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MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

2.2 O CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO MEIO DE CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.2.2 A admissibilidade da intervenção judicial em matéria de políticas públicas

A discussão sobre estar autorizado, ou não, o Poder Judiciário a decidir acerca de assuntos relacionados à formulação ou implementação de políticas públicas deve iniciar-se, naturalmente, pela compreensão acerca do princípio da separação entre os poderes estatais na atualidade.

Como uma das bases do ideário que ensejou o surgimento do Estado Moderno, em consonância com os princípios da legalidade, da democracia e da garantia dos direitos individuais, a teoria da separação dos poderes consolidou-se por meio da célebre obra do Barão de Montesquieu, O Espírito das Leis, de 1748, inspirada pelo contexto histórico e político no qual prosperou o liberalismo.

A lei, como expressão da vontade geral, segundo a formulação de Rousseau, consagrava os parâmetros da legalidade como manifestação da soberania popular e do exercício democrático do poder estatal, já que, observando a deliberação coletiva, estaria o indivíduo obedecendo a si mesmo, mantendo-se, assim, livre.27

O escopo principal do pensamento de Montesquieu era a limitação do arbítrio estatal, como forma de preservar a liberdade individual. Para tanto, os três poderes estatais jamais deveriam ser atribuídos a uma mesma pessoa, de modo que o poder seja o freio do próprio poder.28 O que mais importava, contudo, não era propriamente a especialização estanque de

26 RESENDE, Fabrício Contato Lopes. O papel do Poder Judiciário no controle da implementação de

políticas públicas no Brasil: a política assistencial do artigo 20 da Lei nº 8.742/93. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 24-34.

27 ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. E-book, p. 37. Disponível em:

<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2244>. Acesso em: 14 jan. 2016.

28 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de la Brède e de. O espírito das leis. Trad. Fernando

Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, v. 1, 1962, p. 179- 181.

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funções por órgãos estatais, mas a limitação das competências de cada exercente do poder em nome do Estado.29

A proeminência do Legislativo em face dos demais poderes era notória na obra de Montesquieu, especialmente diante do Judiciário, no seio do positivismo exegético, quando prevalecia o dogma da completude jurídica das codificações, conferindo-se à atividade jurisdicional a função de mera boca da lei,30 negando-se ao julgador qualquer papel criativo na aplicação do Direito.

Há que se interpretar a concepção teórica em exame, dessarte, em conformidade com as necessidades políticas vivenciadas no momento histórico específico no qual foi desenvolvida, cuja finalidade precípua, como dito, consistia em superar a forma absolutista de exercício do poder.

Nesse sentido, consoante observa Canotilho, a rigorosa separação entre os poderes, pretendida por alguns, nunca foi abraçada sequer pela teoria clássica, tendo em vista que, “mais do que separação, do que verdadeiramente se tratava era de combinação de poderes”.31 Isso porque, se ao juiz era reconhecida a função apenas de servir como a boca que pronunciava as palavras da lei, os poderes Executivo e Legislativo eram distribuídos por três potências, o rei, a nobreza (câmara alta) e a burguesia (câmara baixa). O problema verdadeiramente existente consistia na forma pela qual seriam combinadas tais potências, de modo a estabelecer qual classe política seria favorecida.32

Não obstante a distribuição formal das funções entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, não prevalecem nos estados democráticos contemporâneos uma divisão rígida em relação ao conteúdo da manifestação de poder estatal. Sobreleva que se assegure, desse modo, como ideia principal, que diversos detentores do poder participem da formação da vontade do Estado.33

Assim é que, na Constituição norte-americana – assim como na brasileira, que adotou tal modelo desde a sua primeira Carta Republicana – a separação de poderes é calcada na ideia dos checks and balances, ou sistema de freios e contrapesos, que visa atribuir a cada poder, no exercício de suas funções, mecanismos de controle e fiscalização recíprocos, além de uma

29 BURDEAU, Georges; HAMON, Francis; TROPER, Michel. Direito constitucional. 27. ed. Trad. Carlos

Souza. Barueri: Manole, 2005, p. 87.

30 MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de la Brède e de. O espírito das leis. Trad. Fernando

Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, v. 1, 1962, p. 208.

31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 260. 32 Ibid., loc. cit.

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atuação coordenada, tanto quanto possível, a fim de melhor amparar e efetivar os direitos fundamentais.34

É válido afirmar, nessa linha de raciocínio, que, se a lei possui uma natureza simultaneamente política e jurídica, o Estado de Direito pode servir como freio e contrapeso necessário para limitar o poder político, em prol da implementação de valores jurídico- constitucionais fundamentais, outorgando-se à atividade jurisdicional, em última análise, a função da salvaguarda e garantia de tais valores.35

Os fatores, porém, que têm tornado cada vez mais ultrapassada a tradicional separação entre os poderes, na lição de João Maurício Adeodato, consistem na “progressiva diferenciação entre texto e norma, a crescente procedimentalização formal das decisões e o aumento de poder do Judiciário”.36

Percebe-se, outrossim, que a interdependência existente entre o direito e a política conduziu à idealização da jurisdição constitucional, conferindo aos seus órgãos poderes para dar a última palavra acerca do significado concreto da norma constitucional.37

Ronald Dworkin, cuja teoria é apontada como precursora do neoconstitucionalismo, anunciou a aproximação entre direito, moral e política, descrevendo as policies como

aquela espécie de padrão de conduta (standard) que assinala uma meta a alcançar, geralmente uma melhoria em alguma característica econômica, política ou social da comunidade, ainda que certas metas sejam negativas, pelo fato de implicarem que determinada característica deve ser protegida contra uma mudança hostil.38

Já os princípios, para o autor, seriam padrões de observância obrigatória como uma “exigência de justiça ou equidade ou outra dimensão da moralidade”.39

Desenvolvendo sua consagrada proposição científica, alude Dworkin aos argumentos de política e aos argumentos de princípio, definindo os primeiros como aqueles que justificam uma decisão política, desde que logrem demonstrar que esta “fomenta ou protege algum objetivo comunitário”, exemplificando com os casos de concessão de subsídio econômico. Já os argumentos de princípio justificam uma decisão política, quando evidenciem que a decisão “respeita ou garante direitos de um indivíduo ou de um grupo”. Os princípios e as políticas, ou

34 PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional: um contributo para

o estudo das suas origens e evolução. Coimbra: Coimbra, 1989, p. 260.

35 Ibid., loc. cit.

36 ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação dos poderes? In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras

complementares de constitucional: teoria da constituição. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 291.

37 COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional e política. Direito público. São Paulo, v. 3, n. 10,

out.-dez. 2005, p. 8 e 15.

38 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36. 39 Ibid., loc. cit.

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policies, constituem, assim, no entender do autor, os fundamentos essenciais da justificação política.40

Frisa o autor norte-americano, a esse respeito, que cabe aos tribunais, no exercício da jurisdição constitucional, tomar decisões políticas importantes. Quando chamados a decidir sobre o tema, porém, devem pautar suas decisões não por critérios de índole política, atinentes à melhor maneira para se promover o bem-estar geral, mas sim consoante os princípios, sobre “quais direitos as pessoas têm sob o sistema constitucional”.41

Mesmo ao se admitir, portanto, que os órgãos da jurisdição constitucional possam decidir acerca de matérias situadas no limiar entre o direito e a política, tais como as questões inerentes a políticas públicas e sua conformidade com a norma de direito fundamental, não quer isso dizer que tal atividade judicial deva ser exercida de forma livre, infensa a qualquer tipo de limite ou controle racional, ainda que na forma de autocontenção. Disso cuidaremos de modo mais específico nos itens seguintes.

2.3 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENQUANTO PRESTAÇÕES

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