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1.4 A APLICAÇÃO DO DIREITO E AS PROVAS

1.4.6 O Ônus da Prova

1.4.6.1 Distinção entre ônus e obrigação

Na linguagem jurídica, o conteúdo semântico da palavra ônus costuma ser

relacionado ao risco suportado por um sujeito de, diante da sua inação, vir a sofrer um prejuízo

no seu próprio interesse. É nessa linha que Cândido Dinamarco conceitua o ônus da prova como

“o encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência de fatos de seu

próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo”

268

. O ônus, voltado para a

264

Ônus da prova – considerações sobre a doutrina das cargas dinâmicas. Revista jurídica dos formandos em direito da UFBA, 1999. v 6, p. 237. Acrescenta o autor que “diferentemente do juiz romano, que podia chegar a um estado de dúvida e dizer non

liquet, o juiz moderno, por mais dúvida que tenha, terá que julgar a causa que está sob sua responsabilidade num determinado

limite de tempo, uma vez que o objetivo fundamental do processo é buscar a paz social. (...) Contraria a idéia de justiça e, em conseqüência a de paz social, a tese que sustenta que o processo, seja ele qual for, se orienta pelo princípio da verdade for mal, até porque, se assim fosse, estar-se-ia a privilegiar um princípio contrário à idéia de justiça. Portanto, quando se diz que o processo se contenta com a verdade formal, isto significa tão somente o reconhecimento de que, como frisado acima, o juiz, diferentemente do historiador, está limitado pelo tempo, em alguns aspectos pela iniciativa das partes, bem assim por ser forçado a chegar a uma conclusão. Em síntese, apenas e tão somente quando impossível a verificação da verdade real é que a ordem jurídica contenta-se com a verdade formal, ou seja, com a verdade possível”. Idem, p. 237-238.

265

Op. cit., p. 56. 266

Segundo Guilherme Marinoni e Sérgio Arenhart, “uma vez que o juiz não pode deixar de decidir, aplicando-se um non liquet, importa determinar critérios que permitam resolver a controvérsia quando não resulte provada a existência dos fatos principais. Tais critérios são constituídos pelas regras que disciplinam o ônus da prova. Estes são, de fato, destinados a entrar em jogo quando um fato principal resultar destituído de prova. A sua função é a de estabelecer a parte que deveria provar o fato e determinar as conseqüências que recaem sobre a parte por não ter ela provado o fato”. Manual do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 294.

267

Na lição de Moacir Amaral Santos, “irrecusável é que exposto, por uma parte, um fato que pareça naturalmente possível e juridicamente relevante, ao juiz cumpre tê-lo em conta na sua decisão. Mas como a simples alegação não é suficiente para formar a convicção do julgador (allegatio et non probatio quase non allegatio), surge a imprescindibilidade da prova da existência do fato. E, dada a controvérsia entre o autor e o réu, com referência a este ou às suas circunstâncias, impondo-se, pois, prová-lo e prová-las, decorre a questão: a quem incumbe o ônus da prova?”. Prova judiciária no cível e comercial, p. 94.

268

defesa de interesse próprio, distingue-se da obrigação, cujo descumprimento gera prejuízo a

interesse alheio.

Alfredo Buzaid assinala que, apesar do elemento formal comum aos dois institutos,

consistente no vínculo da vontade, eles “diferem entre si quanto ao elemento substancial, porque

o vínculo é imposto, quando há obrigação, para a tutela de interesse alheio, enquanto, havendo

ônus, a tutela é um interesse próprio”.

269

Para Rafael de Pina, o cerne da distinção entre uma e

outra categoria está na diferente sanção resultante da inatividade

270

. Decorre daí a concepção de

ônus como sendo um risco

271

. Amaral Santos diz que a idéia de dever de produzir provas não se

identifica com a categoria específica do dever jurídico, sendo apenas um “dever no sentido de

interesse”

272

, pois, nas palavras de Chiovenda, “como não existe um dever de contestar, não

existe um dever de provar, senão no sentido em que se diz, por exemplo, que quem quer ganhar

deve trabalhar”.

273

Gian Michelli também enfoca o ônus (carga) como entidade distinta da obrigação,

“en el sentido de que en determinados casos la norma jurídica fija la conducta que es necesario

observar, cuando un sujeto quiera conseguir un resultado jurídicamente relevante”.

274

Na mesma

esteira, Gabriel Rezende Filho aponta que “ônus da prova não significa obrigação de provar no

sentido jurídico. Não é dever jurídico. Constitui simplesmente necessidade ou risco da prova”.

275

Na síntese da expressão cunhada por James Goldschmidt, tem-se então um “imperativo do

próprio interesse”.

276

269

Op. cit., p. 61. 270

“La diferencia entre carga y obligación se funda sobre la diversa sanción que en uno u otro caso amenaza a quienes no cumplen un determinado acto: obligación existe cuando la inactividad da lugar a una sanción jurídica (ejecución o pena); si, por el contrario, la abstención, en relación con un acto determinado, hace perder solamente los efectos útiles del acto mismo, nos encontramos frente a la figura de la carga”. Tratado de las pruebas civiles. México: Libreria de Porrua Hnos. y Cia, 1942, p. 82. 271

Escreve Wilson Alves de Souza que “não se trata de dever jurídico, porque este corresponde sempre a um direito de outrem (bilateralidade), de modo que o seu não cumprimento deve acarretar uma sanção, ao contrário daquele, em que não há correspondente direito nem possibilidade de sanção para a hipótese de quem tem o encargo dele não se desincumbir. (...) Há quem afirme que o ônus é uma faculdade. Rigorosamente os dois conceitos não se confundem, uma vez que quem o não exercício desta implica apenas em não se auferir uma vantagem, enquanto quem não se desincumbe de um ônus jurídico pode sofrer prejuízo. Daí dizer-se que à idéia de ônus está, portanto, a idéia de risco”. Op. cit., p. 241.

272

Prova judiciária no cível e comercial, p. 94.

273 Apud Amaral Santos. Idem, p. 95. Aduz que “a atividade que se despende na prova, como em geral a que se emprega em proveito próprio, é uma condição para se obter a vitória, não um dever jurídico”. Ib idem.

274

La carga de la prueba. Bogotá: Ed. Temis, 1989, p. 54. Acrescenta Micheli que “en tales hipótesis, un determinado comportamiento del sujeto es necesario para que un fin jurídico sea alcanzado, pero, de outro lado, el sujeto mismo es libre de organizar la propia conducta como mejor de parezca, y, por conseguiente, también eventualmente en sentido contrário al previsto por la norma. La no observancia de esta ultima, pues, no conduce a una sanción jurídica, sino solo a uma sanción económica; y precisamente la no obtención de aquel fin, conducirá, por tanto, a una situación de desventaja para el sujeto titular del interés tutelado. En tal modo, la figura de la carga ha venido adquiriendo una consistencia propia en la sistematización jurídica junto a la de obligación, caracterizada esta última por el vínculo impuesto a la voluntad del obligado por un interés ajeno; vínculo cuya violación importa uma ilicitud, em cuanto es violación de un mandato que no deja al obligado liberdad de elección. En sustancia, pues, la norma jurídica o bien indica una conducta que debe ser observada en interés ajeno (eventualmente bajo pena de sanción jurídica) o bien una conducta que debe ser observada por el interesado si este quiere conseguir un fin, de otra manera no alcanzable”. Idem, p. 54-55.

275 Op. cit., p. 209. 276

Em acorde com todas estas lições se conclui que os comportamentos dos litigantes no

decorrer do processo não significam deveres de um correspondentes a direitos do outro, mas,

sim, encargos derivados dos seus próprios interesses. Portanto, ao se falar em ônus da prova,

não se tem em mente uma única relação jurídica processual, mas, sim, um conjunto de situações

jurídicas processuais geradoras de expectativas para as partes.