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3.1 Delimitação da figura jurídica

3.1.1 Da possibilidade de responsabilização do Estado por atos do Poder Judiciário

Dentre as construções mais basilares de qualquer teoria contemporânea do Estado está a viabilidade da atribuição de responsabilidade a esse sujeito político por prática contrária ao Direito vigente. É que uma vez superada a ideia de irresponsabilidade estatal na sociedade moderna95, começou-se a desenvolver nos ordenamentos ocidentais, a partir do século XVIII, a possibilidade de responsabilização do Estado pela infringência de seus órgãos e representantes legais ao direito nacional. Preceito que, mutatis mutandis, passou a ser partilhado pela sociedade das nações ao final do século XIX, num ideal inicialmente lastreado na responsabilidade por culpa, e que já no século XX teve a sua praxe de imputação baseada na teria do risco96.

Nesse passo, aclarada a possibilidade de imputação de responsabilidade ao Estado por ato contrário ao Direito vigente, tanto no plano interno, quanto no plano internacional, não cabe estabelecer tratamento jurídico diverso ao ilícito praticado por órgão ou membro do Poder Judiciário, se pautado nas mesmas circunstâncias de antijuridicidade de qualquer ato praticado por aquele ente estatal. Fundamentalmente em razão de a responsabilidade do Estado emergir de todo e qualquer ato ou omissão estatal contrários a suas obrigações regulares, sendo irrelevante a autoridade pública da qual provenha.

Enquanto integrante do Estado, o Poder Judiciário não pode se escusar da responsabilidade a este imposta por força da atual construção política do Estado-nação, a qual, embora estabeleça a independência dos Poderes, consagra, igualmente, a necessidade de sua harmonização e a indispensabilidade de que o Estado responda pelos atos de seus órgãos e representantes legais quando houver o exercício irregular de suas atribuições97.

95 Vide tópico 2.1.

96 Por força de tratados internacionais que versavam sobre direitos de terceira e quarta dimensões, como os voltados ao direito ambiental e ao direito aeroespacial.

97 No caso brasileiro, este preceito é contemplado no art. 37, § 6, da CRFB: “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa

É tendência, portanto, considerar que atos de órgãos e agentes internos geram a responsabilização internacional do Estado98, inclusive em se tratando de práticas emanadas pelo aparato judicial. Exatamente por ser o Poder Judiciário componente da estrutura organizacional de dada soberania, em que pese a sua independência em relação aos demais poderes e ao próprio governo, não podendo se conjecturar, desse modo, que os meios de tutela jurídica disponibilizados pelo Estado-julgador sejam, nem de longe, absolutos ou infalíveis.

A título ilustrativo, é válido colacionar os ensinamentos de Mazzuoli (2015, p. 571) sobre essa possibilidade de imputação internacional de responsabilidade ao Estado em função de atos do Poder Judiciário:

O Poder Judiciário, por sua vez, não obstante ser independente e ter garantida a sua atuação jurisdicional, também pratica ilícito internacional, afetando o Estado em matéria de responsabilidade internacional. Para o direito das gentes, os atos do Poder Judiciário são, em última análise, atos estatais e como tais devem ser compreendidos. Tal ocorre, por exemplo, quando a justiça de um país julga em desacordo com tratado internacional ratificado pelo Estado e em vigor internacional, ou mesmo quando não julga com base em tratado internacional que deveria conhecer, denegando o direito da parte que o invoca com base em convenções internacionais.

Amparado nessa premissa, Cappelletti (1989, p. 10) estabelece que é necessário consolidar a atribuição de responsabilidade ao Estado em decorrência de atos judiciais com base em um modelo de responsive law99. Justamente porque, de acordo com o referido jurista, esse é o padrão que, aplicado ao caso, “se esforça em realizar o equilíbrio entre independência e responsabilidade-controle social, com o fim de evitar, ao mesmo tempo, a sujeição e o ‘isolamento’ da magistratura”.

A ponderação de Cappelletti (1989) soa pertinente ao se coadunar com a preocupação de que a responsabilidade civil por ilícito judicial, dentro de um sistema de responsive law, não deva ser estendida ao Estado apenas em limites extremamente reduzidos, de modo a não cumprir a função social da norma jurídica cogente. Para esse autor, no caso de uma hipotética incidência exclusiva desse ônus de reparação sobre a pessoa do agente público (magistrado), existiria, por via reflexa, somente uma pseudo-responsabilização estatal, já que o ente político, em tais circunstâncias, não responderia diretamente pelos encargos decorrentes do ilícito.

qualidade, casarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

98 Barroso (2014, p. 440) cita, inclusive, o dever dos Estados serem responsabilizados internacionalmente por atos de suas subdivisões políticas, como os estados-membros de uma federação ou os seus municípios.

99 O modelo da responsive law, elaborado por Nonet e Selznick, se firma no ideal de que o direito deve ser condizente com as necessidades e solicitações sociais. Para Cappelletti (1989, p. 10), é “a atual tendência evolutiva do mundo ocidental”.

Essa responsabilização ressarcitória por ilícito judicial tem como base condutas que não podem ser configuradas nem como hipótese de responsabilidade personalíssima do agente público (magistrado), nem tampouco como uma responsabilidade do Estado que se acrescentou ou substituiu à primeira. Devem ser tomados, por adequação, como casos de responsabilidade direta e objetiva do Estado de restaurar o cumprimento da norma internacional denegada e reparar o dano a quem se tornou vítima do erro judiciário, independentemente da existência de dolo ou culpa no ato do juiz.

Reafirmando essa possibilidade de responsabilização do Estado em face de atos de seu corpo de magistrados, Calamandrei (2015, p. 51) pondera que a própria natureza humana dos agentes públicos e a sua consequente falibilidade ante a condição de sujeito mortal (e, por conseguinte, passível de erros) podem ensejar o descumprimento de normas jurídicas ou a denegação da justiça no curso de seu exercício laboral:

Não é honesto [...] refugiarem-se atrás da cômoda frase feita de quem diz que a magistratura é superior a toda crítica e a toda suspeita: como se os magistrados fossem criaturas sobre-humanas, não tocadas pela miséria desta terra, e por isto intangíveis. Quem se satisfaz som estas vãs adulações ofende a seriedade da magistratura.

Raciocínio similar serve para substanciar o necessário rechaçamento à ideia de que a responsabilização do Estado, no plano internacional, pode se dar, de maneira plena e suficiente, com as hipóteses de controle de atos judiciais exercidos interna corporis pelo Poder Judiciário. Ainda mais se observado que, para Cappelletti (1989, p. 11), o marco característico desse controle disciplinar de natureza administrativa é, em muitos países, a sua feição lenta e esporádica:

[...] historicamente os sistemas de controle, atuantes principalmente dentro da categoria, têm dado resultado negativo. Tais sistemas são característicos das magistraturas de tipo “corporativo”, fechadas e hierárquicas, e não do tipo responsive, ou seja (sempre nos limites inderrogáveis de uma substancial independência), abertas e sensíveis às pressões da comunidade.

Ressalte-se que propostas de responsive law que buscam traduzir a responsabilidade civil em forma, procedimento e sanções exclusivamente disciplinares ou administrativas não resistem a uma análise mais factível da responsabilidade estatal, pois esquecem o caráter potencialmente reparatório de todo fato ilícito. São igualmente equivocadas por não levarem em conta, na sua elaboração, a irresignação da parte prejudicada com a ilicitude perpetrada pelos agentes dos tribunais internos dos Estados no manejo de suas atividades jurisdicionais. Base essa sob a qual fora inclusive desenhado por Cappelletti (1989, pp. 8-9) o parâmetro geral de fixação da responsabilidade advinda de ato do Poder Judiciário:

Não era concebível que [...] pudesse se perpetrar um sistema jurídico carente, ao mesmo tempo, de profissionalidade e de responsabilidade: ou seja, um ordenamento

no qual os juízes [...] ficassem, outrossim, completamente imunes de responsabilidade perante as parte e outros sujeitos prejudicados por atos ou omissões viciadas de culpa, inclusive gravíssima do magistrado.

A responsabilidade judiciária há que ser fixada, portanto, em qualquer ordenamento jurídico que preze pela garantia de direitos mínimos a seus jurisdicionados, como um verdadeiro corolário de subsunção do Estado a conceitos maiores de justiça e moralidade, de maneira que, uma vez violados tais preceitos fundamentais, caberá a apreciação imparcial dessa antijuridicidade pelo órgão competente, a teor do instituído pelo direito correlato, quer seja ele interno, quer seja internacional.

Para que o modelo proposto não sofra apego a conceitos demasiadamente abstratos, deverá ser observado pelo operador do Direito o sopeso entre o princípio da responsabilidade democrática dos titulares do poder público em face dos cidadãos, enquanto preceito estruturante de um Estado garantista, e o princípio da independência do Poder Judiciário, de forma a superar qualquer ambiguidade representada pelo conceito de responsabilidade judicial. Caberá, nesse sentir, um equilíbrio entre o valor democrático do dever de prestar contas e o valor da preservação da autonomia do Poder Judiciário.

Essa parece ser, inclusive, a preocupação de Cappelletti (1989, p. 17):

Responsabilidade judicial pode significar tanto o poder dos juízes, quanto o seu dever de prestação de contas (“accountability”, “answerability”) no exercício de tal poder-responsabilidade. Ainda no seu primeiro significado, de resto, trata-se de um poder que é ao mesmo tempo um dever: o dever do juiz exercer a função pública de julgar. E porque o exercício de tal função é disciplinado por regras e princípios, escritos ou não escritos, a óbvia conseqüência será uma responsabilidade no sentido ulterior de sujeição e sanção (“liability”) daqueles que, em tal exercício, violem essas regras ou princípios, e/ou daqueles comprometidos com uma “responsabilidade substitutiva”, para o caso de tal violação.

Em que pese a concepção de responsabilidade ora tratada se afinar com maior simetria ao último dos significados propostos por Cappelletti para o termo accountability – dever de prestar contas em sentido lato –, a compreensão do problema da responsabilidade judiciária, na sua íntegra, só pode ser dada mediante a conexão entre as duas concepções de responsabilidade supra indicadas: a responsabilidade como poder-função e a responsabilidade como dever de prestar contas e suas eventuais sanções. Tudo por conta da ideia de que um poder sem responsabilidade é incompatível, quer em essência, quer na esfera do controle jurisdicional, com a vigência de um sistema democrático100.

Nesse escopo, a tendência evolutiva da responsabilidade no cenário mundial é no sentido de sujeitar os juízes a um controle, com a finalidade de lhes preservar a conduta e a

100 “[...] um poder não sujeito a prestar conta representa a patologia, ou seja, isto que [...], em ciência política, se pode simplesmente rotular de autoritarismo e, na sua expressão extrema, de tirania” (CAPPELLETTI, 1989, p. 18).

eficiência e de lhes assegurar o dever de responsabilidade101, sem por outro lado diminuir excessivamente a sua autonomia e independência. Para o alcance desse mister faz-se necessária a individualização do agente imediato do ilícito e o aclaramento do órgão incutido de averiguar a responsabilidade estatal102. Essencialmente porque a própria evolução histórica do conceito de responsabilidade do Estado tem contemplado, conforme visto, a atribuição reparadora do ente político pelo ilícito praticado por seus funcionários e, de outro viés, tem instituído a competência do Poder Judiciário para julgar a reputada ilicitude e estabelecer uma possível reparação ao sujeito prejudicado.

Para Cappelletti (1989, p. 18), embora essa tarefa tenha por escopo a responsabilização do juiz, da magistratura e do Estado pelos ilícitos do Poder Judiciário, o ente estatal não pode se abster de respeitar, internamente, a independência dos Poderes. Desse modo, levando-se em consideração que o Estado é um ente soberano único na esfera internacional, detentor de personalidade jurídica que alberga todos os seus órgãos administrativos e jurisdicionais no plano externo, e que eventuais divisões internas quanto às atribuições de seus órgãos não são do interesse do instituto da responsabilidade internacional, fica refutado o argumento de que a independência do Poder Judiciário seria fator suficiente à impertinência da responsabilização estatal.

Vencido esse ponto, é necessário debater acerca da plausibilidade, ou não, de outros princípios apontados como possíveis obstáculos à responsabilidade judicial: o princípio de que o Estado não comete injustiças e o princípio da coisa julgada.

O entendimento de que o Estado, enquanto fonte estruturante do Direito103, não pode cometer injustiças e que seus atos são sempre presuntivamente lícitos teve, por séculos, papel preponderante em países como Inglaterra, França e Itália (CALAMANDREI, 2015, p. 50). A ideia de soberania era considerada, naquele contexto, como inconciliável com a de responsabilidade do Estado. Não obstante a existência dessa premissa, tal perspectiva, a contar do século XVIII, restou modificada a ponto de não mais sustentar um juízo de

101 “[...] na medida em que os juízes têm assumido poderes que os conduzem a decisões concernentes a interesses vitais, aumentou para as partes o incentivo a invocar a responsabilidade dos juízes, fenômeno que se tornou particularmente evidente em casos concernentes às liberdades civis” (CAPPELLETTI, 1989, p. 24).

102 Para Cappelletti (1989, p. 18), é necessário que exista uma razoável relação de proporcionalidade entre poder público e responsabilidade pública, de sorte que ao crescimento do próprio poder corresponda um aumento dos controles sobre o exercício de tal poder. “Esta relação é inerente ao que se costuma chamar de sistema de freios e contrapesos, checks and balances”.

103 “[...] indispensável empregar o termo fonte do direito para indicar apenas os processos de produção de normas jurídicas. Tais processos pressupõem sempre uma estrutura de poder, desde o poder capaz de assegurar por si mesmo o adimplemento das normas por ele emanadas (como é o caso do poder estatal no processo legislativo) até outras formas subordinadas de poder que estabelecem, de maneira objetiva, relações que permitem seja pretendida a garantia de execução outorgada pelo Estado” (REALE, 2002, p. 139).

irresponsabilidade estatal por atos de órgãos e funcionários internos, uma vez que o Estado104 passou a responder, a princípio, pelos ilícitos cometidos em seu nome perante qualquer prejudicado.

Em relação ao princípio da coisa julgada, ele está firmado no argumento de que as decisões judiciais são normalmente sujeitas a recurso e que este constitui o instrumento regular e suficiente das partes para se proteger contra eventual decisão injusta. Para parcela da doutrina, a responsabilidade civil sequer poderia ser reconhecida em tais casos, dado que ela pressuporia um ato contrário ao Direito. Nessa senda, Cappelletti (1989, p. 29) elucida:

[...] a “lógica” que está à base do argumento, segundo o qual, por isso que a res judicata cria o direito, ela não pode ser contra jus, não é absolutamente mais rigorosa do que a “lógica” que estava na base do princípio, segundo o qual, uma vez que o rei - ou o Estado - é a exclusiva fonte do direito, o ato do soberano ou do Estado não pode ser contrária ao direito.

Apesar da importância da coisa julgada enquanto instituto de segurança processual, tal princípio não exibe um caráter absoluto (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2006)105. A força de um princípio não está na consumação de uma lógica formalmente abstrata, mas apenas nos fins ou valores que os sistemas jurídicos intentam perseguir mediante aquele princípio, os quais devem ser fundados em standards como a paz social e a certeza do direito.

O princípio da coisa julgada tem entre as suas razões de ser a preservação da garantia de que o juiz poderá desenvolver com plena autonomia e independência as funções que lhe são demandadas pelo ordenamento jurídico, trazendo segurança ao esgotamento do seu ofício. Todavia, não pode esse princípio ser concebido como absoluto, a ponto de “constituir o preço que a coletividade seja chamada a pagar, em troca da independência de seus juízes” (CAPPELLETTI, 1989, p. 33). Essa problemática envolvendo a coisa julgada, mais do que se voltar à busca pela estratificação da res judicata em si, deve-se ater ao real conceito teleológico do princípio: a atuação concreta do Estado em prol de valores sociais fundados em normas de justiça que resguardem, ao mesmo tempo, o valor essencial da imparcialidade do juiz e o caráter participativo da função jurisdicional.

A própria natureza constitutiva da responsabilização internacional do Estado robustece a perspectiva sob análise, já que nela não é buscada a desconstituição em si dos julgados eivados de vício de legalidade ou crassa interpretação normativa, mas sim é

104 Essa responsabilização do Estado pode-se dar tanto por órgãos e agentes estatais, conjuntamente – como na Itália – ou por órgãos em substituição aos agentes – como na França (CALAMANDREI, 2015, p. 50).

105 “[...] mesmo as sentenças de mérito cobertas pela autoridade da coisa julgada material podem ser revistas em casos excepcionalíssimos, nos quais se relativiza a coisa julgada a bem da prevalência de valores humanos, políticos, morais etc. de envergadura maior do que aqueles que tiveram sido objeto da decisão” (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO, 2006, p. 327).

perseguida a cessação imediata da ilicitude e a reparação adequada ao indivíduo pelo dano sofrido. Razão essa que explicita a inexistência, in casu, de qualquer vilipendiamento do princípio da coisa julgada pelo instituto da responsabilização estatal, uma vez que presente, para a sua consecução, uma nova demanda judicial em curso, com pedido e causa de pedir distintos do processo originário.

Adverte, no entanto, Pereira (2000, p. 183) que na hipoteticidade de a parte prejudicada se omitir, intencionalmente ou por negligência, de fazer uso dos meios normais de impugnação da decisão injusta no âmbito interno, haverá a exclusão da responsabilidade do Estado se provada a incorrência em coisa julgada. Salvo se ficar comprovado que não existe na legislação interna do ente estatal o devido processo legal para a proteção do direito violado; ou se não foi permitido ao indivíduo o acesso aos recursos da jurisdição interna; ou se houver sido ele impedido de esgotá-los.

3.1.2 Da aplicação da teoria da responsabilidade internacional aos ilícitos cometidos pelo

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