidade, de tal modo que nem todos os atos exigíveis são executórios”.

550

Seabra Fagundes, por sua vez, considera que a execução coativa da vontade do Estado é feita

através de medidas que podem ser classificadas em meios diretos e indiretos de coerção

administrativa, sendo que aqueles coíbem à realização imediata da prestação em espécie,

enquanto estes apenas possuem um caráter intimidativo.

551

Registre-se, porém, haver divergências quanto a este critério que leva em conta os

meios de cumprimento do ato administrativo pelo particular para distinguir a exigibilidade

(meios indiretos) da executoriedade (meios diretos). Há autores estrangeiros que mencionam a

existência de atos administrativos cuja execução não se dá de forma coativa ou forçada,

545

Zanobini e Santi Romano falam em exigibilidade para designar o poder de exigir o cumprimento do ato administrativo e

executoriedade como sendo o poder de fazer cumprir o ato, inclusive por meio coercitivo, sem necessidade de prévia

manifestação judicial. Apud Casagne, idem, p. 37-38. 546 Op. cit., p. 194. 547 Idem. 548 Ib idem.

549 Curso de direito administrativo, p. 370. 550

Idem, p. 371. Esclarece o autor com exemplos: “a intimação para que o administrado construa calçada defronte de sua casa ou terreno não apenas impõe esta obrigação, mas é exigível porque, se o particular desatender ao mandamento, pode ser multado sem que a Administração necessite ir ao Judiciário para que lhe seja atribuído ou reconhecido o direito de multar. Ainda mais : a Administração pode construir a calçada, por conta própria, e debitar o custo desta obra ao administrado (é isto que se designa pela locução ‘execução de ofício’), igualmente sem necessidade de socorrer-se das vias judiciais para realizar esta construção. Entretanto, não pode obrigar materialmente, coativamente, o particular a realizar a construção da calçada. Nos casos de executoriedade, pelo contrário, a Administração, por si mesma, compele o administrado, como, verbi gratia, quando dissolve uma passeata, quando interdita uma fábrica, quando se apossa (caso de requisição) de bens indispensáveis ao consumo da população em caso de urgência ou calamidade pública, quando apreende medicamento cujo prazo de validade se expirou, quando destrói alimentos deteriorados postos à venda, quando interna compulsoriamente uma pessoa portadora de moléstia infecto- contagiosa em época de epidemia. (...) Sintetizando: graças à exigibilidade, a Administração pode valer-se de meios indiretos que

induzirão o administrado a atender ao comando imperativo. Graças à executoriedade, quando esta exista, a Administração pode ir

além, isto é, pode satisfazer diretamente sua pretensão jurídica compelindo materialmente o administrado, por meios próprios e sem necessidade de ordem judicial para proceder a esta compulsão. Quer-se dizer: pela exigibilidade pode-se induzir à obediência, pela executoridade pode-se compelir, constranger fisicamente”. Ib idem, p. 370-371.

551

sustentando que pode haver executoriedade mesmo sem coação. Nessa linha, Cassagne aponta os

atos administrativos de cumprimento instantâneo, como a outorga de uma permissão ou a

cassação de um alvará, que são atos cuja natureza e eficácia dispensam a adoção de medidas

materiais.

552

Afastando-se do aludido parâmetro de distinção com base nos meios de

cumprimento do ato, o jurista argentino considera poder se falar em executoriedade ainda

quando o ato precise ser previamente cumprido pelo administrado para que somente depois possa

vir a ser questionado perante a Administração ou em Juízo. É a chamada cláusula solve et

repete

553

que, nesse entendimento, constituiria uma aplicação particular do princípio da

executoriedade do ato administrativo e não propriamente um mecanismo indireto de assegurar o

cumprimento

554

. Também pensando assim, Otto Mayer salienta que a terminologia empregada

(coação direta e indireta) é muito defeituosa, pois em todos os casos de execução de ordens

administrativas está presente o elemento força empregado pelo Estado para fazer valer as suas

determinações.

555

Deixando de lado estas divergências

556

, o que importa aqui é destacar que tanto a

exigibilidade quando a executoriedade, como prerrogativas administrativas, “têm como

característica central o fato de se imporem sem necessidade de a Administração ir a Juízo”.

557

Trata-se de prerrogativas que exorbitam em muito o regime jurídico do Direito Privado

comumente aplicável à relação entre particulares

558

e que encontram razão de ser nas

552

La ejecutoriedad del acto administrativo, p. 54-55. 553

O autor menciona casos “en que el acto administrativo se cumple sin coacción aún contra la voluntad del particular, cuando ello es exigido como un presupuesto para que el administrado pueda accionar contra la Administración pública, por actos administrativos ilegítimos de aplicación o recaudación de impuestos o infracciones administrativas, regla que es conocida con el nombre de ‘solve et repete’. Idem, p. 55.

554

Registre-se que a cláusula solve et repete (pague primeiro e depois reclame a devolução), ao condicionar o exercício de direitos do administrado ao prévio pagamento de valor que é cobrado pela Administração, tem sido rechaçada por grande parte da jurisprudência brasileira em diversas situações nas quais importa em violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Noutras situações, sobretudo na seara fiscal, tem sido flexibilizada a sua aplicação, tal como ocorre no tocant e à necessidade de depósito para recurso administrativo, por haver o STF entendido, nesse caso, que a ampla defesa apenas é assegurada na primeira fase do processo administrativos, não se aplicando, nesta via, o princípio do duplo grau de jurisdição. Neste sentido, confira-se o teor dos julgamentos da ADI 1049 e do RE 210.246.

555

“La terminología es muy defectuosa. Se emplea la expressión ‘uso de la fuerza’ (Gewaltanwendung) como sinônimo de ‘coacción directa” (unmittelbarer Zwang). G. Meyer, en ‘Wörterbuch’, II, p. 262; o bien se reúnen las dos cosas en la expresión ‘coacción directa y física’ (unmittelbarer physischer Zwang): G. Meyer, V. R., I, p.68. De esta manera se pierde de vista lo que nosotros llamamos coacción directa, o bien no se habla de ella. G. Meyer, ‘Wörterbuch’, II, ps. 800 y ss. Anschütz, cn V. Arch, I, p. 461, llama en este sentido a la misma coacción directa un ‘medio de coacción’. En mi opinión, la lógica del lenguage se opone a elle. Para ver con claridad, es preciso comenzar por distinguir la ejecución por coacción y la coacción directa; ambas tienen un elemento común: el uso de la fuerza les sirve de medio”. Derecho administrativo alemán. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1982, p. 141, nota de rodapé.

556

Que parecem mais de terminologia do que de propriamente de substância, até porque em determinadas situações é difícil distinguir claramente o que seja um meio direto e um meio indireto de cumprimento das obrigações emanadas da ordem administrativa. No exemplo mencionado por Celso Antônio, a dissolução da passeata pode ser feita havendo choque da policia com os manifestantes, chegando o confronto às vias de fato, inclusive com a prisão de alguns deles. Mas pode ocorrer que a simples presença da polícia armada por si só resulte na dissolução da passeata por iniciativa (induzida) dos manifestantes. Portanto, há meios de força física que indiretamente ensejam o cumprimento do ato e que nem por isso deixam de se configurar como meios executórios. Em verdade, a linha que separa a exigibilidade da executoriedade nem sempre é nítida como se costuma assinalar.

557

Celso Antônio, Idem, p. 371-372.

558 Celso Antônio ressalva, porém, que “excepcionalmente também existe exigibilidade ou até mesmo executoriedade nas relações de Direito Privado. São casos raríssimos, contudo. Cite-se: o direito do hoteleiro de reter a bagagem do hóspede que não

peculiaridades da atuação da Administração Pública, cujos fundamentos jurídicos virão à análise

em seguida.