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As ações de obrigação de fazer, não fazer ou entrega de coisa: algumas considerações

MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

3 O CUMPRIMENTO DOS DEVERES ESTATAIS DE FAZER OU NÃO FAZER MEDIANTE TUTELA JURISDICIONAL ADEQUADA E EFETIVA

3.3 A TUTELA DOS DEVERES DE FAZER OU NÃO FAZER CONTRA O ESTADO: MEDIDAS DE EFETIVIDADE PROCESSUAL

3.3.1 As ações de obrigação de fazer, não fazer ou entrega de coisa: algumas considerações

A postulação de prestações positivas pelo cidadão em face da Administração Pública, veiculada por meio de demandas individuais ou coletivas que suscitam a realização de atos inerentes ao controle jurisdicional de políticas públicas, conduzem, na imensa maioria dos casos em que haja o acolhimento da pretensão autoral, à necessidade de imposição ao Erário de um dever de atuação visando a satisfação de determinado interesse, mediante a efetiva entrega do bem ou execução do serviço reclamados.

É inegável reconhecer que sempre haverá lugar para o levantamento de preocupações, muitas vezes fundadas, acerca da real disponibilidade de meios e recursos materiais suficientes para o atendimento imediato de todas as pretensões da espécie, o que deve ser objeto de indeclinável apreciação judicial, em conformidade com os critérios indicados pela doutrina e jurisprudência, sumariamente expostos em linhas precedentes.

Permitindo-nos realizar um recorte epistemológico em nosso objeto de estudo, todavia, cumpre ressaltar que o campo de investigação a ser abordado no presente tópico, em especial, diz respeito, fundamentalmente, aos meios processuais predispostos em nosso ordenamento jurídico para aplicação em desfavor do Estado – ou de seus agentes, quando admissível –, como forma de conferir efetividade às ações judiciais destinadas à concretização de direitos constitucionalmente assegurados, sem descurar da análise de aspectos concernentes às dificuldades práticas que se mostrem relevantes para a efetivação de tais direitos.

A eventual pertinência de objeções concernentes à reserva do possível, nesse contexto, deve ser primordialmente examinada diante do caso concreto, a fim de que possa o magistrado decidir acerca da viabilidade prática, ou não, da atribuição ao ente estatal do dever de proceder à entrega da prestação material vindicada, o que será sempre dependente, por óbvio, da sua real disponibilidade. É certo, porém, que o direito ao mínimo existencial jamais pode ser negligenciado, mesmo em um quadro de escassez de recursos, impondo-se a adoção das medidas bastantes à sua preservação, conforme salientamos anteriormente.

Uma vez afirmada, portanto, em decisão definitiva ou antecipatória, a necessidade de satisfação da posição jurídica intentada contra o Estado, deve o Poder Judiciário determinar as providências práticas a serem realizadas para esse desiderato, servindo-se, para tanto, das

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normas processuais reguladoras dos deveres de fazer, não fazer ou entrega de coisa, outrora previstas nos arts. 461 e 461-A do CPC de 1973, atualmente disciplinadas pelos arts. 497 a 501, e 536 a 538, todos do novo Código de Processo Civil.

Cabe aqui destacar que, muito embora tenha o legislador optado por empregar a expressão cumprimento de obrigação de fazer, tanto no Código revogado, quanto no atual, não se restringe essa via processual a tutelar apenas os direitos obrigacionais oriundos de relações jurídicas de direito privado, aplicando-se a “todos os deveres jurídicos cujo objeto seja um fazer ou um não fazer”, em sentido amplo,133 tal como estabelece o art. 536, § 5º, do novo CPC, compreendendo inclusive os deveres estatais destinados à satisfação de direitos fundamentais a prestações positivas.134

Examinando o tema, leciona Ovídio Baptista da Silva que, partindo da coerção eminentemente pessoal que os meios executivos ostentavam nos primórdios do direito romano, quando se admitia a aplicação de pena corporal ao devedor para compeli-lo ao pagamento de débitos, a influência do humanismo renascentista, inversamente, “fez com que o direito dos sistemas contemporâneos exasperassem a mercantilização dos meios executórios, a ponto de tornar indenizáveis, e portanto negociáveis, até as mais graves ofensas morais”.135

A dificuldade do nosso Direito em edificar os mecanismos de uma tutela executiva própria para o cumprimento das obrigações de dar coisa certa e de fazer ou não fazer, seria, outrossim, uma herança própria das bases jurídicas romanas – cujo processo fundava-se apenas na execução por quantia certa –, o que passou a ser corrigido pelo legislador brasileiro com as alterações promovidas pela reforma processual levada a efeito no CPC recém revogado, por intermédio da Lei nº 8.952/94, instituindo como regra a excepcionalidade da conversão de tais obrigações em perdas e danos.136

A problemática atinente aos meios processuais para a realização da tutela específica das obrigações de fazer, não fazer ou entrega de coisa não é, contudo, restrita ao nosso ordenamento jurídico, sendo um fenômeno observado nas mais distintas culturas jurídicas, em decorrência da universalização das obrigações e do próprio escopo de efetividade da tutela

133 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de

entrega de coisa. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 125-127.

134 Ibid., p. 137-147.

135 SILVA, Ovídio Araújo Baptista. Execução obrigacional e mandamentalidade. In: TESHEINER, José Maria

Rosa; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto (Coord.). Instrumentos de coerção e outros temas de direito processual civil: estudos em homenagem aos 25 anos de docência do professor Dr. Araken de Assis. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 601-605.

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jurisdicional. O sistema jurídico de cada país respondeu a esses anseios conforme sua própria tradição e coerência interna: o direito francês com o meio coercitivo pecuniário das astreintes; o inglês, no âmbito da equity, desenvolvida sob o common law, com as sanções de multa ou prisão por ato de contempt of court, em razão do descumprimento de ordens judiciais denominadas injuction; e o alemão, com um modelo misto específico, que envolve penas pecuniárias ou, excepcionalmente, restritivas de liberdade.137

Optou o legislador pátrio, na última redação atribuída ao art. 461 do CPC de 1973, por eleger tanto mecanismos sub-rogatórios – que prescindem da participação do obrigado para a obtenção do resultado almejado –, quanto mecanismos de coerção do devedor ao cumprimento da obrigação judicialmente exigida, que se prestam a atuar psicologicamente sobre a sua vontade, a fim de induzi-lo a adotar a conduta pretendida pela ordem jurídica,138 dentre as quais se destacam as multas diárias, reconhecidamente inspiradas nas astreintes do sistema francês.

Servem-se de meios sub-rogatórios os chamados provimentos executivos lato sensu, ao determinarem medidas que independem da adesão volitiva do executado para serem cumpridas, como a busca e apreensão de coisas ou o impedimento de atividade nociva mediante o auxílio de força policial. Os provimentos mandamentais, por sua vez, veiculam ordem para que o destinatário cumpra diretamente a prestação ou abstenção estabelecida pelo juízo, sob pena de incidir em sanções determinadas, inclusive de natureza criminal.139

O regime de cumprimento dos deveres e obrigações de fazer ou não fazer, portanto, desde a aludida reforma processual no Código Buzaid, dá-se preferencialmente na forma de sua tutela específica, ou mediante garantia do resultado prático equivalente ao do adimplemento, com a imposição das medidas de reforço que já vinham estatuídas no § 5º, do art. 461 do referido diploma instrumental, e que continuam presentes no art. 536, § 1º, do novo Código.

Semelhante sistemática, aliás, já encontrava previsão no art. 11 da Lei nº 7.347/85, que disciplina a ação civil pública, contemplando a possibilidade de concessão da tutela específica da obrigação, bem como no art. 84 da Lei nº 8.078/90, instituidora do Código de Defesa do Consumidor, que introduziu em nosso ordenamento processual, para além disso, o mecanismo

137 RIBEIRO, Darci Guimarães. A concretização da tutela específica no direito comparado. In: TESHEINER, José

Maria Rosa; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto (Coord.). Instrumentos de coerção e outros temas de direito processual civil: estudos em homenagem aos 25 anos de docência do professor Dr. Araken de Assis. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 125-149.

138 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. 1. ed. Campinas: Bookseller, v. 1, 1998, p.

349-350.

139 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de

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do resultado prático equivalente, aperfeiçoando o microssistema de defesa dos interesses difusos e coletivos, por força dos arts. 90, deste último diploma legal, e 21, da Lei nº 7.347/85.140

Não se pode deixar de enfatizar, a propósito, a elevada importância que a ação civil pública e as demais vias processuais inerentes à tutela coletiva dos direitos exercem no controle judicial de políticas públicas e para a progressiva realização dos direitos fundamentais sociais, em razão de proporcionarem, por meio do processo, uma abordagem massificada de assuntos alusivos à atuação do poder público com vistas ao atingimento dos fins proclamados pela norma constitucional.141

Mesmo que não esteja legalmente estabelecida uma prioridade para o processo e julgamento das ações coletivas que versem sobre o objeto mencionado, em relação às demandas individuais de igual natureza, é notória a maior vocação da referida modalidade de tutela jurisdicional para viabilizar um alcance prático e social bem mais significativo da atuação do Judiciário nessa senda, merecendo acentuada atenção e prestígio, de parte dos operadores do direito.

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