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A responsabilidade internacional é, como visto, o mecanismo jurídico basilar do Direito Internacional. É a técnica fundamental de sanção pela não-aplicação das normas internacionais pelo Estado, mediante a atuação irregular de seus órgãos e agentes internos. Ocorre em função do nexo existente entre o Estado responsável pela prática de um ato ilícito segundo o Direito Internacional e o dever de cessar a prática proibida e arcar com a reparação pertinente. Essencialmente nas hipóteses em que o sujeito de direito tenha praticado, através de seus órgãos, um ato ou fato ilícito (ou mesmo lícito, em situações pontuais49) que contrarie dever estabelecido em norma de Direito Internacional, positivada ou consuetudinária, e que afete com isso um Estado estrangeiro, nacional deste ou organização internacional.

48 A responsabilidade indireta do Estado ocorre quando o ato é praticado com condescendência, como nos casos de mandato, protetorado e nos modelos federativos. Haverá responsabilidade indireta pelos fatos praticados por quaisquer de seus órgãos, independentemente da natureza ou nível hierárquico.

Pela teoria de Crawford (2003; 2010), o Estado responde por qualquer violação de deveres internacionalmente impostos. Há, nesse caso, o desenvolvimento de características próprias para a responsabilização estatal, pautadas basicamente na obrigação de respeitar os compromissos livremente assumidos (responsabilidade contratual) e de reparar todo o prejuízo injustamente causado (responsabilidade delituosa). Ambos carreados em bases com forte influência no Direito Natural50, pautadas na dignidade e no respeito aos direitos dos demais membros da sociedade internacional.

Com apoio nesse modelo garantista de responsabilidade internacional, o Direito Internacional contemporâneo oferece legitimação jurídica à sociedade das nações para fixar o ilícito internacional e as sanções civis aplicáveis a quem descumprir o convencionado, o que parece visar a modelação de uma genuína teoria da responsabilidade imbricada em princípios como a igualdade e a interação entre Estados soberanos, a teor do que afirma Arantes Neto (2007, pp. 39-40):

A ampliação do espectro da responsabilidade internacional certamente desafia paradigmas clássicos do direito internacional. [...] a tendência de transcender o caráter meramente bilateral e recíproco das relações jurídicas internacionais, com o reconhecimento de obrigações de caráter coletivo. [...] a tendência à diversificação e fragmentação do direito internacional, que incorpora e se expande a domínios diferentes, para forjar não somente um direito da relação entre Estados, mas também um direito das relações de caráter universal ou extra-estatal. [...] Esta última tendência é conseqüência da crescente interdependência entres os Estados e do processo de globalização.

Essa concepção um tanto multifacetada da responsabilidade do Estado parece implicar, para Arantes Neto (2007, p. 25)51, o entendimento do instituto da responsabilidade internacional como um “ramo do direito internacional que [...] revela e consolida essa convergência do ordenamento jurídico internacional em direção da proteção da legalidade”. Formulação essa que, lastreada em Crawford (2003; 2010), propaga a ideia de que, existindo uma comunidade supraestatal mais coesa, abrir-se-á espaço para a aplicação, pela sociedade internacional, de uma legalidade fincada em preceitos mais concretistas de responsabilidade, tanto na sua dimensão coercitiva, quanto reparatória52.

Não se está afirmando, entretanto, a partir desse posicionamento mais contextualizado do Direito Internacional, que não devam estar presentes, para a configuração

50 “O princípio fundamental da justiça traduz-se concretamente na obrigação de manter os compromissos assumidos e de reparar o mal injustamente causado a outrem, princípio este sobre o qual repousa a noção de responsabilidade” (ACCIOLY; SILVA; CASELLA, 2008, p. 345).

51 Para Arantes Neto (2007, pp. 33-40), a responsabilidade internacional pode ser definida: (a) em função de sua origem (como consequência de evento que lhe anteceda, sendo, tradicionalmente, o ato ilícito ou contrário ao direito); (b) em função de seu conteúdo (numa perspectiva positivista voluntarista, normativista ou multidimensional); ou (c) em função das relações jurídicas que a caracterizam.

52 Como exemplo, o Projeto da Comissão de Direito Internacional da ONU sobre Responsabilidade Internacional dos Estados.

da responsabilização internacional, os requisitos clássicos da personalidade internacional e da atribuição do fato ilícito ao Estado, mas apenas que a violação da legalidade é elemento suficiente para a sua conformação, mesmo que não haja dano naturalístico. Soaria até mesmo temerária qualquer medida em contraponto ao fato de o agente mediato do ilícito internacional, sendo o Estado ou uma organização internacional, não responder diretamente pela imputação do dano civil.

Acerca das possíveis hipóteses de configuração da responsabilidade internacional, as normas existentes sobre o assunto referem-se a princípios comumente aplicados para determinar quando e como um Estado é responsável pela violação de uma obrigação internacional. Ao invés de definir de modo específico que obrigações, em particular, ensejariam a responsabilização estatal, as regras da responsabilidade in voga determinam, de forma geral, quando uma obrigação internacional foi desrespeitada e as consequências jurídicas dessa violação. Dessa forma, elas são tidas como normas secundárias por tratarem de questões procedimentais da responsabilidade e dos recursos disponíveis perante a violação de normas primárias ou substantivas do Direito Internacional (CRAWFORD, 2003).

Devido a essa generalidade, as regras secundárias podem ser estudadas independentemente das normas primárias da obrigação (CRAWFORD, 2003). As normas secundárias estabelecem as condições para um ato se qualificar como internacionalmente ilícito; as circunstâncias em que as ações de funcionários, particulares e outras entidades podem ser atribuídas ao Estado; as defesas gerais que podem ser apresentadas; e as consequências da responsabilidade estatal. Desse modo, em toda obrigação existe um dever jurídico original, ao passo que na responsabilidade há, diferentemente, um dever jurídico sucessivo. E como a responsabilidade acaba por dialogar com a obrigação originária, quando se desejar saber quem é o sujeito responsável pelo ilícito, importará observar a quem a norma imputou aquela obrigação.

Existem, todavia, certas peculiaridades a respeito da relação entre a obrigação e a responsabilidade dentro do contexto estudado, em razão das particularidades que diferenciam a responsabilidade internacional, objeto do recorte proposto, da responsabilidade jurídica geral, aplicada nos sistemas jurídicos internos dos países.

Em que pese o ordenamento jurídico de um extenso rol de nações já admita a responsabilidade do Estado ou de seus funcionários nos âmbitos civil e/ou administrativo na hipótese de lesão até mesmo do direito do estrangeiro, tal responsabilização é de cunho interno e limitada ao caráter eminentemente nacional do julgado, já que se aplica por intermédio dos tribunais dos próprios países, sob a máxima do princípio da soberania. Cuida-

se de sentença nacional que exige homologação para ser reconhecida no âmbito territorial do Estado em que a mesma não foi proferida.

A responsabilidade internacional, por sua vez, pugna pela responsabilização do ente agressor perante a ordem internacional, geralmente através de cortes arbitrais ou judiciais internacionais, sempre que negada uma reparação espontânea através do ordenamento interno dos países. Além disso, a responsabilidade em contexto será, em regra, de Estado a Estado53, mesmo quando um particular for vítima ou autor do ilícito, e terá como finalidade a cessação de uma prática antijurídica e a reparação do prejuízo causado, já que sua natureza decorre de preceitos civilistas54.

É possível constatar, então, que a responsabilização internacional apresenta como principais características: o seu caráter interestatal; a sua finalidade reparatória de natureza civil; a sua orientação de instituto consuetudinário, uma vez que inexiste tratado internacional, em sentido estrito, disciplinando a matéria55; o aspecto político do ilícito praticado56; e, para alguns, a possibilidade, diante da gravidade do fato, do interesse de reparação não ficar limitado ao Estado da vítima57. Tudo imiscuído, conforme acentua Gonçalves et al. (2017, p. 175), na inserção da responsabilidade internacional do Estado dentro do contexto dos regimes jurídicos de responsabilização vigentes na contemporaneidade:

Grosso modo, portanto, podemos dizer que há dois regimes distintos de responsabilidade internacional dos Estados:

1) regime geral: envolve as relações Estado-Estado, em que a violação da obrigação internacional se dá em relação a uma obrigação assumida perante outro Estado ou relativa a interesse deste (ex: Caso Lótus);

2) regime objetivo dos tratados de direitos humanos: envolve relações Estado- indivíduo e a violação de uma obrigação assumida perante toda a comunidade internacional.

Com a evolução de seu marco teórico junto à Comissão de Direito Internacional da ONU (Amador, Ago e Crawford), a responsabilidade internacional do Estado, defende-se nesta obra, passou de um instituto que contempla um único regime jurídico – representativo

53 Embora a regra de responsabilidade seja de Estado a Estado, vem-se entendendo na doutrina jusinternacionalista a possibilidade de uma organização internacional figurar nos polos passivo ao ativo da reparação. Para estudos mais aprofundados, vide Rezek (2005, pp. 269-270).

54 De acordo com Mello (2004, p. 523), o Direito Internacional Público “praticamente não conhece a responsabilidade penal”.

55 Ramos (2017, p. 50) indica que a discussão acerca da força vinculante de atos internacionais pode levar a três vertentes possíveis: (a) atribuição de força vinculante por constituírem interpretação autêntica dos direitos humanos; (b) existência de força vinculante por representar costume internacional sobre a matéria; (c) representação tão-somente de soft law sobre a matéria, sendo um conjunto de normas não vinculantes, mas que buscam dar orientação aos Estados.

56 “[...] a responsabilidade internacional continua sendo um instituto consuetudinário com aspecto político, na tentativa de limitar o uso da força ou de evitar a guerra” (DEL’OLMO, 2006, p. 130).

57 Nesse entendimento, o Capítulo IV do Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional do Estado e, ainda, Mello (2004, p. 523), para quem teríamos como exemplos de tutela universal o aparthied e o genocídio.

dos interesses dos Estados e que assegura, mediante juízo discricionário, a defesa dos interesses do indivíduo de acordo com a regra da proteção diplomática58 – para um sistema de natureza dúplice. Nesse novo sistema, há a coexistência do regime jurídico anterior com a atuação de órgãos jurisdicionais internacionais de proteção aos direitos humanos, nos quais o indivíduo tem a possibilidade de acionar diretamente, dentro de um sistema de garantias, órgão não jurisdicional que poderá conduzir a sua demanda, independente da chancela do seu Estado nacional, a uma corte internacional.

Vigem, assim, na moderna teoria da responsabilidade internacional dois regimes jurídicos independentes e com regras procedimentais próprias. Um sistema ordinário, nominado de regime geral, e um sistema extraordinário, intitulado de regime objetivo dos tratados de direitos humanos, que envolve relações, tanto Estado-Estado59, quanto Estado- indivíduo60, com regras que consideram a responsabilidade internacional como uma violação de obrigação assumida perante toda a comunidade internacional.

Em consonância com esse entendimento, Piovesan (2015, p. 140) assevera que, se a hipótese de violação de direitos advindos de normas de jus gentium for proferida diretamente ao indivíduo, não haveria porque a imputação da responsabilidade limitar-se à esfera do Estado, tal qual sedimentado na teoria mais tradicional, mas sim caberia à própria pessoa lesada, enquanto vítima imediata do ilícito e interessado em sua compensação, uma posição de protagonismo nas relações internacionais:

A constatação da necessidade de reconstruir os direitos humanos faz nascer a certeza de que a transgressão aos mesmos não pode ser concebida como questão de jurisdição doméstica do Estado. Neste cenário, afasta-se a ideia da soberania absoluta dos Estados, em seu domínio reservado, ao reconhecer que os seres humanos têm direitos sob o direito internacional e que a denegação desses direitos enseja a responsabilidade internacional dos Estados independentemente da nacionalidade das vítimas de tais violações; erigindo os indivíduos à posição de sujeitos de direito internacional.

A par desse fragmento, observa-se uma firme sinalização da doutrina contemporânea de que, ao lado da responsabilidade Estado-Estado, mais consolidada na seara internacional, coexiste a possibilidade de responsabilização Estado-indivíduo, desde que apropriada ao caso

58 Para mais informações, vide o tópico 6.2.1.

59 No sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, de acordo com o art. 44 da CADH, os Estados membros da OEA podem apresentar à Comissão IDH petições que contenham denúncias ou queixas de violação da Convenção por um Estado Parte. Ainda segundo o art. 61 da CADH, apenas Estado ou a Comissão IDH podem submeter casos à Corte IDH.

60 A relação Estado-indivíduo no regime objetivo dos tratados de direitos humanos é mediatizada, como regra, por órgão de cunho não jurisdicional, como ocorre no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, no qual há a atuação prévia da Comissão IDH, que recebe a petição do indivíduo e instaura procedimento de apuração antes do encaminhamento do caso, mediante sua chancela ou de Estado, à Corte IDH.

proposto, cabendo discutir, em capítulo específico desta obra61, em que hipóteses haveria a primazia de uma ou de outra. Até mesmo porque a teoria da responsabilidade internacional do Estado, conforme verificado, não é estática, vem recebendo tratamento diverso ao longo dos anos como resultante do aprimoramento do comprometimento global para com a efetivação de uma sociedade internacional pautada no reconhecimento de direitos extraterritoriais e na responsabilização de seus membros.

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