1.5 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PRESUNÇÕES
1.5.5 Distinção entre Presunção e Ficção
Outra categoria frequentemente confundida com a presunção – mormente com a
presunção legal absoluta (iure et de iure) –, mas que dela se distingue, é a ficção. Ambas,
presunção absoluta e ficção, são especulações, raciocínios hipotéticos feitos pelo legislador
acerca da realidade fática e que não admitem prova em contrário. Mas enquanto a presunção se
calca em algo tido como ao menos provável de acontecer, a ficção se estabelece acerca de algo
cuja essência ou os efeitos sabidamente não existem no mundo real; vale dizer, a ficção é uma
mera invenção do Direito.
Deveras, existem determinadas categorias e institutos que, posto não encontrem
correspondentes no mundo empírico, são úteis à vida em sociedade. Daí a utilidade das ficções
criadas pelo Direito, a exemplo do que acontece com a categoria da pessoa jurídica.
É nessa linha que Gabriel Rezende Filho aponta critérios de distinção entre as
presunções absolutas e as ficções legais, considerando que “a presunção supõe sempre a
existência do fato probando, ao passo que a ficção, ao contrário, supõe um fato que se sabe não
existir na realidade.”
357Na ficção, diz Orosimbo Nonato, “a lei finge o que sabe não ser real”; na
presunção, “ainda que irrefragável e iuris et de iure, a lei afirma o que é provável”. As
354 Op. cit., p. 125. 355 Op. cit., p. 138-139. 356 Idem. 357
Op. cit., p. 301. Também José de Aguiar Dias aponta que “Arnoldo Medeiros faz distinção necessária entre ficção e presunção, explicando que não se confundem. Assim, não há ficção em presumir a culpa. Invoca a autoridade de Geny e esclarece que a presunção é baseada na verossimilhança e responde às tendências da lógica natural, ao passo que a ficção vai muito mais longe, ultrapassa o domínio da prova e desnatura cientemente as realidades, de forma que exclui aprioristicamente qualquer possibilidade de prova em contrário. A presunção, ao revés, baseia-se no que ordinariamente acontece”. Da
presunções têm finalidade probatória, ao passo que as ficções “não pertencem ao direito
probatório e a função, que ela desempenha no direito, visa a outras finalidades”.
358.
Também Pontes de Miranda diferencia as duas situações, assinalando que “a ficção
enche de artificial o suporte fático; a presunção de legal apenas tem como acontecido, ou não
acontecido, o que talvez não aconteceu, ou aconteceu”.
359Ou seja, “na ficção, tem-se A, que não
é, como se fosse. Na presunção legal absoluta, tem-se A, que pode não ser, como se fosse, ou A,
que pode ser, como se não fosse.”
360Exemplo de confusão técnica entre a ficção e a presunção
jurídicas é por vezes encontrado na própria legislação, como acontece com o parágrafo 1º do
artigo 343 do nosso Código de Processo Civil, que trata da presunção de confissão da parte que
se fizer ausente ao depoimento pessoal
361. Há crítica de alguns doutrinadores a este dispositivo,
que não trataria propriamente de uma presunção, mas, sim, de uma ficção de confissão (ficta
confessio).
362Apresentados estes parâmetros teóricos de distinção entre as duas figuras, deve-se
observar, no entanto, que tanto na ficção quanto na presunção absoluta o Direito atribui
existência jurídica a algo dissociado da sua existência real, seja esta impossível ou apenas
provável.
358
Op. cit., p. 139. E acrescenta Nonato: “A presunção legal absoluta, como a ficção de direito, encerra um asserto incontrariável do legislador, que converte a probabilidade em certeza. E esse aspecto de afirmativa irrefragável aproxima-a da ficção. Desta, porém, se distingue, a uma por seu conteúdo (a presunção, ao revés da fictio iuris, baseia-se na probabilidade) – e a outra por sua finalidade, tornando-se incontendível despertencer a ficção ao direito probatório”. Idem. Ainda sobre o tema, o autor transcreve a seguinte lição de Júlio González Velásquez: “Es concepto afin de la presunción la ficción, que es una invención del derecho, una equitativa disposición de la ley que supone existir en el orden natural de la verdad lo que en realidad no existe, sea por la esencia o por los efectos, afin de que el derecho se desarrolle y alcance sus fines. Infiérese que es criterio sin norte verdadero identificar estas dos instituciones. La primera permite debatir sobre sus antecedentes y en cambio la segunda no, per cuanto que su naturaleza es imperativa , como creación legislativa valedera en si mesma y por la ley. Tienen si punto de contacto la presunción de derecho y la ficción: no admiten prueba en contrario de su contenido. Preponderante es en la presunción su finalidad probatória”. Ib idem, p. 138.
359
Comentários ao Código de Processo Civil, p. 235. Acrescenta que “a ficção tem no suporte fático elemento de que não se poderia induzir a situação que ela prevê. Daí, nada se presumir, quando se elabora a ficção. Se A, então B; e se não A, então AA. A aceitação da herança, se o herdeiro foi chamado a pronunciar-se e não se pronunciou não é ficção; evitou-se dizer: prescinde-se da aceitação (o que não seria o mesmo) (...) A ficção abstrai de toda consideração de probabilidade: o legislador mesmo prescindiu de toda exploração do real; pareceu-lhe melhor criar o elemento ou os elementos do suporte fáctico e impô-los, como se fossem reais, ao mundo jurídico”. Idem.
360 Sistema de ciência positiva do direito. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972, p. 234. 361
“A parte será intimada pessoalmente, constando do mandado que se presumirão confessados os fatos contra ela alegados, caso não compareça ou, comparecendo, se recuse a depor”.
362
Neste sentido a lição de José Carlos Barbosa Moreira, mencionada por Aloísio Surgik: “Não surpreende certa tendência, que, às vezes, se observa, a confundir as duas figuras, a tomar uma pela outra. Trata-se de confusão feita, em vários casos, pelo próprio legislador, que emprega, ao redigir a lei, terminologia inexata: fala, p. ex., de ‘presunção’, ou usa o verbo ‘presumir’, quando na verdade está consagrando uma ficção. Exemplo desse equívoco, no entender de Barbosa Moreira, depara -se na redação do art.343, par.1º, do CPC de 1973, referente à intimação da parte para prestar depoimento pessoal e às conseqüências do eventual não-comparecimento ou recusa de depor. (...) Ora, é evidente – diz o mestre – que, se a parte não comparece, ou se recusa a prestar depoimento, de modo nenhum confessa: o fato da confissão, em tal hipótese, é fato que não se pode considerar senão como inexistente. Aqui não há qualquer ‘juízo de probabilidade’: estamos diante de algo que sabidamente não ocorre, e ao legislador não é dado ‘presumir’ que ocorra. Nem é isso, aliás, que ele pretende: quer apenas atribuir a um fato diverso (o não- comparecimento, ou a recusa a depor) os mesmos efeitos que decorreriam do fato não verificado (a confissão). Estamos, assim, em pleno domínio da ficção, e não é por acaso que se costuma falar a propósito na ficta confessio. Outro seria o enquadramento dogmático, vale notar, se a norma estatuísse que os fatos alegados contra a parte, nas hipóteses de não-comparecimento ou de recusa a depor, ‘se presumirão verdadeiros’. Aí, sem, existiria realmente presunção, i.e., equiparação de efeitos baseada em ‘juízo de probabilidade’”. Op. cit., p. 398-399.