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O preceito basilar da responsabilidade internacional do Estado é, como visto (CRAWFORD, 2003; 2010), o de que todo ato internacionalmente ilícito de um sujeito estatal acarreta obrigações secundárias a essa soberania no plano internacional. Esse preceito, inscrito de maneira explícita no art. 1º, parágrafo único, do Projeto da CDI da ONU sobre Responsabilidade Internacional dos Estados, vale também, depreende-se, como o próprio fundamento da responsabilidade internacional, uma vez que consagra as regras básicas de organização e funcionamento desse instituto.

É importante salientar, todavia, sob pena de fustigar parcela significativa da doutrina contemporânea, que a questão da responsabilidade do Estado tem sido considerada, por alguns, como um verdadeiro princípio de Direito Internacional62. A ponto de esse viés principiológico ter o poder de ensejar, para doutrinadores como Pereira (2000) e Arantes Neto (2008), a configuração da própria responsabilidade internacional com a mera violação de preceitos normativos internacionais, sem a necessidade da ocorrência de dano efetivo, já que haveria o interesse da sociedade internacional em ver o Direito Internacional, per si, respeitado, tal qual defendido pela teoria de Ago (1970).

Mello (2004, p. 526) parece ter, no entanto, uma visão um pouco mais sociológica do fundamento da responsabilidade internacional do Estado, acreditando que ela “corresponde a uma necessidade de equilíbrio social, de retribuição, de justiça, sendo esta a razão de o seu fundamento ser ético”. De toda sorte, independentemente da posição adotada, certo é que tais perspectivas têm contribuído, até mesmo com seus caráteres complementares, para a adoção de um conceito de responsabilidade no Direito Internacional mais próximo da ideia importada

61 Vide tópico 6.2.

62 Com base na regra substantiva de que, no ordenamento internacional, atos e omissões podem ser classificados como ilegais por mera referência a regras que estabelecem direitos e deveres no plano internacional (BROWNLIE, 1997).

de Estado de Direito. Inclusive trazendo reflexos significativos para a própria concepção de natureza jurídica perfilhada pela atual teoria da responsabilidade do Estado.

Nesse compasso, são duas, basicamente, as correntes que buscam explicar a natureza jurídica da imputação ao Estado de responsabilidade internacional, quais sejam, a corrente subjetiva (pautada na teoria da culpa) e a corrente objetiva (pautada na teoria do risco), havendo, no entanto, quem ainda noticie a existência de uma terceira corrente, de caráter ambivalente, desenvolvida por Triepel:

Uma terceira corrente que não teve maior consagração pode ser mencionada: a teoria mista (Triepel, Strupp). A culpa seria utilizada apenas no delito de omissão (porque neste caso surge de modo claro a negligência do Estado; por exemplo, se ele não elabora determinada lei), enquanto o risco seria nos delitos por comissão (MELLO, 2004, p. 550).

Retornando ao estudo das correntes que alcançaram maior relevância no cenário de discussão da responsabilidade internacional, tem-se que a distinção fundamental entre as teorias subjetiva e objetiva foca-se na necessidade, ou não, de aferição de culpa para a imputação do ilícito internacional ao agente causador do dano. Posicionar-se acerca dessa distinção se mostra central para a construção dos cânones da moderna teoria da responsabilidade internacional, cabendo, adiante, o estudo individualizado de cada uma das perspectivas apontadas.

2.6.1 Da teoria subjetiva

A teoria subjetiva ou teoria da culpa coincidiu, historicamente, com o surgimento da própria responsabilização supranacional do Estado, podendo ser concebida como o ponto definitivo de superação das concepções de irresponsabilidade vigentes até o final da Idade Moderna. Nada obstante, a acepção do termo culpa não se mostrou constante no transcorrer da história63. Sofreu modificações ao talante da ideia de culpa vigente em cada época, de modo que, para a sociedade atual, esse termo tem a sua extensão considerada em seu sentido amplo, tanto como culpa em sentido estrito, quanto dolo.

Com essas premissas, tem-se que a responsabilidade internacional do Estado só restará configurada, para a teoria subjetiva, sob o fundamento da existência de negligência, imprudência, imperícia ou dolo64 atribuível a um ente político. Por essa teoria, para que o

63 “Os doutrinadores não chegaram a uma conclusão: uns consideravam que ela abrangia o ‘dolus malus’ e a negligência (Lauterpacht); outros exigem que haja o elemento intencional (Miele) e ainda outros (Le Fur, Salvioli), a consideram como sendo a realização de um ato ilícito [...]” (MELLO, 2004, p. 527).

64 “O motivo e a intenção constituem frequentemente um elemento específico da definição de uma conduta permitida. [...] quando se procura justificar uma conduta aparentemente ilícita com fundamento em estado de

Estado possa ser responsabilizado pela transgressão de uma norma de Direito Internacional, é imprescindível que esta violação se dê, em suma, com culpa:

[...] o fato que gera ou origina a Responsabilidade internacional deve se basear não só na quebra de uma obrigação internacional anteriormente assumida, mas, também, deve constituir uma falta ou uma ausência, com base na omissão, dolo, negligência, imprudência ou imperícia. Ou seja, esta doutrina “antiga”, admitia comumente que uma violação do Direito Internacional, só faz responsável o Estado quando tenha havido, por parte do órgão estatal infrator, uma ação ou omissão culpável (PEREIRA, 2000, p. 102).

Fundamenta a tese de responsabilidade subjetiva do Estado, ainda, o elemento psicológico da voluntariedade, já que, para a teoria da culpa, o mero nexo causal entre a violação de uma conduta e o agente infrator não seria suficiente para a configuração da responsabilidade internacional se não houvesse a livre determinação de vontade do sujeito que cometeu o lícito.

Apesar da indispensabilidade de elementos psicológicos para a comprovação do ilícito na teoria assinalada (profundamente rechaçada nos sistema jurídicos internos dos Estados) e das origens um tanto remotas desse raciocínio, fato é que tais orientações exerceram influência em parte da doutrina e da jurisprudência internacionalista. Dentre outros julgados65 sobre o assunto, cabe destacar o Caso Jamaica66, no qual se estabeleceu que o Estado não seria responsável pelo ato danoso se a infração do Direito Internacional tivesse lugar sem que pudesse pesar sobre o órgão estatal que o praticou qualquer negligência, ainda que atinente a uma culpa levíssima.

Para Mello (2004, p. 527), entretanto, a teoria da culpa é passível de diversas críticas: a) ela não pode ser aplicada em relação às pessoas jurídicas a não ser por meio de uma ficção, uma vez que a culpa é um elemento psicológico; b) como elemento psicológico, ela é, muitas vezes, de difícil comprovação; c) ela não explica a responsabilidade do Estado por atos de seus funcionários incompetentes para a sua prática, etc.

Bem da verdade, os elementos psicológicos da teoria da culpa (negligência, imprudência, falta de atenção ou dolo do agente), importados do Direito Civil, tornam-se de difícil aplicação no mundo fático das relações internacionais, por de complexa mensuração. A exigência de culpa e o exame da vontade do agente para configurar a responsabilidade do Estado acaba inserindo uma indesejável limitação de efetividade na própria responsabilização necessidade ou legítima defesa, a intenção do agente é importante, uma vez que pode destruir todos os fundamentos de defesa” (BROWNLIE, 1997, p. 466).

65 O Tribunal de Arbitragem de Haia, no caso Casa Blanca, estabeleceu uma distinção entre infração dolosa, negligente e sem culpa, reconhecendo que se não houve culpa, não haveria qualquer responsabilidade internacional do Estado (PEREIRA, 2000, p. 104). Em sentido análogo, os casos Ual-Ual (Tribunal Arbitral britânico-panamenho) e Naulilaa (Tribunal Arbitral teuto-português).

66 “A sentença arbitral do Caso Jamaica, de 21 de maio de 1798, rechaça uma responsabilidade ‘sans la plus petite faute imputable’” (PEREIRA, 2000, p. 103).

internacional. Motivo esse pelo qual se entende que, apesar da ponderável importância do elemento culpa na investigação do ilícito, ele deve servir apenas como meio de prova da conduta antijurídica, e não como o próprio definidor da responsabilidade do Estado.

Nesse sentido também é o posicionamento de Pereira (2000, pp. 39-40):

Realmente, no campo do Direito Internacional Público, admite-se que a responsabilidade internacional do Estado não leve em consideração o elemento “culpa” ou como alguns a chamam “o elemento subjetivo”, mas sim que tal responsabilidade seja aplicada pela sua forma objetiva, porquanto, não se faz mister o elemento subjetivo da culpa, para que haja a transgressão.

Não cabe conceber, assim, que a responsabilidade por atividades ilícitas do Estado possam ser geradas pela culpa. Restringir a aplicabilidade de um instituto que busca resguardar, modernamente, os direitos humanos e a plena reparação de injustos pelo sujeito central do ordenamento jurídico internacional acabaria por deflagrar evidente retrocesso às conquistas institucionais do próprio Direito interno dos países, consagradores da teoria objetiva. Ademais, embora o elemento da culpa não sirva à configuração da responsabilidade internacional do Estado, a sua existência e extensão são importantes por afetarem a quantificação da reparação devida pelo ilícito internacional e até mesmo para orientarem a consecução de diligências com o fito de averiguar a prática antijurídica67.

2.6.2 Da teoria objetiva

A teoria objetiva ou teoria do risco tem a sua origem no Reino Unido, em 1868, no Caso Rylands x Flecther (PEREIRA, 2000, p. 29), no qual se firmou:

Se uma pessoa mantém ou acumula na sua propriedade alguma coisa que, se escapar, poderá causar dano para a sua vizinhança, ele arcará com o perigo. Se ela escapar e causar dano, ele será responsável, por mais cuidadoso que tenha sido, e independente das precauções que tenha tomado para prevenir o dano68.

Em observância ao caso inglês, tem-se que a responsabilidade objetiva do Estado se baseia, sob um ponto de vista técnico, na doutrina do ato voluntário. Essa doutrina pugna, em suma, pela existência da violação de um dever internacional pelo simples resultado danoso da antijuridicidade, desde que, para tanto, sejam provadas a representação e o nexo causal. Nesse passo, fica explícito que dois são os requisitos para a caracterização do ilícito objetivo: a

67 Esse entendimento é substanciado no Projeto da CDI quando do trato das hipóteses de exclusão de responsabilidade internacional, conforme indicado no tópico 3.3.2 desta obra.

68 Tradução livre de “If a person brings or accumulates on his land anything wich, if is should escape, may cause damage to his neighbours, he does so at his peril. If it should escape and cause damage, he is responsible, however careful he may have been, and whatever precautions he may have taken to prevent damage”.

existência de um fato material exterior e sensível (ação) e de uma regra de Direito Internacional contrária a esse fato.

Logo, na teoria da responsabilidade objetiva é dispensada a existência do elemento psicológico para a aferição da autoria da ilicitude. Não obstante, ao se afirmar que a violação de uma norma de Direito Internacional gera, segundo a teoria do risco, a responsabilização do Estado sem culpa, não se está pretendendo indicar a automaticidade dessa imputação. Na realidade, caberá ao autor provar a existência do fato e competirá ao réu justificar o seu próprio comportamento através de qualquer meio de defesa.

A teoria objetiva acaba por se sustentar em função do argumento de que, com as circunstâncias da vida internacional corrente, que envolve relações entre comunidades altamente complexas que atuam através de uma variedade de instituições e representações, as teorias publicistas de responsabilidade se mostram mais adequadas à realidade internacional do que as voltadas a mensurar a culpa de pessoas físicas que poderiam ou não representar o Estado na execução de atos ilícitos69.

Pautado nesse temor, Verzijl (apud BROWNLIE, 1997, p. 461), presidente da Comissão de Reclamações Franco-Americanas70, estabeleceu, já em 1926, no julgamento do Caso Caire, que a imputação de responsabilidade ao Estado, mesmo nos casos de seus agentes estarem exercendo atividades fora de sua competência originária, seria objetiva:

[...] a doutrina da responsabilidade objectiva do Estado, isto é, da responsabilidade pelos actos cometidos pelos seus funcionários ou órgãos, actos esses que se encontram vinculados a praticar, apesar da ausência de faute da sua parte [...]. O Estado assume também a responsabilidade internacional por todos os actos cometidos pelos seus funcionários ou órgãos que constituam um delito de acordo com o Direito Internacional, independentemente de saber se o funcionário ou órgão actuou dentro dos limites da sua competência ou se os excedeu [...]. Contudo, a fim de justificar a admissão desta responsabilidade objectiva do Estado por actos cometidos pelos seus funcionários ou órgãos fora da sua competência, é necessário que estes tenham agido, pelo menos aparentemente, como funcionários ou órgãos autorizados, ou que, ao agirem, tenham recorrido a poderes ou medidas apropriadas ao seu caráter oficial (BROWNLIE, 1997, p. 462).

A hipótese referenciada parece aproximar a teoria objetiva bem mais do fundamento principiológico da responsabilidade internacional anunciado no início deste tópico do que a teoria subjetiva, uma vez que a teoria do risco proporciona, simultaneamente, a manutenção de padrões mais elevados nas relações internacionais e a eficaz aplicação do princípio da reparação. Nesse entender, é, igualmente, a ilustração de Mello (2004, p. 529):

69 Em sentido contrário, Brownlie (1997, p. 461): “[...] em Direito Internacional são frequentemente empregues critérios objectivos para determinar a responsabilidade, embora seja certo que, sendo os governos compostos por pessoas físicas moralmente responsáveis, é possível provar o seu dolus ou culpa”.

70 Comissão Geral de Reclamações criada por Convenção celebrada entre o México e os Estados Unidos, em 1923.

Se compararmos as duas teorias acima, chegaremos à conclusão de que a teoria do risco é a melhor delas, porque dá maior segurança às relações internacionais. O ilícito será sempre reparado. Ela não faz referência ao elemento psicológico, difícil de ser verificado.

Embora a teoria da culpa ainda se mostre massiva na jurisprudência internacional, em razão da teoria do risco trazer uma aparente insegurança ao Estado (MELLO, 2004, p. 529), a responsabilidade objetiva tem encontrado abrigo na doutrina internacionalista contemporânea e em diversas tratados internacionais, como na Convenção sobre Responsabilidade Civil por Danos Nucleares (1963)71, na Convenção sobre Responsabilidade Civil no Domínio da Atividade Nuclear (1960), na Declaração de Princípios Legais sobre a Exploração e Uso do Espaço Exterior (1967), no Tratado sobre a Exploração do Espaço (1967)72 e nas Convenções sobre Poluição do Mar por Hidrocarbonetos (1969 e 1971), o que, per si, não traz dúvida a respeito da sua aplicabilidade no cenário internacional atual.

Cabe ponderar, no entanto, que há situações particulares em que a aplicação pura da teoria objetiva se faz potencialmente temerária. Tratam-se das circunstâncias de responsabilização do Estado por omissão ilícita. Casos em que a culpa beira a condição de elemento de configuração da responsabilidade por desempenhar papel de importância na comprovação da responsabilidade do Estado por inércia:

Apesar de a culpa não ser condição geral de responsabilidade, pode desempenhar um papel importante em certos contextos. Assim, quando o dano, objecto da reclamação, resultar de actos de indivíduos que não se encontram ao serviço do Estado, ou de actividades realizadas por concessionários ou por transgressores no território do Estado, a responsabilidade do Estado dependerá da sua omissão ilícita. Neste tipo de casos, a questão do conhecimento pode ser relevante para provar a omissão ou, mais correctamente, para estabelecer a responsabilidade pela não actuação (BROWNLIE, 1997, pp. 464-465).

Em tais casos, a relação estabelecida entre a teoria da responsabilidade objetiva e o princípio da culpa acaba sendo bastante estreita, o que as faz apresentar, em essência, os mesmos efeitos para a responsabilização estatal.

2.7 Elementos conformadores da moderna teoria da responsabilidade internacional

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