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POLÍTICAS PÚBLICAS

6 OS CASOS COMPLEXOS E AS DECISÕES ESTRUTURAIS NOS LITÍGIOS DE INTERESSE PÚBLICO

6.2 AS DECISÕES ESTRUTURAIS NO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

6.2.2 Estado de coisas inconstitucional e decisões estruturais

Como demonstração inequívoca da necessidade de se conferir uma nova metodologia de abordagem processual ao controle judicial de políticas públicas, diante da manifesta insuficiência dos meios tradicionais de exercício da jurisdição para a solução de litígios de interesse público, o Supremo Tribunal Federal, julgando a Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347, de 2015, movida pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL em face da União Federal e de todos os Estados-membros e do Distrito Federal, reconheceu a existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional, determinando a realização de providências para sanar as falhas estruturais existentes.429

Assim, em face da situação degradante que inegavelmente deflui do quadro de superlotação carcerária e das condições manifestamente desumanas de custódia dos presos no sistema penitenciário brasileiro, implicando em falhas estruturais representativas de “violação massiva e persistente de direitos fundamentais”, entendeu o Pretório Excelso que a modificação de tal contexto está a depender de “medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária”. Determinou-se, consequentemente, a liberação de verbas do Fundo Penitenciário Nacional, para imediato investimento em unidades prisionais, bem como a

428 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de

entrega de coisa. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 283.

429 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). ADPF 347 MC/DF, Relator Min. Marco Aurélio.

Brasília, 09 set. 2015. DJe n. 031, de 18 fev. 2016. Disponível em:

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realização obrigatória de audiências de custódia, pelos órgãos do Poder Judiciário, a fim de viabilizar a apresentação do preso perante a autoridade judiciária, em até 24h após a prisão.430

Consiste o estado de coisas inconstitucional em um novo conceito introduzido em nosso direito, desenvolvido no âmbito da jurisprudência da Corte Constitucional da Colômbia (CCC), cuja aplicação em nosso sistema judiciário começa a se desenhar a partir da referida decisão do STF.

Consoante registra Clèmerson Clève, o Tribunal Constitucional colombiano, inspirando-se nas structural injuctions do direito norte-americano, passou a identificar a existência de situações configuradoras de agressões em larga escala aos direitos fundamentais, reclamando a adoção, pelo Judiciário, “de respostas adequadas, singulares, muitas vezes incrementais, tudo para corrigir circunstância caracterizada pela generalizada violação dos direitos garantidos pela lei fundamental”.431

Carlos Alexandre de Azevedo Campos, dedicando-se ao estudo do tema, identifica três pressupostos para o estado de coisas inconstitucional: a) a constatação de uma situação de violação sistemática e generalizada de direitos fundamentais, a atingir um amplo quantitativo populacional; b) a existência de uma falha estatal estrutural, evidenciada pela falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até judiciais, a gerar a perpetuação do quadro de violação de direitos; c) necessidade de emissão de ordens não a um órgão apenas, mas a uma pluralidade destes, visando a realização de mudanças estruturais, a formulação de novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, além da alocação de recursos e outras providências da espécie.432

Salienta o referido autor que um dos óbices suscitados por ocasião do julgamento, pelo STF, da mencionada medida cautelar na ADPF 347, em relação à adoção de tal técnica decisória entre nós, consistiu na ausência de resultados satisfatórios na atuação da Corte Constitucional da Colômbia no caso das falhas estruturais do sistema prisional daquele país, o que militaria contra a sua importação pelo direito pátrio. Esclarece, porém, que tal insucesso pode ser

430 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). ADPF 347 MC/DF, Relator Min. Marco Aurélio.

Brasília, 09 set. 2015. DJe n. 031, de 18 fev. 2016. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>. Acesso em: 22 abr. 2016.

431 CLÈVE, Clémerson Merlin. ADPF 347 e estado de coisas inconstitucional. Gazeta do povo, Curitiba, 11 nov.

2015. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/artigos/adpf-347-e- estado-de-coisas-inconstitucional-7j1i7uoi7spj2ae0eryxbpbn2>. Acesso em 23 abr. 2016.

432 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de coisas inconstitucional e litígio estrutural, p. 3.

Disponível em:

<https://www.academia.edu/15685170/_Estado_de_Coisas_Inconstitucional_e_Lit%C3%ADgio_Estrutural>. Acesso em 25 abr. 2016.

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creditado à falta de flexibilidade das decisões judiciais exaradas na hipótese citada, tendo o mencionado tribunal deixado de monitorar adequadamente o cumprimento de suas ordens, confiando excessivamente na autoridade intrínseca à própria deliberação, ao invés de dialogar com as autoridades públicas incumbidas de sua efetivação.433

Tais equívocos operacionais foram corrigidos, contudo, em litígios estruturais posteriormente julgados pela CCC, com especial destaque para o caso do deslocamento forçado de pessoas,434 resultante de ações violentas de grupos armados, tendo o Tribunal determinado, ao declarar o estado de coisas inconstitucional, a realização de uma série de medidas para a elaboração de políticas públicas, exigindo atenção orçamentária para o problema e a formulação de um marco regulatório para proteger não só os direitos individuais dos demandantes, mas para tutelar também a dimensão objetiva de tais direitos. A grande diferença, porém, residiu no diálogo mantido com os demais poderes e com a sociedade na fase de implementação da decisão, tendo os juízes acompanhado efetivamente o seu cumprimento mediante audiências públicas, acarretando verdadeira participação social e apresentando resultados satisfatórios.435

Assim como ocorre, portanto, com as structural injuctions do direito estadunidense, não se pode ignorar os riscos existentes também no modelo colombiano ora em exame, devido ao caráter tênue da linha demarcatória entre direito e política, a fim de que o Judiciário não invada a seara própria dos demais poderes e atraia para si, indevidamente, os ônus inerentes aos erros e acertos que são próprios das instituições democraticamente legitimadas para intervir politicamente, de forma ampla, em questões sociais.

Justifica-se, pois, a preocupação de parte da doutrina quanto à adoção, pelo Supremo Tribunal Federal, de tal técnica decisória idealizada pela mencionada Corte sul-americana, diante da vagueza e fluidez do conceito inerente ao estado de coisas inconstitucional, que poderia ser identificado nos mais variados temas alusivos aos direitos sociais no Brasil, nos quais grassam exemplos de violações sistemáticas a direitos fundamentais, como nos casos dos sistemas de saúde, segurança pública, educação, dentre uma série de outros.436 Estaria o Poder

433 CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de coisas inconstitucional e litígio estrutural, p. 5.

Disponível em:

<https://www.academia.edu/15685170/_Estado_de_Coisas_Inconstitucional_e_Lit%C3%ADgio_Estrutural> . Acesso em 25 abr. 2016.

434 Desplazamiento forzado. 435 Ibid., p. 6-7.

436 STRECK, Lenio Luiz. O que é preciso para (não) se conseguir um habeas corpus no Brasil. Consultor jurídico,

São Paulo, 24 set. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-set-24/senso-incomum-preciso-nao- obter-hc-brasil>. Acesso em 25 abr. 2016.

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Judiciário autorizado e preparado para enfrentar simultânea e imediatamente todas essas graves questões? Quais critérios poderiam ser validamente utilizados para nortear tais decisões?

De fato, se a intervenção judicial em políticas públicas, por si só, já suscita indagações acerca da admissibilidade da emissão de pronunciamentos jurisdicionais sobre o assunto, com maior razão ainda questionamentos podem ser levantados quanto à possibilidade de virem os juízes a ditar para autoridades administrativas ou para os legisladores a forma pela qual devem ser solucionados problemas sociais dos mais sensíveis e complexos.

Não se pode negar, todavia, a existência de situações configuradoras de litígios estruturais, que, se não forem adequadamente equacionados e tratados pelo Poder Judiciário, podem inviabilizar a concretização de direitos fundamentais expressamente assegurados em nosso ordenamento jurídico. Afirmar o contrário significa negligenciar os meios processuais de acesso à justiça, pois não se pode conferir soluções meramente pontuais, tópicas e superficiais para problemas sistêmicos, que se encontram arraigados no próprio funcionamento de órgãos e instituições públicas ou sociais, proporcionando violações generalizadas de situações jurídicas constitucionalmente protegidas.

Sem que o Estado-juiz intervenha, pois, para combater as falhas estruturais em suas causas, limitando-se a dar respostas tradicionais, próprias de um modelo que hoje se revela insuficiente, para os novos litígios que se apresentam nas demandas de interesse público, estará contribuindo, por omissão em prestar a tutela jurisdicional, para a perpetuação de graves e históricas transgressões de direitos fundamentais dos cidadãos. A escolha que cabe ao Judiciário, portanto, não está em atuar ou não em tais matérias, mas sim em como atuar e qual a forma e os limites dessa atuação.

Seja mediante a emissão de decisões estruturais, em moldes similares à experiência norte-americana, ou com o reconhecimento de situações caracterizadoras de um estado de coisas inconstitucional, resta confiar que os nossos órgãos de jurisdição constitucional, sobretudo o STF, saibam desenvolver com cuidado e responsabilidade o conceito mais apropriado para a realidade brasileira, definindo as providências cabíveis para enfrentar esses novos e superlativos desafios.437

O que deverá contribuir significativamente para o avanço do tema em nosso direito, decerto, será o manejo adequado da matéria pelos operadores jurídicos, especialmente os órgãos

437 CLÈVE, Clémerson Merlin. ADPF 347 e estado de coisas inconstitucional. Gazeta do povo, Curitiba, 11 nov.

2015. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/artigos/adpf-347-e- estado-de-coisas-inconstitucional-7j1i7uoi7spj2ae0eryxbpbn2>. Acesso em 23 abr. 2016.

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públicos e demais entes legitimados para a provocação da jurisdição constitucional brasileira, seja por meio do importante instrumento da arguição de descumprimento de preceito fundamental,438 seja mediante a invocação da cláusula aberta para a tutela jurisdicional das obrigações de fazer ou não fazer (arts. 139, inciso IV, 497 e 536, § 1º, do CPC),439 em ações

ordinárias ou ações civis públicas.440

Assim, de nada adiantará apresentar uma causa de pedir ou um pedido demasiadamente amplo em uma petição inicial, em uma vã esperança de que sobrevenham soluções mágicas do Poder Judiciário, para obter remédios instantâneos para os inúmeros e crônicos problemas estruturais que impossibilitam a fruição, por um incontável segmento populacional, aos mais básicos direitos enunciados em nossa Lei Maior.

As chances de êxito das demandas veiculadoras de pretensões destinadas à resolução de litígios estruturais, como já dito, estão intrinsecamente relacionadas à forma como é deduzido o pedido e instrumentalizada a ação, sendo larga, também, a responsabilidade dos legitimados ativos para a judicialização da matéria, de apresentá-la adequadamente formulada e instruída para apreciação do magistrado.

Sem isso, não se pode pensar em efetividade da tutela jurisdicional colimada nessa espécie diferenciada de lide. A criatividade que se espera do Judiciário para contribuir para a consolidação desse novo modelo de concretização dos direitos fundamentais é condicionada, inegavelmente, pelo uso correto dos meios processuais à disposição do profissional do direito formulador da postulação autoral.

Pode-se dizer que já há, contudo, casos concretos que servem para ilustrar as incursões teóricas ora empreendidas. Permitimo-nos citar de maneira detalhada pelo menos uma situação específica, no tópico seguinte, atinente a uma destacada intervenção jurisdicional de caráter estrutural, efetivada mediante ação civil pública, que entremostra de modo prático a necessidade indeclinável, na hipótese, de realização dessa excepcional forma de atuação judicial, dado o caráter igualmente singular do problema evidenciado.

438 JOBIM, Marco Félix. Medidas estruturantes: da Suprema Corte estadunidense ao Supremo Tribunal Federal.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 192-199.

439 Ibid., loc. cit.

440 Em relação às ações civis públicas, tem assentado o STF, inclusive, a viabilidade até mesmo do exercício da

verificação incidental da constitucionalidade das leis ou atos normativos por seu intermédio [BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2ª Turma). Rcl 1898 ED/DF, Relator Min. Celso de Mello. Brasília, 10 jun. 2014.

DJe n. 151, de 05 ago. 2014, p. 12.137. Disponível em:

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6.3 O CASO DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NA ENTIDADE GESTORA DO SISTEMA

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