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POLÍTICAS PÚBLICAS

6 OS CASOS COMPLEXOS E AS DECISÕES ESTRUTURAIS NOS LITÍGIOS DE INTERESSE PÚBLICO

6.1 ORIGENS DAS DECISÕES ESTRUTURAIS

6.1.1 Notas acerca das decisões estruturais na prática do direito norte-americano

É importante atentar para a amplitude do papel desempenhado pelo magistrado no bojo das ações tipicamente estruturais nos Estados Unidos da América, especialmente nos casos originários, em que os juízes chegavam a exercer funções próprias de administrador e mesmo de legislador, pois não só desenvolviam, mas também implementavam e supervisionavam políticas públicas.402

Isso porque o Judiciário atua, nas structural injuctions do direito norte-americano, para concretizar valores constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, independentemente de interposição legislativa, o que por vezes significa a definição de parâmetros de execução de políticas públicas ao alvedrio do julgador. Nas hipóteses de reformas estruturais em instituições prisionais classificadas como violadoras de direitos humanos, por exemplo, procedia o juiz desde a especificação do tamanho mínimo das celas à fixação do quantitativo máximo de presos por unidade celular, como também ao detalhamento do direito de acesso dos detentos a meios recreativos, dentre diversas outras nuances, objetivando a efetivação de normas constitucionais de caráter essencialmente aberto.403

Esse acentuado grau de subjetivismo, aliás, decorrente da ampla liberdade exercida pelo magistrado para a conformação da correspondente política pública, ao fixar para o caso concreto, de maneira minuciosa, a forma pela qual os direitos fundamentais devem ser respeitados pela instituição sob intervenção judicial, consistiu em um dos principais motivos para que as decisões estruturais fossem alvo de veementes críticas, diante do ativismo exacerbado que podem implicar, em determinados contextos.404

Os obstáculos enfrentados nas demandas que visam uma reforma estrutural não se limitam, contudo, à definição dos direitos a serem preservados em cada situação prática, evidenciando-se enormes entraves, também, na etapa de sua implementação em face da burocracia estatal, diante das dificuldades naturalmente existentes para uma adequada reestruturação institucional.

402 ZARING, David. National rulemaking through trial courts: the big case and institutional reform. University

of California UCLA law review, n. 1015, abr. 2004, passim. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=531282>. Acesso em: 03 set. 2015.

403 BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e

Estados Unidos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 72-73.

404 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e

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Sustenta-se, a esse respeito, que juízes e tribunais não seriam dotados de suficiente expertise para conduzir o aprimoramento orgânico-funcional necessário para a superação de uma realidade de sistemática e reiterada violação a direitos fundamentais, pela entidade sujeita à intervenção judicial, diante da necessidade de se possuir conhecimentos especializados na respectiva área de atuação, como, e.g., em educação, saúde, sistema penitenciário, segurança pública, ou de outros segmentos técnicos, conforme o caso.405

Retorquem os teóricos da reforma estrutural, por outro lado, que uma eventual baixa probabilidade de êxito de tal medida seria compensada pela promessa de grandes retornos sociais da atuação jurisdicional, pois esta teria o condão, na hipótese de sucesso, não só de eliminar, mas também de prevenir uma série de conflitos e de danos atuais e futuros a interesses individuais ou coletivos, o que pode ser melhor alcançado, inclusive, quando o juiz toma a cautela de cercar-se de peritos ou auxiliares qualificados para assessorá-lo na efetivação das medidas necessárias, tais como os special masters.406

A experiência forense norte-americana delineou, ao longo do tempo, como anota Desirê Bauermann em percuciente pesquisa acadêmica, algumas modalidades de auxiliares do juízo, cujo rol de atribuições, poderes e responsabilidades variam conforme o papel que lhes seja atribuído em cada situação específica de intervenção judicial, sendo denominado master aquele que menos interfere na rotina do réu, cabendo-lhe obter informações e fazer recomendações, ou até definir a melhor forma de colocar em prática a decisão respectiva.407

Já ao monitor se atribui o encargo de averiguar, sobretudo nos casos complexos, se o destinatário da ordem judicial está cumprindo-a regularmente e se os objetivos estão sendo de fato atingidos. Progredindo na escala ascendente de concentração de poderes que lhes são conferidos pelo magistrado, tem-se a figura do mediator, a quem incumbe indicar, no caso concreto, os padrões para atendimento da decisão e o ritmo em que esta deve ser efetivada, ao passo que ao administrator cabe o exercício de função executiva mais abrangente, atuando em nome próprio, após designação judicial.408

Como última e mais drástica opção, tem-se a possibilidade da nomeação de um receiver, ao qual cabe a missão de substituir temporariamente os funcionários ou gestores da

405 HOROWITZ, Donald L. The courts and social policy. Washington: Brookings Institution Press, 1977,

passim. Apud FISS, Owen M. As formas de justiça. In: ______. Um novo processo civil: estudos norte- americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 72.

406 FISS, Owen M. Op. cit., p. 69-72.

407 BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e

Estados Unidos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 81-85.

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entidade sob intervenção, assumindo a responsabilidade por gerenciá-la, com amplos poderes para adotar as providências bastantes à satisfação do direito violado. Por esse motivo, somente é admitida a sua utilização nas hipóteses em que não seja possível a adoção de outra medida para alcançar os resultados colimados, ou se apresente como razoável diante da natureza do caso, da conduta do réu ou do contexto específico que envolve a situação fática.409

Tais medidas encontram previsão na Rule 70 das Federal Rules of Civil Procedure,410 sob o título Enforcing a Judgment for a Specific Act, tendo sido amplamente aplicadas no direito estadunidense, sobretudo a partir do leading case Brown v. Board of Education, não sem encontrar, porém, por diversas vezes, forte resistência dos destinatários das ordens judiciais ou mesmo de setores da própria sociedade, como nos casos das disputas raciais.

Por esse motivo, adverte José Carlos Barbosa Moreira que mesmo a Suprema Corte norte-americana – por ele adjetivada como o tribunal mais poderoso do mundo –, enfrentou, para a efetivação de decisões visando realizar reformas estruturais, imensas dificuldades para tutelar direitos por meio da modificação substancial do modo de funcionamento institucional.411

Essa pode ser uma das razões, aliás, pelas quais as structural injuctions têm experimentado uma tendência de declínio em sua utilização pelas cortes de justiça de seu país originário, especialmente a partir da década de 1970, com a progressiva alteração da composição da Suprema Corte, que passou a assumir um perfil mais conservador, observando- se daí em diante uma maior prevalência da postura de autocontenção judicial, em contraposição ao ativismo até então dominante.412

São inegáveis, todavia, os avanços sociais decorrentes de precedentes históricos como Brown v. Board of Education e Roe v. Wade,413 que passaram a significar verdadeiros marcos culturais da sociedade norte-americana, sendo-lhes atribuída uma contribuição reconhecidamente determinante para a alteração de indicadores sociais, que refletiram, mais

409 BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e

Estados Unidos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 83-84.

410 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Federal Rules of Civil Procedure. Disponível em:

<http://www.uscourts.gov/file/rules-civil-procedure>. Acesso em: 15 set. 2015.

411 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O poder da suprema corte norte-americana e suas limitações. Revista de

processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 155, jan. 2008, p. 124.

412 JOBIM, Marco Félix. Medidas estruturantes: da Suprema Corte estadunidense ao Supremo Tribunal Federal.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 98-99.

413 Declarou a Suprema Corte norte-americana, no caso Roe v. Wade, a inconstitucionalidade de lei estadual que

restringia a prática do aborto, chegando a editar uma verdadeira regulamentação da matéria, fixando marcos temporais para a admissibilidade das restrições legais, conforme o tempo de gestação (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 240).

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especificamente, no aumento da representatividade de mulheres e de negros no Congresso dos Estados Unidos.414

As contingências que levaram a Corte constitucional estadunidense a modificar seu perfil de atuação em relação ao tema, contudo, não devem servir para impedir o exame da sua adequação e aplicabilidade no direito pátrio, impondo-se um exame mais acurado da matéria.

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