Poder-se-ia inadvertidamente pensar que tudo quanto dito aqui sobre as cargas
probatórias dinâmicas não encontraria espaço no Direito brasileiro, haja vista o rigor da fórmula
prevista no art. 333 do nosso Código de Processo Civil. Ledo engano, porém. Em que pese a
regra de distribuição chiovendiana adotada pelo CPC – que atribui ao autor o ônus dos fatos
constitutivos e ao réu o ônus dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos –, não há
qualquer obstáculo à adoção entre nós, subsidiariamente, dos critérios de distribuição dinâmica
do ônus da prova.
De logo podem ser invocados diversos princípios constitucionais consagradores de
direitos e garantias, tais como a ampla defesa e o contraditório (que recomendam não apenas a
adoção dos mecanismos formais de julgamento, mas, sobretudo, o esforço adequado para a
maior aproximação possível da verdade); a igualdade (de modo a assegurar às partes iguais
possibilidades de vencer a demanda) e a dignidade da pessoa humana (que, dentre outros
aspectos, traduz-se na garantia de que todo homem possa demonstrar a verdade das suas
alegações e, com isso, buscar a concretização dos seus direitos).
Couture já bem assinalou que “la ley que haga imposible la prueba, es tan
inconstitucional como la ley que haga imposible la defensa”.
468Da mesma forma, um ato
jurisdicional ou administrativo que, no caso concreto, obste ou inviabilize a produção de provas,
configura-se como inconstitucional cerceamento de defesa. Some-se a isso a própria garantia
constitucional de acesso à justiça, entendida não apenas como acesso às instâncias judiciárias,
mas, sim, à tutela jurídica eficaz e eqüânime, somente possível se esgotados todos os meios
possíveis de produção de provas sobre os fatos alegados pelos litigantes. No dizer de Jesús
González Pérez, “la actividad probatoria no deja de estar afectada y protegida dentro del derecho
a la tutela judicial efectiva”.
469No âmbito da legislação ordinária, há quem entenda, como faz César Machado
Júnior, que a concepção de que se deve atribuir o ônus da prova ao litigante que tenha melhores
condições de provar o fato controvertido já encontra previsão no Direito brasileiro a partir do
468 Apud Jorge Kielmanovich, op. cit., p. 98. 469
art.6, VIII, do Código de Defesa do Consumidor
470, que assim dispõe: “a facilitação da defesa de
seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando,
a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiência”. Também Ruy Rosado de Aguiar Júnior identifica o princípio da carga
dinâmica da prova como norma extraída do aludido art.6º, VIII, a ser aplicada naquelas situações
em que se impõe a facilitação da defesa dos direitos do consumidor, segundo as regras de
experiência do aplicador.
471Para Wilson Alves de Souza, porém, justamente porque este dispositivo já é expresso
no tocante à atribuição do ônus da prova em favor da parte em piores condições de provar, “não
faz sentido a incidência da teoria das cargas probatórias dinâmicas, dada a amplitude da
legislação brasileira (Lei n. 8078, de 11.09.90) quanto à definição de relação de consumo e de
norma expressa invertendo o ônus da prova, a critério do juiz”.
472Por isso prefere invocar a
doutrina em relação ao Direito comum, considerando que, partindo-se de uma interpretação
sistemática, “não se pode ver empecilho na aplicação da teoria das cargas probatórias dinâmicas
e do princípio da solidariedade no direito brasileiro”.
473Reforça sua conclusão nos princípios da
lealdade, boa-fé e dever de veracidade
474, na dignidade da Justiça
475, no princípio da igualdade
470
“Esse princípio da aptidão para a prova está expresso no art. 6º, inc. VIII, do CDC (...). Esse dispositivo é plenamente aplicável ao direito processual do trabalho, pelos permissivos dos arts. 8º, parágrafo único, e 769, ambos da CLT. (...) A hipossuficiência do art.6º, citado, certamente não se resume a uma questão econômica ou financeira, mas se refere a uma questão probatória. Ou seja, quando o empregado tiver grande dificuldade na produção da prova e, concomitantemente, o empregador disponha de maiores meios de realizá-la, este terá o encargo de demonstrar o fato. Já tivemos ocasião de aplicar semelhante regra no julgamento de uma ação trabalhista movida por um professor da rede particular de ensino contra sua ex-empregadora, uma escola de curso pré-vestibular, quando se discutia o número de alunos em cada sala de aula onde eram ministradas as aulas, já que existia previsão em convenção coletiva de um adicional ao salário, dependendo da quantidade de alunos. Ora, detendo, no caso citado, a empregadora toda a documentação referente aos seus alunos matriculados, muito mais apta a produzir a prova requerida, não só pelos diários de classe, como por outros documentos, como pagamentos de mensalidades etc., e, em sendo assim, da empregadora o ônus processual de demonstrar fato controvertido, embora o fato pudesse ser rotulado como constitutivo ao direito pleiteado (CPC, art. 333, inc. I)” Op. cit., p. 145-147.
471
“A facilitação da defesa dos direitos do consumidor é assegurada inclusive com a inversão do ônus da prova, quando, a critério do juiz, for verossímil a sua alegação ou for ele hipossuficiente, segundo as regras de experiência (art.6º, VIII). O preceito é importante porque um dos instrumentos mais comuns usados em juízo para negar os direitos subjetivos é invocar as regras sobre a prova, para exigir formalidades, impor restrições à sua apuração, criar critérios de valoração etc., tudo com o f im de obstaculizar a aplicação da norma que consagra o direito material. Ademais, pode ser impossível ou muito difícil ao consumidor fazer a prova do fato, mas inversamente fácil ao fornecedor, daí porque deve recair sobre este, que dispõe de condições para esclarecer os fatos, o dever de prová-los. É a aplicação do princípio da carga dinâmica da prova”. O acesso do
consumidor à justiça no Brasil. In: Revista de Direito do Consumidor, n. 16, out./dez. 1995, p. 22-28.
472 Op. cit., p. 255. 473
Idem. 474
“Com efeito, vê-se que o Código de Processo Civil brasileiro adota expressamente os princípios da lealdade, boa-fé e dever de veracidade ao estabelecer que as partes e seus procuradores têm os seguintes deveres: ‘expor os fatos em juízo conforme a verdade; proceder com lealdade e boa-fé; não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito’ (art. 14). Assim também ao determinar a punição, inclusive de ofício, do litigante de má-fé, qualificando como tal, dentre outras situações, aquele que ‘alterar a verdade dos fatos’ (arts. 16 a 18). De outro lado, tal Código impõe ao autor o ônus da afirmação, exigindo que da inicial conste ‘o fato e os fundamentos jurídicos do pedido’, bem assim o dever de indicar ‘as provas com que pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados’ (art. 282, III e VI), o mesmo ocorrendo com o réu, que deve na contestação ‘alegar toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito, com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir’ (...) Assim, a conduta omissiva de qualquer das partes no que se refere às afirmações e às provas devem ser enquadradas como violadoras dos princípios de veracidade, boa-fé e lealdade, o que pode permitir ao juiz, tendo em vista as circunstâncias do caso, perceber se a parte que, à luz da letra isolada do art. 333, não teria o ônus da provar, escondeu provas que poderia produzir, e assim inverter tal regra”. Ib idem, p. 255-256.
de tratamento às partes
476, bem como no dever de colaboração com o Poder Judiciário para o
descobrimento da verdade
477, tudo isso expressamente contemplado em nosso diploma
processual civil.
Outrossim, calcando-se na orientação do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil
(Decreto-lei n. 4.657, de 04.09.42), segundo a qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins
sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”, Wilson Alves assevera que a
adequada aplicação da doutrina das cargas probatórias dinâmicas no Direito brasileiro “é, mais
do que possível, necessária, na medida em que o fim social da norma processual está, em última
análise, em se fazer justiça, e o primeiro passo para que se possa fazer justiça está no
descobrimento da verdade dos fatos expostos no processo”.
478No tocante à jurisprudência
brasileira, aponta que, em 1999, apesar de ainda não haver precedentes com menção expressa às
teorias das cargas probatórias dinâmicas e do princípio da solidariedade,
479já se podia encontrar
alguns julgados flexibilizando a aplicação da fórmula estática do art. 333 do CPC.
480Hoje, já são inúmeros os precedentes fundamentados na distribuição dinâmica do
ônus da prova. Destaquem-se algumas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no
sentido de que, por “aplicação do princípio da carga dinâmica da prova, está incumbida a parte
475
“quem deliberadamente omite fatos ou provas, certamente porque tal conduta lhe prejudicaria e beneficiaria o adversário, não colabora para a descoberta da verdade e procura enganar o Estado-juiz, que sem a verdade dos fatos fará um julgamento injusto, de modo que tal ato omissivo é contrário à dignidade da Justiça, o que deve ser reprimido pelo juiz (art. 125, III)”. Ib idem, p. 256.
476
“Está também expresso no CPC o princípio da igualdade quando se exige do juiz assegurar às partes igualdade de tratamento (art. 125, I). Não se perca de vista, como gizado acima, que inverter o ônus da prova em favor do que está em desvantagem para impor tal carga àquele que está em melhores condições de provar é a verdadeira aplicação do princípio da igualdade (tratar os desiguais desigualmente para assegurar a igualdade real), ocorrendo a sua não aplicação com a insi stência em aplicar o art. 333, mesmo ante tais manifestas circunstâncias”. Ib idem.
477
“O princípio da solidariedade e colaboração com o órgão judiciário também está consagrado expressa e claramente no CPC brasileiro como dever jurídico imposto a todos, ao dispor que ‘ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade’ (art. 339; grifei). Evidentemente que a expressão ninguém não exclui as partes, de modo que a conduta omissiva no sentido de esconder provas que poderia produzir é violação de tal dever. E para que não paire dúvida quanto a tal raciocínio, o Código põe como dever das partes, ‘além dos descritos no art.14: comparecer em juízo respondendo ao que lhe for interrogado; submeter-se à inspeção judicial que for julgada necessária; praticar ato que lhe for determinado (art.340). Mas o Código diz mais. Dispõe que o juiz tem o poder de ex officio, ‘em qualquer estado do processo, determinar o comparecimento pessoal das partes, a fim de interrogá-las sobre os fatos da causa’ (art. 342). E se ‘a parte, sem motivo justificado deixar de responder ao que lhe for perguntado, ou empregar evasivas, o juiz, apreciando as demais circunstâncias e elementos de prova, declarará, na sentença, se houve recusa de depor” (art. 345). Ainda quanto ao princípio da colaboração, expressa, ademais, o CPC brasileiro que ‘o juiz pode ordenar que a parte exiba documento ou coisa que se ache em seu poder’ (art. 355)”. Ib idem, p. 256- 257.
478
Ib idem, p. 257. 479
O seu artigo foi publicado na Revista Jurídica dos Formandos em Direito da UFBA, no segundo semestre do ano de 1999. 480
“Na jurisprudência brasileira, embora não se possa falar em clara adesão às teorias em comentário, é possível, no entanto, encontrar acórdãos rejeitando a aplicação rígida do art.333, tendo em vista as peculiaridades do caso. A 2ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por exemplo, decidiu em acórdão de 25.02.82, Rel. Des. Nélson Martins Ferreira, que: ‘O princípio de que ao autor incumbe a prova não é derrogado em matéria de responsabilidade civil, mas recebe, nesse domínio, em lugar do seu aparente sentido absoluto, uma significação especial, que, por atenção a outra norma, reus excipiendo fit actor, vem a ser esta: ‘Aquele que alega um fato contrário à situação adquirida do adversário é obrigado a estabelecer-lhe a realidade’. Quando a situação normal, adquirida, é a ausência de culpa, o autor não pode escapar à obrigação de provar toda vez que fundadamente, consiga o réu invocá-la. Mas, ao contrário, pelas circunstâncias peculiares à causa outra é a situação normal que faça crer na culpa do réu já aqui se invertem papéis: é ao responsável que incumbe mostrar que, contra essa aparência, que faz surgir a presunção em favor da vítima, não ocorreu culpa de sua parte”. Ib idem, nota de rodapé, p.257.
que maior facilidade tem de produzi-la em juízo”
481, pelo que “a parte que detém os documentos
necessários à apreciação do feito deverá trazê-los ao processo”
482. Ainda nessa linha, “a
instituição financeira está obrigada à exibição do contrato celebrado entre as partes pela
observância ao princípio da carga dinâmica da prova”.
483No Tribunal de Justiça do Paraná também já se acolheu “o princípio da carga
dinâmica da prova, que transfere o dever de informar o juízo para aquele que tem melhores
condições e, muitas vezes, a única possibilidade de fornecer os elementos esclarecedores do
fato”.
484Na mesma oportunidade, o Tribunal ratificou sentença na qual ficou assentado que “a
‘Teoria da Carga Dinâmica das Provas’ consiste em nítida aplicação do princípio da boa-fé no
campo probatório”.
485Num caso em que se discutiu a responsabilidade da clínica e do médico que atendeu
paciente submetido a uma operação cirúrgica da qual resultou a secção da medula, o Superior
Tribunal de Justiça decidiu que “não viola regra sobre a prova o acórdão que, além de aceitar
implicitamente o princípio da carga dinâmica da prova, examina o conjunto probatório e conclui
pela comprovação da culpa dos réus”.
486Em suma, calcando-se nestes fundamentos já consagrados pela doutrina e
jurisprudência pátrias, podemos concluir que a doutrina das cargas probatórias dinâmicas
comporta perfeita aplicação no Direito positivo brasileiro, em qualquer campo material,
basicamente pelas seguintes razões: a) constitui decorrência dos princípios constitucionais que
consagram direitos e garantias fundamentais, v.g. a ampla defesa e o contraditório, a igualdade e
a dignidade da pessoa humana, bem como o acesso à justiça; b) em que pese a regra rígida do art.
333 do Código de Processo Civil, pode ser extraída supletivamente a partir de uma interpretação
sistemática de outras normas do mesmo diploma, notadamente aquelas dispostas nos seus artigos
14, 16 a 18, 125, 282, 339, 340, 345 e 355; c) encontra eco na regra do art. 6º, VIII, da Lei
8078/90 (Código de Defesa do Consumidor), que faculta ao juiz a inversão do ônus nos casos em
que, segundo as regras de experiência, torne-se necessário facilitar a prova que pelos critérios
tradicionais ficaria a cargo do consumidor; d) está em consonância com o vetor axiológico do
art. 5º do Decreto-lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução ao Código Civil) que orienta a aplicação da
lei em atendimento aos fins sociais e ao bem comum.
481
AGI n. 70003136942, Rel. Des. Marco Aurélio de Oliveira Canosa. Julgado em 26.02.2002. 482
AC n. 7000269639, Rel. Des. Roque Miguel Frank. Julgado em 05.04.2000. 483
AC n. 70011092467, Rel. Des. Isabel de Borba Lucas. Julgado em 25.08.2005. 484
Acórdão n. 25138, Rel. Des. Troiano Netto. Julgado em 15.02.2005.
485 Agravo de Instrumento n. 165627-1, Rel. Des. Troiano Neto. Julgado em 15.02.2005. 486