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O instituto da responsabilidade internacional do Estado, em razão do longo processo que atravessou para ter o seu florescimento na sociedade internacional, datado somente do início do século XX, ainda enfrenta, na realidade de alguns Estados, a condição de alegoria cuja executoriedade é condicionada ao exercício de uma soberania irrestrita, antiquada e segregadora. Responsabilidade e soberania são padrões dialógicos que podem (e devem) se apresentar, no contexto da modernidade, como facetas de uma mesma atuação do Estado que corrobore para uma interação que comporte, ao mesmo tempo, o respeito ao que é soberanamente pactuado e o cumprimento do objeto desta pactuação, sob pena de configurar um ilícito passível de responsabilização internacional.

Bauman (1999, p. 19), ao mencionar a diminuição das fronteiras globais e a necessidade reflexa de se repensar o critério estático de soberania, encampa essa inter-relação: As distâncias já não importam, ao passo que a ideia de uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de sustentar no ‘mundo real’. Parece claro de repente que as divisões dos continentes e do globo como um todo foram função das distâncias, outrora impositivamente reais devido aos transportes primitivos e às dificuldades de viagem. Com efeito, longe de ser um ‘dado’ objetivo, impessoal, físico, a ‘distância’ é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida [...]. Todos os outros fatores socialmente produzidos de constituição, separação e manutenção de identidades coletivas – como fronteiras estatais ou barreiras culturais – parecem, em retrospectiva, meros efeitos secundários dessa velocidade.

A sociedade presente, modificada pelo fim das distâncias e de uma efetiva fronteira geográfica, é o que Bauman (1999, p. 8) entende como a institucionalização da globalização, a qual se tornou, para o autor, um processo latente e irreversível. Em um mundo cada vez mais globalizado, a restrição ao local é vista por Bauman (1999, p. 41) como privação e degradação social, enquanto que a globalização, em seu aspecto plural, deve ser o modelo a ser seguido por todos, ultrapassando a guerra moderna pelo espaço que faz com que o Estado busque um mapa oficialmente aprovado e desqualifique interpretações alternativas20, com o desativamento de outras instituições cartográficas que não foram estabelecidas, licenciadas ou financiadas diretamente pelo Estado.

A questão do Estado soberano em tempos de globalização apresenta, no entanto, alguns paradoxos. Existem, para Bauman (1999, p. 72), aqueles que tentam impor ordem dentro do seu espaço, exorbitando o preceito de soberania; os que tentam desistir dos direitos soberanos; e os Estados que estavam esquecidos e pretendem se tornar um corpo político

20 “Anteriormente, era o mapa que refletia e registrava as formas do território. Agora, era a vez do território se tornar um reflexo do mapa, ser elevado ao nível da ordenada transparência que os mapas se esforçavam por atingir” (BAUMAN, 1999, p. 42).

conciso. Nada obstante, no contexto geral, o que acontece, para o autor, é a morte da soberania dos Estados, onde estes não têm recursos suficientes e liberdade para evitar um colapso. Existiria, de modo simultâneo, a sua fragmentação política e a globalização:

O significado mais profundo transmitido pela idéia da globalização é o do caráter indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro, de um painel de controle, de uma comissão diretora, de um gabinete administrativo. [...] Havia agora Estados que, longe de serem forçados a desistir de seus direitos soberanos, tentavam com todo afã abrir mão deles e imploravam que sua soberania lhes fosse tirada e dissolvida em formações supraestatais. [...] Paradoxalmente, foi a morte da soberania do Estado, não o seu triunfo, que tornou tão popular a ideia da condição estatal (BAUMAN, 1999, pp. 67-72).

A ressignificância de conceitos como o de soberania servem como indicadores de um cenário internacional em transformação, em que se discute as novas estruturas de poder e o seu exercício por meio de critérios de responsabilização internacional. Panorama esse que reflete a adoção de uma maior integração política e cultural entre Estados, com implicações que repercutem em fatores como a reestruturação de arranjos institucionais internos e externos das soberanias a fim de promover obrigações internacionais previstas em tratados por si celebrados ou valores deles emprestados ao ordenamento nacional, a teor do acentuado por Ramos e Pinheiro (2015, pp. 405-406):

A configuração do mundo moderno aponta para estruturas de exercício do poder marcadas pela integração política e econômica como estratégia diante das exigências oriundas do processo de globalização, o qual desempenha papel catalisador da necessidade de se repensarem as formas de relacionamento entre os países, bem como os arranjos institucionais internos. A globalização é o fenômeno econômico, cultural e político que provoca consequências diretas na capacidade de atuação do Estado enquanto promotor do bem comum e garantidor dos direitos fundamentais estabelecidos nas constituições e nos Tratados.

Essa transformação da imagem usual da soberania por meio de um contínuo processo de globalização não significa, todavia, que houve a perda do direito de autodeterminação dos Estados pactuarem os termos da integração internacional, sob o assento de corolários como o livre consentimento, a boa-fé e a pacta sunt servanda21. O que houve, em verdade, foi a modificação da maneira com que as nações e a sociedade internacional estabelecem as suas relações corriqueiras e se responsabilizam por um sistema de proteção de direitos que atravessa limites territoriais:

A responsabilidade interage com a noção de soberania e afeta sua definição, enquanto, reciprocamente, a onipresença da soberania nas relações internacionais influencia inevitavelmente a concepção de responsabilidade internacional. Ao mesmo tempo, a responsabilidade evoluiu profundamente, juntamente com o próprio direito internacional: a responsabilidade é o corolário do direito internacional, a

21 Para Pagliarini (2014, p. 46), se “o Estado ‘x’ viola o tratado que mantém com o Estado ‘y’, cabe a este último impor as sanções que estiverem previstas no instrumento pactício ou as que achar pertinentes dentre as possíveis no Direito Internacional Geral (o costumeiro). Por isso, tem sido a base do Direito Internacional aquela mesma que sustenta o Direito dos Contratos: a pacta sunt servanda”.

melhor prova da sua existência e a medida mais crível da sua eficácia22 (PELLET, 2010, p. 3).

A soberania, sob essa óptica, passa de um conceito fechado a um significado aberto e redimensionado que se faz imprescindível ao exercício dos direitos de integração e cooperação internacional, que, em último caso, constituem um primado da livre manifestação da independência estatal, já que apenas o Estado tem, como regra, o poder de estabelecer a sua anuência a qualquer regime internacional:

Há quem diga, atualmente, que o conceito de soberania teria sido submetido a erosão, fragilização ou descaracterização (já que seria muito difícil falar em relativização sem entrar em contradição), que já não seria possível aplicá-lo. Outros sustentam que a cooperação e a intervenção internacionais (principais elementos responsáveis pela corrosão) constituem o próprio exercício da soberania, que permite a um Estado se vincular a um regime internacional, ou a outros Estados, em questões que lhe interessem, ou para fazer frente a situações em que há um claro interesse comum (BIERRENBACH, 2011, pp. 36-37).

Fato é que, se levado o princípio da soberania a um rigor intangível, não só o instituto da responsabilização internacional, mas outros, como a validação e a execução de sentenças estrangeiras, estariam fadados à inaplicabilidade, o que, segundo aponta Strenger (2003, p. 50), representaria uma notória injustiça e feriria os direitos das partes:

Aplicando rigorosamente o princípio da soberania, as sentenças estrangeiras não têm força legal alguma, quando os mandatos ou decisões das autoridades administrativas ou judiciais de um Estado não podem valer, a não ser nos limites do respectivo território, porém não além deste. Sem embargo, tal resultado seria manifestamente injusto, e vulneraria os direitos adquiridos pela parte favorecida.

Partindo desse pressuposto, é necessário entender que, a despeito da soberania, a ideia de responsabilidade é inerente a qualquer modelo jurídico, sob pena de, não sendo observada, inviabilizá-lo. A aludida responsabilidade é aquela compreendida, ao menos em sua acepção mais genérica, como “o compromisso decorrente de atos ou omissões, culposos ou dolosos, que tenham como resultado danos materiais ou morais a terceiros entes” (DEL’OLMO, 2006, p. 129), impondo-se, no entanto, para a adequada aplicação do conceito à sociedade internacional, a feitura das modulações pertinentes.

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