• Nenhum resultado encontrado

1.5 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PRESUNÇÕES

1.5.2 Importância das Presunções no Direito

Sendo um método de raciocínio comumente empregado em qualquer pesquisa

científica, a presunção encontra, na seara do Direito, uma utilidade peculiar de facilitação da

prova em situações peculiares nas quais não se torna possível ou seria extremamente difícil a

produção de provas que viabilizassem a percepção do fenômeno jurídico. É justamente a

necessidade de se buscar uma solução jurídica para tais situações que faz com que o aplicador se

valha de presunções.

Nessa senda, Jorge Kielmanovich destaca o emprego de presunções nos casos em que

“el conocimiento de los hechos que interesan a la litis no puede alcanzarse a través de un medio

de prueba que los constate por sí mismos”.

323

Gennaro Pistolese, atribuindo às presunções a

função de viabilizar a chamada prova prima facie, também ressalta a sua aplicação nos casos em

sentido amplo compreende qualquer forma de determinação de fato controvertido (mediante os processos determinados pela lei)

e, portanto, também a presunção; prova em sentido estrito se refere às formas de determinação dos fatos controvertidos (não percebidos pelo juiz), mediante fatos constituídos pela representação daqueles, e se distingue da presunção, como forma de determinação dos fatos controvertidos (não percebidos pelo juiz), mediante fatos não constituídos pela representação daqueles”.

Op. cit., p. 122.

321

As presunções e a prova. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 57. Aduz Barbosa Moreira que “quando o juiz passa da premissa à conclusão, através do raciocínio, ‘se ocorreu x, deve ter ocorrido y, nada de novo surge no plano material, concreto, sensível: a novidade emerge exclusivamente em nível intelectual, in mente iudicis. Seria de todo impróprio dizer que, nesse momento, se adquire mais uma prova: o que se adquire é um novo conhecimento, coisa bem diferente”. Idem. 322

Regras processuais no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 37. Para Didier, “exatamente por não se tratar de meio de prova, não é admissível venha a lei a regular-lhe a aplicabilidade, pois, sendo um mecanismo da inteligência do magistrado, torna-se supérflua a regra de lei que autorize ou proíba o juiz de pensar”. Idem.

323

que há uma dificuldade absoluta de se provar as circunstâncias.

324

Jerzy Wróblewski, por sua

vez, ressalta que nestas situações em que a prova é extremamente difícil, o legislador, por razões

ideológicas, vale-se desta técnica a fim de evitar que o juiz deixe de decidir o caso por falta de

provas. A técnica da presunção contribui, deste modo, para a certeza do Direito, fornecendo as

bases para que se possa prever que a decisão será tomada e qual será o seu teor.

325

Na mesma linha de pensamento, Cândido Dinamarco alude a situações nas quais,

havendo certo grau de dificuldade no alcance da prova, “a lei ou o juiz facilita a demonstração

do fato relevante, satisfazendo-se com a prova daquele que é mais fácil provar e assim

dispensando a prova direta do fato que realmente interessa para o julgamento da causa.”

326

Covello assinala a utilidade da presunção quando se tem “um fato desconhecido, difícil de ser

provado por meios diretos”.

327

Daí inferir que “são duas as principais razões de ser da presunção:

1ª) a dificuldade de provar certos fatos por via direta; 2ª) a estabilidade e a economia na

aplicação do direito”.

328

Como exemplo de simplificação de prova por meio de presunções legais, cita-se o

instituto da comoriência previsto na legislação civil

329

, segundo o qual se duas ou mais pessoas

vêm a falecer em um mesmo evento (v.g. acidente, catástrofe etc.), sem que se possa verificar ao

certo quem primeiro faleceu, presume-se que o falecimento tenha sido simultâneo, o que tem

grande relevância em matéria de sucessões.

324

“La prova prima facie (o prova della prima apparenza, Beweis des ersten Auschein) è quella che facilita la formazione del convicimento giudiziale, permettendo di trarre la prova necessaria dai principî pratici della vita e dall’esperienza di ciò che generalmente avviene secondo il normale andamento delle cose. (...) l’intituto della prova p. f. va applicato in quei casi nei quali, secondo la precedente giurisprudenza, era respinta la domanda di risarcimento di danni, per la difficoltà assoluta di provare circostanze, che, pur essendo evidenti, sfuggivano per la loro natura ad ogni controllo probatório. (...) La prova p. f. è quindi con l’esperienza in um rapporto di stretta dipendenza, in quanto è proprio quest’ultima che, formando il convincimiento del giudice, fará sorgere la presunzione che le darà origine. (...) Lo scopo principalle, secondo la dottrina tedesca dominante, non è infatti quello dei comuni mezzi istruttorî, di raggiungere cioè in modo per quanto più è possibile definitivo la prova necessaria, ma è quello più limitato di permettere al magistrato di non respingere una domanda, che per ragioni particolari è difficile provare, quando la esperienza insegna che essa è fondata”. La prova civile per presunzioni e le c. d. massime di esperienza. Padova: Casa Editrice Dott. Antonio Millani, 1935, p. 11-15.

325

“La Cour, suivant la présomption, sait ce qu’elle doit reconnaître dans les situacions où la preuve est extrêmement diffícile. On évite, par ce moyen technique, les décisions négatives, quand la Cour doit refuser les cas pour manque de preuve. Le législateur estime négativement les décisions de ce genre comme contraires aux valeurs idéologiques. L’incertitude concernant la vie d’une persone, la filiation d’un enfant, la culpabilité de quelqu’un est évaluée négativement. Les valeurs techiniques sont donc instrumentales pour les valeurs idéologiques. Elles contribuent a la certitude et à la sùrete du droit. Elles donnent des bases pour prévoir que la décision sera prise et, si l’on posséde les informations suffisantes, quelle sera sa teneur”. In: Chain Perelman e P. Foriers. Les présomptions et les fictions en droit. Bruxelles: Établissements Émile Bruylant, 1974, p. 58.

326

Instituições de direito processual civil, p. 114. 327

Presunção jurídica, op. cit., p. 411. 328

Idem, p. 412. Aduz o autor: “Com efeito, é facilmente demonstrável que se o instituto da presunção, o direito seria ainda mais complexo e difícil de integrar-se na realidade fática, pois, como já foi dito, a presunção nasceu da necessidade de o magistrado resolver casos práticos à vista da inexistência ou da dificuldade de prova direta em determinadas circunstâncias”. Idem.

329 Dispõe o art. 8º do Código Civil brasileiro (Lei n. 10.406/2002): “Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”.

O legislador, “tendo por fim evitar um conceito pouco maleável ou insuficiente,

coloca em seu lugar um conceito aproximativo, porém mais cômodo, mais maleável”.

330

Segue o

mesmo raciocínio Pontes de Miranda ao considerar que “à base das presunções legais está o

julgamento sobre fatos que não se podem conhecer facilmente, ou que de ordinário escapam à

investigação”.

331

Por conseguinte, “a presunção legal toma alguns elementos, fáceis de prova, e

tem-nos como suficientes para que se considerem acontecidos, ou não acontecidos, outros

elementos”.

332

Também Maria Helena Diniz assinala que a falta de conhecimentos empíricos é

de certa forma “remediável pelas presunções legais, que permitem ao órgão jurisdicional suprir

sua falta de conhecimento dos fatos e atuar como se conhecesse todas as circunstâncias

relevantes do caso”

333

.

Vê-se que, por ser um mecanismo formal de facilitação na aplicação do Direito em

casos concretos, a presunção prestigia mais a segurança jurídica do que propriamente a busca da

verdade. Por isso mesmo é preciso atentar que o recurso às presunções, sobretudo àquelas

previstas em lei, decorre de política legislativa que apenas se justifica em situações nas quais os

meios de prova são impossíveis ou de difícil produção. Logo, se a busca da verdade material é

perfeitamente possível em determinadas situações fáticas, através de meios razoavelmente

disponíveis para a investigação da realidade, não haveria porque o legislador, nesses casos,

lançar mão de presunções; vale dizer, seria inconstitucional, sob o prisma do princípio da

razoabilidade, optar-se aí pelo sacrifício da verdade real em prol da segurança jurídica.

E isto se reforça ainda mais na seara do Direito Administrativo, que tem como um de

seus princípios justamente o da verdade material, que, consoante salienta Celso Antônio,

“estriba-se na própria natureza da atividade administrativa”.

334

Deveras, o interesse público

conclama que não se deva contentar-se apenas com o provável quando seja possível, por meios

razoavelmente fáceis de registro de fatos, obter-se a certeza sobre a sua ocorrência ou, ao menos,

aproximar-se dela com maior grau de convicção. E esta reflexão, assevere-se, não pode deixar de

330 Teresa Ancona Magalhães. Presunção (direito privado). In: R. Limongi França (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v 60, p. 377. Exemplifica a autora: “Assim, o critério, dificilmente praticável, da não-maturidade do espírito, condição natural para um regime especial de proteção, é eliminado em proveito de um critério rígido, categórico da menoridade até os 21 anos. Na base desta substituição de conceitos repousa a observação de que a menoridade presume imaturidade de espírito. Daí o jurista, querendo simplificar o sistema jurídico, concluir que isto é o certo”. Idem.

331

Comentários ao Código de Processo Civil, p. 235. Exemplifica também com o caso da comoriência, “a respeito dos que morreram na mesma ocasião, sem se poder averiguar, se presume simultaneamente mortos: ‘Non videtur alter alteri supervixisse’ (Marciano, L. 18, pr., D., de rebus dubiis, 34, 5; Código Civil, art.11)” Idem.

332

Ib idem. “No fundo, há prova indireta, posto que nem toda prova indireta se prenda a presunção: pode ser certa, sem qualquer alusão à simples probabilidade. A presunção simplifica a prova, porque a dispensa a respeito do que se presume”. Ib idem. 333

Op. cit, p. 376. 334

Curso de direito administrativo, p. 450. Celso Antônio assinala ainda que “se a Administração tem por finalidade alcançar verdadeiramente o interesse público fixado na lei, é óbvio que só poderá fazê-lo buscando a verdade material, ao invés de satisfazer-se com a verdade formal, já que esta, por definição, prescinde do ajuste substancial com aquilo que efetivamente é, razão por que seria insuficiente para proporcionar o encontro com o interesse público substantivo”. Idem, p. 450-451.

estar presente no estudo das presunções jurídicas, mormente no que concerne à tão propalada

presunção de legitimidade dos atos administrativos, objeto deste estudo.

Comungando com esse modo de pensar as coisas em matéria de procedimentos

administrativos, Alberto Xavier, ao cuidar especificamente do ato de lançamento tributário,

defende que os mecanismos de arbitramento, a partir de meras ilações, suposições e presunções

do Fisco, somente podem ser empregados nos casos de impossibilidade absoluta de provas,

335

daí considerar que, nesta seara, “a averiguação da verdade material não é objeto de um simples

ônus, mas de um dever jurídico. Trata-se, portanto, de um verdadeiro encargo da prova ou dever

de investigação”.

336

Apesar desta conclusão de Xavier referir-se especificamente ao campo do Direito

Tributário, no qual, segundo alega, vige o princípio do in dubio contra fiscum como regra de

decisão sobre o fato incerto

337

, nada obsta que tais fundamentos sirvam ao menos para se refletir

acerca do famigerado alcance amplo que se tem inadvertidamente dado à presunção de

legitimidade dos atos administrativos, mormente no que tange aos critérios de distribuição do

ônus da prova nos processos em que se discutem sanções impostas pela Administração Pública.

335

“Só o critério da impossibilidade absoluta harmoniza logicamente o princípio fundamental do dever de investigação que ao Fisco compete com vista à descoberta da verdade material, corolário do princípio inquisitório, por sua vez desdobramento do princípio da legalidade, com o dever de colaboração que impende sobre o contribuinte. A força de tais princípios é tanta que o dever de investigação do Fisco só cessa na medida e a partir do limite em que o seu exercício se tornou impossível, em virtude do não exercício deficiente do dever de colaboração do particular em matéria de escrituração mercantil. Não basta uma simples dificuldade ou maior onerosidade do exercício de investigação, em decorrência de vícios isolados da escrita, para exonerar o Fisco do cumprimento do seu dever funcional autorizando-o desde logo ao recurso ao instituto do arbitramento. Enquanto essa possibilidade subsiste, deve o Fisco prosseguir no cumprimento de seu dever, seja qual for a complexidade e o custo de tal investigação. A adoção do arbitramento pressupõe, por conseguinte, a prova de que os vícios isolados que afetem a escrituração tornam absolutamente impossível ao Fisco reconstituir, com base nela, o lucro real. Em tal caso, sim, a escrituração tornou -se

imprestável para o objetivo a que visa e o vício ou vícios dos lançamentos individuais arrastam a desclassificação do conjunto,

legitimando então a aplicação da base de cálculo subsidiária, em que a receita bruta se traduz. (...) Este é, na verdade, o s entido da Súmula n. 76 do Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual ‘em tema de imposto de renda, a desclassificação da escrita somente se legitima na ausência de elementos concretos que permitam a apuração do lucro real da empresa, não a justificando o simples atraso na escrita’. (...) Ao risco de deixar-se a fixação do lucro real a partir de ilações, suposições ou presunções do Fisco, não apoiadas numa sólida base probatória documental, preferiu-se uma solução que eliminasse qualquer margem de capricho, de arbítrio ou discricionariedade das autoridades administrativas”. Do lançamento: teoria geral do ato, do

procedimento e do processo tributário, p. 141-143.

336

Idem, p. 145.

337 “Com efeito, a lei fiscal não raro estabelece presunções deste tipo em benefício do Fisco, liberando-o deste modo do concreto encargo probatório que na sua ausência cumpriria realizar; nestes termos, a Administração fiscal exonerar-se-á do seu encargo probatório pela simples prova do fato índice, competindo ao particular a demonstração do contrário. (...) Seguindo os parecer es de Bühler, Strickrodt e Micheli, concluir-se-ia que o órgão de aplicação do direito seria completamente livre, não só de escolher os meios instrutórios, como também de adotar na decisão o critério ou regra de experiência que reputasse mais adequado ao cas o concreto. Esta doutrina esquece, porém, que o processo e os seus fins não podem deixar de explicar-se e construir-se à luz do sistema jurídico em que se integram e que, portanto, tal solução só seria concebível num ordenamento para o qual fosse rigorosamente indiferente o sacrifício injusto da propriedade ou a também injusta privação de um crédito tributário indevido. Ao invés, um ordenamento que não seja, quanto a este aspecto, neutro ou indiferente, não pode confiar ao órgão de aplicação do direito a liberdade de escolha do critério de decisão sobre o fato incerto, antes postula a existência de uma regra de juízo preestabelecida, quer esta se encontre expressamente formulada, quer de deduza do espírito do sistema. Na ordem jurídica brasileira não pode duvidar-se da solução a dar ao problema em causa: o respeito pela propriedade privada, consagrado constitucionalmente, e que em matéria tributária se reflete no princípio de uma rígida legalidade, revela por si só que no ca so de incerteza sobre a aplicação da lei fiscal são mais fortes as razões de salvaguarda do patrimônio dos particulares do que as que conduzem ao seu sacrifício (in dubio pro libertate; melior est conditio possidentis). Este é o verdadeiro fundamento teórico da regra in dubio contra fiscum, que é uma regra de decisão sobre o fato incerto e que, portanto, respeita à aplicação e não à interpretação do direito”. Ib idem, p. 146-148.