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3.3 Causas de exclusão de responsabilidade

3.3.2 Das circunstâncias em que o ilícito ocorre independentemente da vontade do Estado:

Para os casos de condutas internacionais que, embora aparentemente ilícitas, independam da vontade do Estado infrator, tem-se que a exclusão da ilicitude poderá sobrevir se fundada a sua antijuridicidade numa força irresistível ou num evento danoso imprevisto. Regra essa que se sustenta no princípio de que, ao menos para os casos gerais de responsabilização estatal, tais ilícitos alheios ao controle do Estado teriam a benesse de isentar os sujeitos infratores de qualquer imputabilidade internacional, por se entender que o

145 “[...] o problema do estado de necessidade é que há uma norma de ‘jus cogens’ que proíbe o recurso à força” (MELLO, 2004, p 540).

146 Para Arantes Neto (2008, p. 106), essa “solução do art. 26 evidencia a crescente afirmação das normas primárias imperativas e de um regime de proteção da ordem pública no direito internacional contemporâneo”.

resultado prático dessas excludentes tornaria materialmente impossível o adimplemento da obrigação internacional por parte daquele ente agressor.

A fim de avaliar a viabilidade da aplicação dessas excludentes de responsabilidade aos ilícitos praticados pelos tribunais dos Estados, necessária se faz a adoção da sistemática introduzida no tópico anterior para o exame individualizado das espécies de exclusão que independem de ato volitivo do Estado infrator. De início, cumpre enfatizar que o art. 23 do Projeto de Codificação da CDI institui, sob o título de “força maior”, tanto o conceito jurídico de caso fortuito, quanto o de força maior propriamente (PEREIRA, 2000; ARANTES NETO, 2008). Situação essa que não se trata de um acaso, já que ambas as hipóteses de exclusão indicadas designam condutas estatais contíguas e desprovidas do elemento do livre-arbítrio.

Nesse contexto, o gênero força maior pode ser conceituado como o acontecimento de uma força irresistível (força maior) ou de um acontecimento imprevisível (caso fortuito) superiores ao exercício de controle do Estado, o que torna materialmente impossível o cumprimento da obrigação internacional. Tornam-se indispensáveis para a sua configuração os requisitos da irresistibilidade, da imprevisibilidade e da exterior motricidade. Assim, desde que configurados esses requisitos, não é possível antever qualquer óbice à aplicação da força maior como mecanismo de exclusão da ilicitude dos atos jurisdicionais, quer porque os elementos de configuração da força maior demonstram a total impossibilidade de se exigir do Estado uma conduta diversa no caso concreto, quer porque a própria Codificação da CDI não estipulou vedações práticas à incidência dessa excludente nos atos dos tribunais dos países.

Com base nesse estorvo, pugna-se pela total inaplicabilidade da norma do art. 26 da Codificação da CDI147 à hipótese em comento, uma vez que, apesar das garantias do devido processo legal e do acesso ao Judiciário terem inegavelmente caráter imperativo, há, no caso da força maior, a ausência de uma conduta livre e voluntária do Estado em prol da denegação desses direitos ao estrangeiro. Faz-se válido, nesse entendimento, perfilhar-se à doutrina encabeçada por Arantes Neto (2008, pp. 105-106):

[...] nas hipóteses de caso fortuito e força maior, circunstância exteriores tornam materialmente impossível o adimplemento da obrigação pelo Estado. Aplicada a esses casos, a norma do art. 26, por um lado, carece de utilidade, já que não promove o cumprimento de obrigação decorrente de norma imperativa (o Estado violará a obrigação a despeito de sua intenção de cumpri-la).

Subsistem, assim, exemplos práticos nos quais a responsabilidade do Estado pode ser excluída por ilícitos judiciais subjugados à força maior. São os casos de enchentes, incêndios,

147 PRIE, art. 26. Cumprimento de normas imperativas. Nada neste Capítulo exclui a ilicitude de qualquer ato de um Estado que não esteja em conformidade com uma obrigação que surja de uma norma imperativa de Direito Internacional geral.

abalos sísmicos ou outras catástrofes naturais que suspendam o regular processamento do feito do estrangeiro ou dificultem o seu acesso aos tribunais de um Estado e, ainda, os casos de greve, guerra, insurreição ou outros atos humanos imprevisíveis que impeçam o regular funcionamento do aparato judicial. Conjectura essa que, embora vedando, momentaneamente, o acesso do estrangeiro a uma Justiça regular, não podem ocasionar, até mesmo por preceitos de razoabilidade e proporcionalidade, uma maior responsabilização do ente soberano por um evento danoso que sequer adveio de sua vontade ou previsão.

Existem, de modo assecuratório, limites legais a essa não responsabilização estatal148. Dentre eles a imposição de que haja um mínimo de tratamento equitativo entre estrangeiro e nacional na circunstância concreta, de modo a evitar que o instituto da força maior seja utilizado como um mecanismo de discriminação do não-nacional. Outra hipótese possível de configuração dessa excludente é a prova de que o Estado não contribuiu, com sua conduta, para que a situação ilícita fosse produzida, por exercício comissivo explícito ou pela assunção do risco de sua ocorrência.

Cabe enfatizar que a mera dificuldade na consecução da obrigação internacional por parte dos tribunais dos Estados não é motivo suficiente à configuração da excludente:

No caso Rainbow Warrior (1990), o tribunal arbitral frisou que uma circunstância que torna o cumprimento da obrigação simplesmente mais difícil ou mais oneroso não cumpre o requisito da impossibilidade material e absoluta exigido pela força maior (ARANTES NETO, 2008, pp. 101-102).

No que se refere, por sua vez, à excludente de “perigo extremo”, é imperioso colacionar a distinção feita por Mello (2004, p. 504) entre o instituto e as hipóteses de caso fortuito e força maior:

Gutiérrez Espada faz as seguintes distinções: a) na força maior os órgãos que representam o Estado sofrem uma força irresistível que independe de sua vontade e os conduzem à violação do DI; b) na caso fortuito o Estado não tem meios para tomar precauções a fim de evitar a violação do DI. Gilles Cottereau neste caso afirma que a circunstâncias são tais em que o Estado não se apercebe de que pratica um ilícito; c) no perigo extremo o Estado viola o DI com a finalidade de evitar uma tragédia para ele.

Se as hipóteses de caso fortuito e força maior requerem uma impossibilidade material ou absoluta de cumprir a obrigação internacional, a hipótese de perigo extremo149 requer uma impossibilidade relativa de adimplemento, já que, neste caso, embora vigore uma questão de ordem humanitária, o agente agressor não estará agindo, propriamente, de forma involuntária,

148 “[...] o Estado tem uma obrigação moral e/ou de comportamento que em muitos dos casos deve vir à tona, evitando-se, assim, o uso freqüente da força maior” (PEREIRA, 2000, p. 359).

mas sim terá sucedido uma neutralização da sua liberdade de escolha em função da situação de perigo que enfrenta no caso concreto.

Na hipótese de perigo extremo, há, portanto, uma situação de risco extraordinário na qual se digladiam dois direitos fundamentais: salvar a vida de um funcionário ou de pessoa sob a guarda do Estado, violando obrigação internacional, ou respeitar a obrigação internacional, sacrificando a vida daqueles indivíduos. Não há dúvida que, pelos direitos em choque e em concordância com o princípio da proporcionalidade, deve prevalecer, in casu, o direito à vida do funcionário ou do protegido do Estado em detrimento de qualquer outro direito pleiteado pelo estrangeiro junto ao Estado alienígena. Ressalva que deverá ser elidida se o direito do estrangeiro ameaçado for de igual magnitude ao defendido pelo ente público ou se a situação de perigo for devida à conduta exclusiva do Estado que a invoque.

Nesse viés, não obstante a essencialidade dos direitos do devido processo legal, do livre acesso ao Judiciário e do julgamento materialmente justo, tais direitos não terão força suficiente a rebater o direito magno à vida se configurada a excludente de perigo extremo. Razão pela qual o mesmo deve ser aceito como causa de exclusão de responsabilidade por ato judicial, sob pena de fustigar os Direitos Humanos fundamentais (FERREIRA FILHO, 2016).

Ante todo o exposto, entende-se que as circunstâncias em que o ilícito internacional ocorre sem nenhuma possibilidade de configuração da vontade do Estado infrator, tais condutas têm a autoridade de excluir a ilicitude dos atos estatais inicialmente ilícitos. Exatamente em função desses sujeitos de DIP estarem impossibilitados de cumprir, ainda que naquele momento, as suas obrigações internacionais por fator de magnitude extraordinária e/ou exterior ao seu consentimento. Ademais, uma vez superada essa situação excepcional que impossibilita o cumprimento da obrigação internacional pelo Estado, deverá o mesmo cumpri-la de imediato, sob pena de responsabilização.

Em advindo qualquer perda material ao estrangeiro no período de vigência das excludentes aventadas, caberá, por força da alínea b do art. 27 do Projeto da CDI, a reparação patrimonial correspondente, sem configurar, no entanto, a hipótese sublinhada em consequências mais gravosas ao Estado infrator dentro do Direito Internacional.

4 A DENEGAÇÃO DE JUSTIÇA E O DIREITO DO ESTRANGEIRO

A ideia de denegação de justiça está intimamente ligada, conforme observado no capítulo anterior, à vedação pelo Estado do acesso formal ou material de seus tribunais ao estrangeiro. Essa atuação estatal descompromissada para com o não-nacional vem a desencadear um tratamento notoriamente discriminatório à pessoa humana pela sua simples condição de origem e nacionalidade, bem como a comprometer toda uma prestação jurisdicional justa e imparcial pelo Poder Judiciário, repercutindo em afronta à garantia mínima do que Mello (2004, p. 535) define como “mecanismo judiciário com funcionamento dentro de um standard internacional”.

Para Del’Olmo (2006, p. 133), a denegação de justiça ao estrangeiro é ato passível de responsabilização internacional e pode ser tomada como:

Normalmente a responsabilidade atribuível ao Judiciário reside na denegação da justiça, que ocorre quando o aparelho judiciário não cumpre sua finalidade, em prejuízo a estrangeiro. São casos em que ao forasteiro se impede o acesso aos tribunais ou se lhe negam ou suprimem parcelas de direitos acessíveis aos nacionais. Outros exemplos seriam sentenças injustas ou discriminatórias, detenções arbitrárias ou prolongadas e execuções sem julgamento.

Com o posicionamento supra alinhavado, é possível depreender que a denegação de justiça tem por aporte conceitual cercear ao estrangeiro o acesso aos meios regulares de jurisdição. Quer por não existir na legislação interna do Estado o devido processo legal para a proteção dos direitos que se alegue tenham sido violados; quer por não se permitir a quem teve um direito infringido o acesso aos recursos da jurisdição interna ou impedir o direito de esgotá- los; quer em razão da existência de julgamento flagrantemente prejudicial ao estrangeiro, no seu conteúdo, com a inobservância de tratados internacionais ou normas protetivas internas150.

Em todos esses casos, a prolação de decisões prejudiciais ao estrangeiro se dá, como regra, pela quebra do tratamento isonômico a ele dispensado pelo Poder Judiciário em comparação com o nacional, em razão da adoção de critérios denegatórios com base na origem e nacionalidade da parte. Por essa razão, tem-se por válido, ao estudar a denegação de justiça na praxe estatal, identificar, primeiramente, quem é a pessoa estrangeira a que o Estado está privando garantias e direitos humanos no seu exercício jurisdicional, bem como quais são essas

150 De acordo com o art. 46, 2, da CADH, a apresentação de petição ou comunicação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sequer precisa observar os requisito de esgotamento dos recursos da jurisdição interna e de apresentação da peça dentro do prazo de seis meses se houver denegação de justiça, como nos casos de “a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; “b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c. houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos”.

possíveis prerrogativas de índole protetiva ao não-nacional nas demandas judiciais em função da sua especial condição de vulnerabilidade e em defesa de direitos universais.

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