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2.4 Marco teórico da responsabilidade internacional

2.4.3 A teoria da responsabilidade internacional em James Crawford

No período correspondente aos anos de 1998 a 2001, já sob a relatoria de James Crawford, a Comissão de Direitos Internacional da ONU procedeu com a segunda leitura do projeto de artigos sobre responsabilidade internacional do Estado. Crawford identificou três questões que mereciam atenção mais detida por parte da Comissão: os crimes internacionais, o regime de contramedidas e a solução de disputas47. O trabalho desenvolvido pelo relator enfrentou os problemas indicados no texto de 1996, incorporando, sempre que possível, os comentários oferecidos e a jurisprudência mais recente da Corte Internacional de Justiça

46 “Ago iniciou seus trabalhos a partir da origem da responsabilidade, não de suas consequências. Foi precisamente nesse ponto que se deu o estopim da revolução” (SLOBODA, 2017).

47 A versão final do projeto apresentado em 2001 acabou por excluir a noção de “crimes internacionais” e a substituiu por “violações graves de obrigações derivadas de normas peremptórias do direito internacional”.

(GARCIA, 2004, p. 280).

O primeiro informe de James Crawford faz um apanhado das questões mais controvertidas para os Estados, bem como reordena os artigos iniciais do projeto anterior, adequando a sua redação. Elabora o conceito de crime de Estado e define como o tipo especial de “fato internacionalmente ilícito” aquele resultante da violação por um Estado de uma obrigação tão essencial para a salvaguarda dos interesses fundamentais da comunidade internacional que sua violação passa a ser reconhecida como crime por essa comunidade em seu conjunto (ONU, 2001).

Com a adoção de uma postura notadamente pragmática, Crawford retira do projeto o polêmico debate acerca de crime internacional, bem como a distinção entre obrigação de conduta e obrigação de resultado (GARCIA, 2004, p. 281). Alguns itens de destaque do texto da proposta foram mantidos: (a) considerar a regra do esgotamento dos recursos internos unicamente como requisito para a admissibilidade da reclamação e (b) eliminar a parte do projeto anterior que cuidava da solução de controvérsias, por entender que estaria sendo concedido ao Estado autor do ilícito a possibilidade de desencadear o procedimento vinculante de resolução de disputas.

Em 2000, James Crawford apresenta seu terceiro informe já com a nova estrutura. O texto é discutido na CDI e remetido ao Comitê de redação. Mesmo não tendo sido aprovado pela Comissão, a proposta foi tornada pública com o objetivo de proporcionar mais uma oportunidade para a apresentação de comentários por parte dos governos. O relator apresenta seu trabalho final em 26 de julho de 2001. A Assembleia Geral da ONU, após discussão dos governos no Sexto Comitê, adota o projeto mediante a Resolução 56/83, de 12 de dezembro de 2001, não obstante a mencionada resolução não acarrete a aprovação do projeto, determinando novo período de sessões para rodada de debates sobre o texto.

No projeto de relatoria de Crawford, persiste a ideia da responsabilidade internacional como obrigação erga omnes, devida para a sociedade internacional como um todo, ante o reconhecimento de que cada um dos seus membros tem interesse jurídico na execução desse tipo de obrigação. Com essa perspectiva, cada membro da sociedade internacional passa a ter legitimidade para reclamar ao Estado responsável pelo descumprimento de suas obrigações. Cada Estado pode invocar a responsabilidade do Estado infrator, pugnando pela cessação do ato ilícito e pelo percebimento de reparações adequadas aos danos causados (CRAWFORD, 2003, p. 89).

Para Crawford (2003, p. 30), as regras de responsabilidade internacional são obrigatoriamente de carácter geral e compreendem todos os tipos de obrigações

internacionais. O projeto de artigos por ele desenvolvido comporta disposições referentes ao nascimento da responsabilidade internacional do Estado, seus elementos e formas de exoneração; às formas e aos graus da responsabilidade internacional do Estado, com as respectivas consequências e espécies de reparação; aos mecanismos de implantação da responsabilidade internacional do Estado, com os procedimentos para aplicação das sanções e as condições de licitude; ao esclarecimento do uso subsidiário de normas consuetudinárias sobre o tema; e à possibilidade de responsabilização do agente público em paralelo à responsabilização estatal.

Conforme seu próprio relator, o texto final do projeto de artigos da CDI não se preocupou em definir um novo conceito de responsabilidade internacional, mas antes tratou de determinar a sua origem e consequências (CRAWFORD, 2003, p. 30). Dessa forma, o art. 1º do novo projeto reafirmou, assim como no projeto de Roberto Ago, que todo ato internacionalmente ilícito acarreta a responsabilidade internacional do Estado. As relações jurídicas surgidas com essa atuação ilícita do Estado possuem conteúdo abrangente, ultrapassando o mero dever de reparar um dano, podendo ser, inclusive, reparatórias, coercitivas ou mesmo punitivas.

Na teoria de Crawford, dois passam a ser os elementos necessários para a responsabilização internacional do Estado: o fato ilícito e a atribuição. A referida responsabilidade resulta, para esse autor, em um ato pautado em conduta ilícita, tomando-se como base o Direito Internacional. O fato ilícito exsurge contemporâneo à infração de uma obrigação fixada pela ordem internacional e acarreta consequências jurídicas para o seu autor, dentre as quais a obrigação de reparar o dano. Esse ato estatal poderá ser uma ação ou omissão atribuída ao Estado pelo Direito Internacional, que constitua violação de uma obrigação internacional. O ato ilícito será composto, desse modo, por um elemento subjetivo, consistente na conduta omissiva ou comissiva imputável a um Estado, e um segundo elemento, dito objetivo, que importa na violação de uma norma ou obrigação internacional (CRAWFORD, 2003, p. 33).

A obrigação violada pode decorrer de tratado, costume, compromisso unilateral, decisão judicial ou arbitral ou de decisão de organismo internacional. A responsabilidade subsistirá independente de a conduta estatal ser considerada lícita pelo Direito interno e, segundo o projeto de artigos da CDI, apenas a conduta realizada pelo Estado poderá figurar como passível de responsabilização internacional (CRAWFORD, 2003, p. 35). Dessa maneira, como o agente imputável será sempre o Estado (e a imputabilidade é o nexo que liga o ilícito a quem é o responsável pela conduta), os atos praticados pelos funcionários estatais

gerarão a responsabilidade internacional do ente público, e não de seus agentes.

A responsabilidade de um sujeito de Direito Internacional poderá ainda ser direta ou indireta48, cabendo ao Estado responder pelo ato ilícito decorrente do exercício de suas competências administrativas, legislativas ou judiciárias, independente de averiguação de culpa (CRAWFORD, 2003, p. 34). Essa definição apresentada no projeto de artigos da CDI é abrangente o suficiente para abarcar todas as consequências possíveis decorrentes da constatação do fato internacionalmente ilícito, mostrando-se mais ampla do que aquela trabalhada pela concepção clássica, para a qual se define a responsabilidade internacional apenas como uma obrigação de restituição à situação fática anterior e de pagamento subsidiário de uma indenização em face da violação de norma de direito das gentes (CRAWFORD, 2003, p. 30).

O entendimento, portanto, de que um delito internacional gera uma obrigação de reparação e que a reparação deve, na medida do possível, erradicar as consequências do ato ilegal, é a base da nova compreensão internacional sobre responsabilidade do Estado capitaneado por James Crawford. Esse marco teórico, surgido com a evolução de uma concepção bilateral e restritiva de responsabilidade internacional do Estado vigente desde o início do século XX, será o parâmetro utilizado para o desenvolvimento e a estruturação desta obra e para a construção das explanações subsequentes acerca da moderna teoria da responsabilidade internacional do Estado.

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