3.1 TRATAMENTO DOUTRINÁRIO
3.1.3 Presunção de Legitimidade, de Legalidade, de Veracidade ou de Validade?
Não obstante a abrangência semântica que hodiernamente já se busca conferir à
legalidade administrativa, muitos doutrinadores seguem empregando a expressão “legitimidade
512
Diz-se “predominantemente” porque a Administração Pública jamais age como se particular fosse, pois ainda que eventualmente despida das prerrogativas de supremacia, a sua atuação deve sempre perseguir o interesse público.
513
É o que acontece, v.g., nos chamados contratos privados da Administração ou, simplesmente, contratos da Administração. A doutrina em geral destaca que nem todos os contratos firmados pela Administração são contratos administrativos, porquanto existem contratos em que o Poder Público não age exclusivamente sob a égide do regime jurídico administrativo. Consoante aponta Hely Lopes Meirelles, “embora típica do Direito Privado, a instituição do contrato é utilizada pela Administração Pública na sua pureza originária (contratos privados realizados pela Administração) ou com as adaptações necessárias aos negócios públicos (contratos administrativos propriamente ditos)”. Op. cit., p.188. Costuma-se, assim, diferenciar os contratos da
Administração (gênero) dos contratos administrativos (espécie), como o faz Maria Sylvia Di Pietro: “A expressão contratos da Administração é utilizada, em sentido amplo, para abranger todos os contratos celebrados pela Administração Pública, seja sob
regime de direito público, seja sob regime de direito privado. E a expressão contrato administrativo é reservada para designar tão-somente os ajustes que a Administração, nessa qualidade, celebra com pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, para a consecução dos fins públicos, segundo regime jurídico de direito público. Costuma-se dizer que, nos contratos de direito privado, a Administração se nivela ao particular, caracterizando-se a relação jurídica pelo traço da horizontalidade e que, nos contratos administrativos, a Administração age como poder público, com todo o seu poder de império sobre o particular, caracterizando-se a relação jurídica pelo traço da verticalidade”. Op. cit., p. 232.
administrativa” para abarcar todos os aspectos, formais e substanciais, que devem conferir
retidão à conduta do agente administrativo. Por isso, são encontradas referências à “presunção de
legitimidade” nas obras de Augustin Gordillo
514, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello
515,
Fernando Henrique Mendes de Almeida
516, José Cretella Júnior
517, Celso Antônio Bandeira de
Mello
518, dentre outros.
Mas não há uniformidade no emprego da terminologia para designar tal presunção.
Manoel de Oliveira Franco Sobrinho refere-se à “presunção da verdade”
519e Lúcia Valle
Figueiredo vale-se da expressão “presunção de legalidade”, entendendo com isso “a
conformidade com a lei e a estrita compatibilidade com os princípios constitucionais da função
administrativa e com os vetores constitucionais”.
520Maria Sylvia Di Pietro opta por desdobrar o
tema, apontando, ao lado da obediência formal à lei por parte do administrador (presunção de
legalidade), a veracidade dos fatos declarados pela Administração (presunção de verdade).
521Diogo de Figueiredo Moreira Neto prefere a expressão “presunção de validade”,
considerando que a mesma contém maior amplitude ao incorporar os quatro aspectos que ele
reputa essenciais à completa correção dos atos administrativos, quais sejam a veracidade, a
legalidade, a legitimidade e a licitude.
522Henrique de Carvalho Simas também trata da
“presunção de validade” como um dos atributos do ato administrativo que lhe atesta a
“conformidade com a lei”.
523Juan Carlos Cassagne, por sua vez, fala em “presunción de validez
o legitimidad de los actos administrativos”
524.
514
Tratado de derecho administrativo, t 4, VII – 3. 515
“Presume-se, em princípio, legítimos os atos administrativos, e se reconhece possível sempre a manifestação de vontade da Administração Pública, que desenvolve atividade no interesse coletivo. O interesse dos particulares há de ceder diante daquele e o direito subjetivo deles se sacrifica em face do direito de supremacia do Estado, convertidos em expressão patrimonial, que represente o seu justo valor”. Princípios gerais de direito administrativo, p. 533.
516
Os atos administrativos na teoria dos atos jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, p. 89. 517
Do ato administrativo. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1972, p. 62. 518
Ato administrativo e direitos dos administrados, p. 23. 519
Atos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 33. 520
Op. cit., p. 170-171.
521 Escreve Di Pietro que o “princípio, que alguns chamam de princípio da presunção de legalidade, abrange dois aspectos: de um lado, a presunção de verdade, que diz respeito à certeza dos fatos; de outro lado, a presunção da legalidade, pois, se a Administração Pública se submete à lei, presume-se, até prova em contrário, que todos os seus atos sejam verdadeiros e praticados com observância das normas legais pertinentes”. Op. cit., p. 86.
522
Esclarece que “no campo do Direito Administrativo esse quádruplo pressuposto significa que os atos da Administração gozam
de presunção de validade, até prova em contrário. Até recentemente, os autores não ampliavam tanto a presunção aqui tratada,
preferindo referir-se à presunção de legalidade, por vezes com extensão à presunção de legitimidade. Ocorre que, se tanto essas condições, legalidade e legitimidade, como, ainda, a realidade e a licitude, devem estar presentes para que exista validade, a
presunção deve encompassar todas elas, o que torna tecnicamente mais preciso fulcrar a presunção em seu aspecto síntese: a validade”.Op. cit., p. 88.
523
“A presunção de validade significa que, até prova em contrário, isto é, enquanto não sobrevier o pronunciamento de ineficácia, os atos administrativos são tidos como válidos e operantes, quer para a Administração, quer para os particulares sujeitos aos seus efeitos, como se tivessem sido praticados em conformidade com a lei. Conseqüência dessa presunção é a transferência do ônus da prova de invalidade para quem a invoca. Quem argüi a ilegalidade do ato se incumbe de prová-la”.
Manual elementar de direito administrativo. Rio de Janeiro; Livraria Freitas Bastos, 1974, p. 147-148.
524 “Tráta-se de una presunción provisoria de los actos estatales, ínsita en las funciones y poderes que la norma fundamental asigna a los órganos que componen la estructura constitucional del Estado, para realizar en forma expeditiva y eficaz las
Ao que parece, a terminologia empregada por si só nada resolve, pois tudo dependerá
do conteúdo semântico atribuído à expressão que qualifica a presunção. Como antes
mencionado, legitimidade e legalidade podem perfeitamente servir como sinônimos, bastando se
atribuir à expressão legalidade administrativa a concepção condizente com os valores
constitucionais do Estado Democrático de Direito contemporâneo. Deveras, nesse atual contexto,
não se pode reputar que a Administração Pública pratique algo legal que não seja, ao mesmo
tempo, legítimo, pois o que confere ares de legalidade à atuação administrativa deve ser
justamente o seu elemento teleológico, consubstanciado na busca de adequada satisfação do
interesse público.
É claro que pode haver dúvidas sobre a exata definição de qual seja o interesse
público específico a ser perseguido pela Administração em cada caso, haja vista as
contingências, o alto grau de discricionariedade presente no vasto campo de atuação
administrativa e, sobretudo, o grande número de variáveis inerentes ao complexo problema das
decisões políticas. O próprio conteúdo do “interesse público” não admite delimitação precisa
525,
podendo até mesmo ocorrer situações de choque entre interesses públicos primários, a
recomendar diferentes direcionamentos na conduta administrativa
526, cabendo ao administrador,
então, identificar o caminho mais adequado a seguir. Com isso, não raro, uma única situação
pode comportar em várias decisões administrativas lícitas.
O que foi dito, porém, em nada muda o foco do balizamento semântico acima
esposado acerca da legalidade como sinônimo de legitimidade. Significa apenas que qualquer
que seja a solução reputada administrativamente lícita (dentre as possíveis), ela há de ser também
considerada legítima. Se não é legítima, não pode ser tida como lícita.
Na verdade, o cerne do problema parece estar na identificação da conduta(s)
adequada(s) a conferir legitimidade (e, portanto, legalidade) à atuação administrativa. Se a
Administração age seguindo a “letra da lei” em determinada situação, a priori pode se considerar
funciones públicas que debe saisfazer en la prosecución del bien común cuya administración y gerencia le corresponden. Supone que el respectivo acto dictado por un órgano estatal se ha emitido de conformidad al ordenamiento jurídico y en ella se basa el deber u obligación del administrado de cumplir e lacto”. Derecho administrativo, p. 21.
525
Salientando a dificuldade na tarefa de se delimitar a noção de “interesse público”, Maria Sylvia Di Pietro, com base nas lições de Alessi e Carnelutti, aponta primeiramente que “em caso de conflito, o interesse público primário deve prevalecer sobre o interesse público secundário, que diz respeito ao aparelhamento administrativo do Estado”. Em seguida, adverte que “quando se diz que a Administração Pública deve observar o interesse público, não significa que deve atender ao interesse comum a todos os cidadãos, porque isto seria difícil, senão impossível. Ela deve atuar, justificadamente, de modo a beneficiar uma coletividad e de pessoas que tenham interesses comuns, ainda que esses interesses não correspondam à soma dos interesses individuais (...) A expressão interesse público, em sentido amplo, constitui o gênero que compreende várias modalidades: o interesse geral, afeto a toda a sociedade; o interesse difuso, pertinente a um grupo de pessoas caracterizadas pela indeterminação e indivisibilidade; e o
interesse coletivo, que diz respeito a um grupo de pessoas determinadas ou determináveis”. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 223-224.
526
Imagine-se uma decisão administrativa envolvendo a construção de uma hidroelétrica, quando se busca ponderar entre a necessidade de melhoria no fornecimento de eletricidade à população (interesse público primário) e o impacto ambiental causad o pela obra (interesse público primário).
legítima a sua atuação. Este realmente tem sido, na prática, o ponto de partida da percepção dos
agentes administrativos, simplesmente porque é a referência normativa mais específica que eles
têm de como agir, isso sem contar os proliferados regulamentos executivos que lhes servem não
apenas como referencial normativo, mas, sobretudo, hierárquico. Porém, se a conduta do agente
administrativo, a pretexto de cumprir o preceito de uma lei específica, fere frontalmente
princípios e valores constitucionais ao ignorar as peculiaridades do caso concreto, ela se torna
não apenas ilegítima, mas, também, ilegal. O fato de haver seguido literalmente o comando
preceptivo de uma única norma do sistema jurídico, quando existem outras normas apontando a
inadequação da decisão tomada in concretu, não poupa o administrador de haver incorrido em
ilegalidade.
Um exemplo – similar ao utilizado por Celso Antônio Bandeira de Mello ao tratar do
desvio de poder na atuação administrativa
527– ajudará mais uma vez a se compreender o que
aqui se defende: imagine-se que em certa área urbana tombada pelo patrimônio histórico
municipal, a lei proíba o tráfego de veículos automotores, tendo a prefeitura, para sinalizar a
proibição, distribuído placas nas entradas das ruas por todo o perímetro, lá postando agentes de
trânsito com o fito de fiscalizar o cumprimento da norma proibitiva. Ocorre que um turista que
visitava a área, sendo repentinamente acometido por um infarto, foi acudido por pessoas que
passavam pelo local, que se apressaram em chamar uma ambulância. Todavia, apesar da rápida
chegada da ambulância, deparou-se esta com os agentes de trânsito que, ao argumento de
estarem zelando pelo cumprimento da referida lei municipal, obstaram a sua entrada, de nada
adiantando o apelo dos médicos que lhes informavam sobre a urgência da situação. Com isso, o
turista, sem o precioso socorro de que necessitava, infelizmente veio a falecer no local.
Na situação narrada, há de se perguntar: teriam os agentes de trânsito cumprido a lei
ao impedir a entrada da ambulância? Poder-se-ia se presumir legítima tal conduta
administrativa?
Ora, a resposta a ambas as questões somente pode ser negativa, pois pensar na
legalidade como o estrito cumprimento da única normal legal que proíbe o tráfego de veículos
seria ignorar completamente a força normativa de princípios constitucionais que asseguram,
dentre outras coisas, o acesso de todos à saúde pública
528, a inviolabilidade do direito à vida
529e
527
Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.72. 528
CF/88, art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. Art. 197: “São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
529
a dignidade da pessoa humana
530. É (razoavelmente) lógico inferir que referida norma proibitiva
do tráfego está voltada para as situações de normalidade, até porque o legislador não teria como
prever excepcionalidades.
531Logo, a proibição haveria de ceder no caso concreto.
“A lei”, sob esse prisma, é mais do que “uma lei”: a legalidade é a resultante de todas
as forças normativas de um sistema jurídico e que incidem numa determinada situação,
equivalendo, assim, à legitimidade administrativa. A aplicação legítima da lei requer, por parte
do agente administrativo, um esforço que propicie a melhor valoração possível; vale dizer,
cumpre-lhe perceber adequadamente os fatos e interpretar adequadamente as normas jurídicas,
aplicando o Direito ao caso concreto.
Vale-se aqui da noção de sistema concebida por Canaris, que, segundo escreve Paulo
Pimenta, “deve ser entendido como uma ordem de valores”, sendo “importante para a Ciência
do Direito, porque proporciona a localização dos princípios jurídicos, ao tempo em que se evita
um positivismo extremo e abstrato”.
532Por isso, na avaliação de Marçal Justen Filho, o conteúdo
da presunção de legitimidade não traduz um valor genérico que deva ser considerado a priori,
senão relacionado com o próprio conteúdo do ato administrativo, envolvendo basicamente quatro
aspectos a considerar como presumidamente regulares: i) a interpretação da norma jurídica
empregada pela Administração no caso concreto; ii) a avaliação e qualificação jurídica dos fatos
relevantes no caso concreto; iii) o exercício de competências discricionárias e vinculadas
atribuídas à Administração; iv) a afirmação dos fatos pelo agente administrativo.
533530
CF/88, art. 1º, III. 531
Nas palavras de Celso Antônio, “apesar dos termos peremptórios da norma, não haverá sido finalidade dela gerar embaraços no caso de situações extremas como a indicada. A ‘lógica do razoável’, tão encarecida – com justa razão – por Recásens Siches, impõe a adoção de conduta afinada com a intelecção fiel à finalidade da regra. Logo, se o agent e não o fizer, estará utilizando a competência para finalidade distinta daquela em vista da qual foi instituída. De conseguinte, incorrerá em desvio de poder”.
Idem, p. 72-73.
532
Op. cit., p. 123-125. Explica Pimenta que “após rejeitar as concepções então existentes, Canaris desenvolve o seu conceito de sistema a partir das idéias de adequação valorativa e da unidade interior da ordem jurídica, afirmando, em primeiro lugar, que os valores elevados do Direito, como o princípio da justiça, o princípio da igualdade e da segurança jurídica justificam a idéia de sistema. É, também, o sistema, uma ordem axiológica ou teleológica, ou, no dizer do citado jusfilósofo, a ‘captação racional de adequação de conexões de valorações jurídicas’”. Idem.
533