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3.2 Hipóteses de responsabilização do Estado por atos do Poder Judiciário

3.2.3 Da denegação de justiça

Dentre as hipóteses de responsabilização atribuíveis ao Poder Judiciário, a denegação de justiça é a mais recorrente na prática internacional. Inicialmente empregada pelos tribunais internacionais de modo coextensivo com a noção de responsabilidade por dano causado ao estrangeiro, passou a ser considerada, com o tempo, uma categoria específica que reflete a insuficiência da atuação estatal, em especial, no que concerne à administração da justiça.

Em que pese haja algum dissenso doutrinário acerca da melhor definição da figura jurídica em comento126, certo é que a mesma pode ser aplicada às situações em que o aparelho judiciário não cumpriu a finalidade contida em sua atribuição primária, por exercer a sua atividade jurisdicional em prejuízo ao estrangeiro, quer seja este um indivíduo ou mesmo um Estado. Visando a um melhor deslinde da matéria, vale observar o sentido genérico de denegação de justiça adotado por parte da doutrina internacionalista:

É identificada (em lato sensu), esta denegação de justiça, com todo o ato danoso praticado por um Estado, através de qualquer de seus Órgãos (administrativo/executivo, judicial ou legislativo), em prejuízo de um súdito estrangeiro; de um Estado alienígena ou até mesmo uma Organização Internacional (PEREIRA, 2000, p. 178).

De acordo com a perspectiva de Pereira (2000), tem-se que o Estado será responsável pela denegação de justiça se da sua atuação resultar dano ao estrangeiro127. Postulado que não contempla com perfeita sintonia a acepção mais moderna do termo estudado enquanto mecanismo que recrimina a vedação pelo ente político do acesso formal ou material de seus tribunais ao estrangeiro e que se vale do desencadeamento da responsabilização internacional do Estado em função do descumprimento de comando vigente em tratado internacional.

Isso sem olvidar que a definição jurídica preconizada por Pereira (2000), por ser demasiadamente lata, poderia inclusive conduzir a uma interpretação temerária dos princípios

125 Para Mello (2004, p. 536), em se tratando de erro meramente interpretativo de norma internacional, o Estado não será responsável pela falha de tribunal cometida de boa-fé, pelo mau julgado.

126 “O significado da expressão ‘denegação de justiça’ não é pacífico entre os internacionalistas. Clyde Eagleton o entende como ‘toda violação do DI em detrimento do estrangeiro’. Para Lipstein, abrangeria também medidas administrativas e legislativas. O’Connell fala em denegação de justiça processual quando um tribunal comete uma injustiça no curso do processo” (MELLO, 2004, p. 553).

127 “[...] a denegação da justiça deve ser utilizada no sentido amplo, para designar qualquer ofensa cometida contra súdito estrangeiro, compromete a responsabilidade internacional do Estado (ou seja, a ofensa a um estrangeiro é o mesmo que ofender a seu Estado)” (PEREIRA, 2000, pp. 178-179).

gerais da responsabilidade judiciária do Estado, na medida em que, a teor da acepção proposta, a denegação de justiça acabaria estendida a todo ato ilícito dos Poderes do Estado, quer de ordem jurisdicional ou não, o que, de toda sorte, se mostra seguramente inverídico, já que a função jurisdicional típica do ente soberano está imiscuída ao Poder Judiciário128.

Apresenta maior plausibilidade, no entender desta pesquisa, a visão de denegação de justiça adotada por Accioly, Silva e Casella (2008, p. 352), de que ela “refere-se apenas à matéria judicial, mas não inclui todas as possíveis violações do direito internacional ou dos compromissos internacionais do estado por atos de seus órgãos judiciários”. Sob esse prisma, a denegação de justiça está correlacionada a qualquer obstação de direito, por parte do Estado, que venha a comprometer uma prestação jurisdicional justa e imparcial pelo Poder Judiciário e que viole as garantias mínimas do que Mello (2004, p. 535) define como um “mecanismo judiciário com funcionamento dentro de um standard internacional”.

A luz desse conceito tem-se que o Estado é responsável internacionalmente por sua falta de capacidade em assegurar certo grau de perfeição na administração da Justiça, o que, ao revés, não converge com a responsabilização estatal pelo simples resultado desfavorável de um processo judicial ao estrangeiro. Para que ocorra a denegação de justiça será necessário comprovar a negativa do Estado alienígena em dar ao estrangeiro acesso aos tribunais nacionais para proteger seus direitos, ou mesmo quando existir julgamento discriminatório a esse indivíduo em razão da sua condição de nacionalidade, dentre outras hipóteses elencadas por Del’Olmo (2006, p. 133):

[...] casos em que ao forasteiro se impede o acesso aos tribunais ou se lhe negam ou suprimem parcelas de direitos acessíveis aos nacionais. Outros exemplos seriam sentenças injustas ou discriminatórias, detenções arbitrárias ou prolongadas e execuções sem julgamento.

Cabe acrescentar a esse rol as antijuridicidades decorrentes do atraso injustificado no julgamento; da obstrução ao acesso às instâncias de base e aos tribunais; da grave deficiência na administração do processo judicial ou dos recursos a ele adstritos; da incapacidade do Estado assegurar as garantias que são consideradas indispensáveis à boa administração da justiça; e da ocorrência de um julgamento manifestamente injusto129. Em uma tentativa de sistematizar essas circunstâncias que desencadeiam a responsabilização por denegação de justiça, Mello (2004, p. 535) agrupou-as em duas vertentes distintas:

128 Em sentido contrário, a Doutrina de Heffter, para a qual os efeitos da denegação de justiça poderiam ser aplicados a todo ato legislativo ou decisão judicial/administrativa que ocasionasse evento danoso a terceiro alienígena (HEFFTER apud PEREIRA, 2000, p. 179).

129 “O erro de um tribunal interno que não produza uma injustiça manifesta não constitui uma denegação de justiça” (BROWNLIE, 1997, p. 554).

Este caso de responsabilidade ocorre quando existe uma denegação de justiça, que pode ser tomada em dois sentidos. Em sentido estrito, é quando o estrangeiro não tem acesso aos tribunais do Estado. Em sentido amplo abrange: a) o aparelho judiciário deficiente (ex: lentidão). b) a decisão judicial que for manifestamente injusta.

Apesar de ligeira desconformidade terminológica, as elucubrações acima também encontram guarida no entendimento de Accioly, Silva e Casella (2008, p. 352):

A denegação da justiça pode ser tomada em duas acepções: uma ampla e a outra restrita. Na primeira, é a recusa de aplicar a justiça ou de conceder a alguém o que lhe é devido. Na segunda, que é a idéia corrente em direito internacional, é a impossibilidade para determinado estrangeiro de obter justiça ou a reparação de ofensa perante os tribunais de outro estado.

Para os reputados autores, há um sentido amplo e um sentido restrito do conceito de denegação de justiça. O sentido amplo ocorre quando o Estado não fornece aos estrangeiros a devida prestação judiciária, ou porque não lhes permite o acesso aos tribunais internos, ou porque não possui tribunais adequados. O sentido restrito fica por conta dos casos em que os tribunais dos Estados não oferecem ao estrangeiro as garantias necessárias para a boa administração da justiça, como, por exemplo, na hipótese de negativa das autoridades judiciárias em conhecer demandas que os estrangeiros lhes submeteram por meios regulares e a cujo respeito tenham jurisdição, ou mesmo no acaso de as ditas autoridades se negarem a proferir decisões ou as retardarem obstinadamente.

Um tema delicado a ser enfrentado é a possibilidade de a parte prejudicada suscitar a denegação de justiça quando houver decisão judicial definitiva manifestamente injusta. Neste caso, para Accioly, Silva e Casella (2008, p. 353), somente restará configurada a denegação se a decisão atacada apresentar “caráter tão flagrantemente injusto e parcial, ou de tão evidente má-fé, que nenhum tribunal honesto a teria proferido ou só o poderia ter feito sob pressão externa”. Seriam hipóteses denegatórias em que o conteúdo da decisão careceria de análise para sinalizar a configuração de um ato lesivo ao estrangeiro.

Outro ponto controvertido acerca da conformação da denegação de justiça nos casos de julgados definitivos refere-se a verificar se as decisões flagrantemente errôneas podem constituir realmente uma denegação. Para Brownlie (1997, p. 555), “goza de autoridade a opinião de que um erro de Direito acompanhado de uma intenção discriminatória é uma violação do critério internacional”. De acordo com essa visão, a denegação de justiça consistiria em qualquer incapacidade do Estado de atingir um critério internacional de competência ao tratar do ato ilícito no âmbito de sua jurisdição territorial.

As respostas aos questionamentos aviltados encontram-se na aplicação do já referenciado critério do “mínimo internacional” aos ilícitos produzidos pelo Poder Judiciário,

uma vez que, no que concerne a uma atuação malsucedida de um tribunal nacional, será necessário fazer a distinção entre as ideia de erro judicial e de injustiça manifesta para averiguar a hipótese de denegação de justiça:

Não se deve, porém, confundir a injustiça manifesta com o simples erro. Evidentemente, ninguém poderá pretender que as decisões judiciárias sejam infalíveis, mas se o erro cometido não representa injustiça palpável ou não constitui, em si mesmo, a violação de obrigação internacional, a responsabilidade do estado não será comprometida (ACCIOLY; SILVA; CASELLA, 2008, p. 353).

Destarte, se um tribunal comete erro de julgamento por mera interpretação equivocada de lei, mas procedeu de boa-fé e nos limites de sua competência, não haverá se cogitar, em princípio, a ocorrência da denegação de justiça. Esse raciocínio de nenhuma forma implica, todavia, na exclusão da responsabilidade estatal por esse ato do Poder Judiciário se incidente em qualquer das outras formas de responsabilização do Estado130.

Para a ocorrência da denegação de justiça deverá haver, portanto, uma violação clara e inequívoca do Direito Internacional confirmada ou instituída por um tribunal de último grau de recurso, desde que esse exercício recursal tenha sido oportunizado ao estrangeiro e devidamente esgotado, em observância ao pressuposto de que todos os meios legais de impugnação ao ilícito já se esvaziaram. Deverá tal ação ou omissão estar eivada, ainda, de má-fé, discriminação ou pautada em um protecionismo tendencioso e nacionalista por parte desses tribunais, independentemente de o estrangeiro ter figurado no polo ativo ou passivo da demanda submetida à apreciação do Poder Judiciário131.

Mesmo porque, a partir do momento em que o direito do estrangeiro é ferido por meio do mais eficaz mecanismo de justiça e guarda das leis do Estado, o Poder Judiciário, estariam sendo violados, em ultima ratio, os próprios direitos humanos132 e contrariado extenso rol de tratados internacionais de cunho humanitário133, o que legitimaria a atuação da sociedade internacional enquanto defensora de uma de suas normas imperativas: a proteção a direitos humanos.

É possível também afirmar que, no que se refere ao campo específico dos direitos humanos, o reconhecimento de que o Estado não pode fazer o que quiser com seus

130 “Cada vez que exista contradição entre uma decisão pronunciada de forma regular e o Direito Internacional, a responsabilidade em que incorre o Estado não faz surgir a denegação de justiça, e sim de outra violação do Direito Internacional” (PEREIRA, 2000, pp. 180-181).

131 Nada obsta que os casos de denegação de justiça aconteçam em situações nas quais não tenha sido ajuizada qualquer ação pelo estrangeiro e sofra ele um processo manifestamente injusto por parte do Estado ou tenha proferida contra si uma sentença de cunho tendencioso e discriminatório. É o que a doutrina chama de denegação de justiça de forma inversa (PEREIRA, 2000, p. 181).

132 A essência dos direitos humanos, para Arendt (2007), estaria no direito do homem a ter direitos enquanto ser político.

133 Para Trindade (1996, p. 216), “é possível que os órgãos de supervisão venham a ocupar-se, no exame dos casos concretos, e.g., de erros de fato ou de direito cometidos pelos tribunais internos, na medida em que tais erros pareçam ter resultado em violação de um dos direitos assegurados pelos tratados de direitos humanos”.

cidadãos representa efetivamente uma recaracterização da soberania, com o reconhecimento de que é legítima a interferência da comunidade internacional em situações nas quais o Estado seja responsável por grandes violações, ou seu cúmplice (BIERRENBACH, 2011, p. 37).

Em sintonia com o pensamento anterior, Ramos (2008, p. 610) reafirma a possibilidade de responsabilização internacional do Estado por denegação de justiça ante a consolidação de violações de direitos humanos em situações nas quais o Poder Judiciário nacional expede de modo tardio uma decisão, ou quando inexiste remédio judicial para a solução do litígio, ou quando o mérito da decisão judicial contrariar direitos internacionalmente assegurados ao indivíduo:

Assim, a responsabilização internacional por violação de direitos humanos pela conduta do Poder Judiciário pode ocorrer em duas hipóteses: quando a decisão judicial é tardia ou inexiste (no caso de ausência de remédio judicial) ou quando a decisão judicial é tida, no seu mérito, como violadora de direito protegido.

O tema merece, em sua feição prática, um aprofundamento pormenorizado neste estudo, o qual somente será disposto em capítulos específicos desta obra134, bastando, por ora, considerar, tal qual afirmado por Zemumer (2007, p. 21), que os embates provocados na trajetória histórica da conquista dos direitos humanos ainda não cessaram, fazendo-se necessárias novas conquistas para melhorar a vida, no planeta global, de homens e mulheres, quer nacionais, quer estrangeiros.

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