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1.4 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PROVAS

1.4.2 Verdade Material e Verdade Formal

Em tema de processo é clássica a dicotomia entre verdade material e verdade formal.

Registre-se, de logo, que nenhuma delas se identifica com a tal verdade “real” ou “absoluta”,

cujo problema, como enfocado no item anterior, é estranho ao campo investigativo da Ciência

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Apesar do recurso filosófico brilhantemente empregado por Calmon ao explicar o processo de produção do Direito, parece haver certo exagero nas suas críticas aos defensores da instrumentalidade do processo. Procede a ponderação feita por Maricí Giannico, ao considerar que “as críticas que se faz a essa idéia, encabeçadas primordialmente por Calmon de Passos, têm por base uma lícita preocupação com os exageros dos operadores do sistema processual que possam conduzir à inaplicabilidade de todas as regras processuais conquistadas ao longo dos anos (‘Instrumentalidade do processo e devido processo legal’, Revista de

Processo, n. 102, p. 55-67). Realmente, para aqueles que, pregando a instrumentalidade do processo, postulam algo que se

aproxime da escola do direito livre, da tirania judicial, certamente cabe tal crítica. Mas não me parece ser essa a idéia dos instrumentalistas mais equilibrados, os quais afirmam expressamente não se tratar de renúncia à autonomia do direito processual e muito menos aos princípios solidamente instalados em sua ciência e assegurados como garantias constitucionais. Pregam sim tratar-se apenas de impedir a exacerbação do formalismo no modo de empregar a técnica processual; impedir que a excessiva preocupação com os temas processuais conduza ao esquecimento da condição instrumental do processo, onde a técnica deve adequar-se ao objeto, com vistas ao resultado”. A prova no Código Civil: natureza jurídica. São Paulo: Saraiva, 2005, nota de rodapé, p. 21.

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Teoria de la prueba legal. Madrid: Ed. Revista de Derecho Privado, 1954, p. 13. 212

Daí porque doravante, ao se utilizar neste estudo a expressão verdade, a referência será sempre à verdade relativa. 213

Do lançamento: teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 134. Aduz o autor: “Reconhecer-se que a certeza é relativa – conseqüência inevitável de todo o juízo histórico – não autoriza a confundir-se verdade e verossimilhança, enquanto a primeira exclui a reserva da verdade contrária. É evidente que a convicção do órgão de aplicação do direito é suscetível de graduação e que, portanto, o grau de convicção necessário para se falar em prova há de ser o necessário para justificar a decisão de que se trata no caso concreto”. Idem.

Jurídica, devendo ficar reservado a estudos filosóficos. Toda verdade a ser descoberta por meio

de um processo probatório é contingente e histórica, portanto, relativa no sentido de tão-somente

revelar uma representação subjetiva do aplicador acerca do fato investigado, impossível que é a

apreensão total do objeto do conhecimento. Daí porque alguns processualistas optam por deixar

de lado a palavra verdade, preferindo falar em certeza ou convicção.

214

Deveras, toda representação fática feita pelo aplicador do Direito no bojo de um

processo probatório, por mais evidências que possa conter, constituirá sempre um juízo de

probabilidade, em maior ou menor grau de precisão, acerca do fenômeno investigado. Vale

dizer, o fato considerado pelo aplicador do Direito será uma mera aproximação e, ainda que

eventualmente coincida com o fato realmente acontecido no passado, dificilmente haverá como

saber ao certo se tal se verificou.

Mesmo com amparo em meio de prova considerado de alta precisão, como, por

exemplo, uma fotografia de determinado objeto, a percepção do aplicador é feita sobre aquela e

não sobre este. Pode haver algum dado referente ao objeto que, por algum motivo, não esteja

devidamente representado na fotografia (v.g., a impressão da foto não reproduz fielmente a cor

ou o ângulo da foto faz confundir sobre a largura do objeto) gerando discrepância entre a

percepção do aplicador sobre o objeto e a realidade do objeto em si. Como salienta Luigi

Ferrajoli, sempre haverá limites à verdade processual, porquanto insuscetível de verificação

experimental direta,

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razão pela qual merecem críticas as correntes doutrinárias que

mencionam a verdade material como aquela correspondente à verdade real e absoluta, ao passo

que a verdade formal seria aquela obtida indiretamente por meio de mecanismos dedutivos

legalmente previstos para a solução do processo. Para que mantenha a sua utilidade, a

classificação verdade material/formal há de ter outro sentido.

Na linha do raciocínio antes exposto, fácil constatar que os adjetivos material e

formal não podem dizer respeito à qualidade da verdade perseguida no processo, que será sempre

214 É o que faz Carlo Furno ao destacar que “lo que, objetivamente considerado, se llama verdad histórica, desde un ponto de vista subjetivo es certeza. (...) La certeza, en cambio, es un estado de conocimiento individual; es la configuración subjetiva de la verdad. Por conseguiente relativa en cuanto puede ser distinta para cada uno de los seres dotados de conocimiento. (...) no e s difícil, por conseguiente, operar ante todo sobre la terminologia, sustituyendo las expressiones ‘verdad material’ y ‘verdad formal’, respectivamente, por las de ‘certeza histórica judicial’ y ‘certeza histórica legal’. Así, pues, esta distincíon, qu e antes parecía referirse a la esencia, a la cualidad de la verdad (material, formal), pasa a designar simplemente el modo (judicial, legal) en que la certeza histórica puede ser obtenida en el proceso”. Op. cit., p. 3 e 25-26.

215

“A verdade processual, seja de fato seja de direito, não pode ser afirmada por observações diretas. A verdade processual fática é, na realidade, um tipo particular de verdade histórica, relativa a proposições que falam de fatos passados, não diretamente acessíveis como tais à experiência; enquanto a verdade processual jurídica é uma verdade que podemos chamar de

classificatória, ao referir-se à classificação ou qualificação dos fatos históricos comprovados conforme as categorias

subministradas pelo léxico jurídico e elaboradas mediante a interpretação da linguagem legal. Ainda quando tanto as proposições judiciais de fato quanto as de direito sejam teses empíricas de forma existencial ou singular, compartilham com as teses das teorias científicas a não suscetibilidade a uma verificação experimental direta, como a permitida pelas proposições empíricas de observação”. Op. cit., p. 54.

relativa. Devem servir, sim, apenas para dar destaque ao procedimento utilizado na investigação

do fato controverso. Se a investigação ocorreu mediante plena atividade probatória do aplicador,

valendo-se dos meios de prova possíveis assegurados pelo Direito para obter informações acerca

do fato investigado, atribuindo-lhes significação segundo a sua própria percepção, diz-se que se

trata aí de verdade material. Neste caso, tem-se que o legislador optou por assegurar certa

amplitude de investigação, prestigiando a percepção do aplicador no caso concreto. Se,

entrementes, a solução do processo se deu não em decorrência da percepção e significação

atribuída pelo aplicador às informações colhidas no processo, mas simplesmente a partir de

considerações previamente feitas pelo legislador acerca delas, diz-se que se está diante de uma

verdade formal. Aqui o legislador optou por criar mecanismos simplificados de descoberta da

verdade, antecipando, em caráter geral e abstrato, a valoração e a significação a serem atribuídas

às informações colhidas, obstando, com isso, que o aplicador pudesse exercer amplamente a sua

própria percepção.

Quando o sistema jurídico estabelece mecanismos de verdade formal, o que se vê são

normas sobre a própria formação da verdade (determinação formal dos fatos), ou seja, aquela

verdade normativa que para Kelsen seria a única verdade importante para o Direito. Ferrajoli

encontra nesta verdade normativa um tríplice sentido: “a) uma vez comprovada definitivamente,

tem valor normativo; b) está convalidada por normas; c) é verdade na medida em que seja

buscada e conseguida mediante o respeito às normas”.

216

Destaca, assim, que tal verdade formal

apenas obedece a requisitos de coerência e aceitabilidade justificada por razões práticas que, sob

um juízo argumentativo de mera aproximação, a tornam correspondente à verdade objetiva.

217

Carnelutti tece críticas à classificação qualitativa da verdade, asseverando que, sob

este aspecto, a distinção entre verdade material e verdade formal seria uma metáfora, porquanto

“em substância, a verdade não pode ser mais que uma, de tal maneira que, ou a verdade formal

216

Op. cit., p. 62. 217

“As teorias científicas – segundo a representação subministrada que delas se faz desde o começo do século por Poincaré, Le Roy e Duhem e coletada e desenvolvida sucessivamente pelas diversas correntes do neopositivismo e do pragmatismo – não são mais do que sistemas de proposições dotados de coerência lógica, baseados sobre axiomas estipulados convencionalmente em função de sua simplicidade e comodidade e mais ou menos justificados e contigentemente aceitáveis em conjunto como verdadeiros, em vista de suas aplicações e conseqüências práticas. (...) Precisamente, a coerência é o critério que implica considerar falsa uma proposição se estiver em contradição com outra reputada verdadeira ou se é derivável desta outra reputada falsa, e considerá-la verdadeira se é derivada de outra considerada verdadeira ou se estiver em contradição com outra considerada falsa. A aceitabilidade justificada é o critério que permite reputar verdadeira uma proposição preferentemente a outra, quando, de acordo com outras aceitas como verdadeiras, resulte dotada de maior alcance empírico, como conclusão de uma inferência indutiva ou como premissa de uma inferência dedutiva (...) o significado de ‘correspondência’, associado ao termo ‘verdadeiro’, nada afirma acerca dos critérios de verdade, ou seja, das condições de aceitação da verdade numa proposição. Acrescento agora que nem o critério da ‘coerência’ nem o da ‘aceitabilidade justificada’ expressam de algum modo o significado de ‘verdade’, ou seja, as condições de uso do termo ‘verdadeiro’. (...). A coerência e a aceitabilidade justificada são, em suma, os critérios subjetivos pelos quais o juiz avalia e decide acerca da verdade ou da confiabilidade das premissas probatórias da indução do fato e das premissas interpretativas de sua qualificação jurídica. Mas o único significado da palavra ‘verdadeiro’ – como das palavras ‘confiável’, ‘provável’, ‘verossímil’, ‘plausível’ ou similares – é a correspondência mais ou menos argumentada e aproximativa das proposições para com a realidade objetiva, a qual no processo vem constituída pelos fatos julgados e pelas normas aplicadas”.

ou a jurídica coincide com a verdade material, e não é mais que verdade, ou discrepa dela, e não

é senão uma não verdade”.

218

Nesse prisma, o jurista italiano se utiliza da classificação no

mesmo sentido aqui referido, ou seja, tendo em vista tão-somente o método como se desenvolve

o procedimento de investigação no processo litigioso. Com isso, aponta distinções entre os

procedimentos em que existe a liberdade de investigação para conhecimento dos fatos pelo

aplicador (verdade material) e aqueles procedimentos de determinação formal dos fatos,

acrescentando que basta um limite mínimo à liberdade de percepção do aplicador para que o

processo degenere em processo formal de determinação

219

.

Dellepiane considera que nos procedimentos em que se contempla a verdade formal,

o aplicador, diante de certas condições verificadas, “debe necessariamente admitir como

verdadero lo que, según la ley, está por ellas demonstrado”.

220

Ressalta que estes procedimentos

encontraram o seu apogeu no final do século XVIII, passando a decair diante das críticas

filosóficas em repúdio aos mecanismos formais de determinação da verdade jurídica, sendo que

a tendência atual em todas as legislações é atribuir liberdade ao aplicador na apreciação do valor

das provas produzidas no processo.

221

Cumpre reconhecer que os mecanismos de determinação formal da verdade são

realmente necessários ao Direito, de modo a impedir indesejadas situações de incerteza

geradoras de insegurança social. Contudo, deve-se ter cuidado no emprego desmedido de tais

institutos formais, em detrimento de um maior (e possível) grau de certeza na aproximação da

verdade. No campo do Direito Penal, Luigi Ferrajoli tem criticado “numerosas normas e

mecanismos processuais que entorpecem inutilmente a busca da verdade”.

222

E no que concerne

especificamente ao objeto deste estudo, será visto que a chamada presunção de legitimidade dos

atos administrativos nada mais é do que um desses mecanismos cujo emprego desmedido pode

significar a institucionalização do arbítrio na atividade da Administração Pública.

218 Op. cit., p. 48. 219 Idem, p. 52. 220 Op. cit., p. 31-32. 221 Idem. 222

Op. cit., p. 63. Acrescenta o jurista: “Normas deste tipo chegaram ao seu máximo desenvolvimento nos velhos regimes inquisitivos, que inventaram uma multiplicidade de formalidades, dilações, intrigas e labirintos, cujo único efe ito foi o de tornar complicada a simples máquina dos juízos públicos, até o ponto de a história do procedimento penal parecer a Bentham o contrário do das demais ciências: nas ciências se vão simplificando cada vez mais os procedimentos acerca do passado; na jurisprudência, ao contrário, se vão complicando cada vez mais. Enquanto todas as artes progridem multiplicando os resultados com o emprego de meios mais reduzidos, a jurisprudência retrocede, multiplicando os meios e reduzindo os resultados. Hoje, em relação ao processo pré-moderno, esse percurso inverteu-se. Mas ainda são muitos, como veremos, os impedimentos processuais que obstaculizam ou atrasam inutilmente a investigação judicial e sua possibilidade de controle, afastando-a da consecução da verdade em vez de dela se aproximar”. Idem.