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O CASO DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NA ENTIDADE GESTORA DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO POTIGUAR

POLÍTICAS PÚBLICAS

6 OS CASOS COMPLEXOS E AS DECISÕES ESTRUTURAIS NOS LITÍGIOS DE INTERESSE PÚBLICO

6.3 O CASO DA INTERVENÇÃO JUDICIAL NA ENTIDADE GESTORA DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO POTIGUAR

Para melhor esclarecer as assertivas até aqui expostas, convém noticiar emblemático caso de reforma estrutural ora em andamento na Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (FUNDAC/RN), à qual incumbe gerir o sistema socioeducativo do Estado do Rio Grande do Norte, determinada mediante decisões interlocutória e de mérito proferidas pelo Juízo da 3ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Natal, em ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual.

Narra a petição inicial da ação civil pública uma grave situação de abandono e de interferências de caráter eleitoreiro de parte do governo estadual na gestão da FUNDAC, resultando em um quadro crônico, que vinha cada vez mais se intensificando com o passar dos anos, diante não apenas de deficiências nas instalações físicas dos estabelecimentos de internação socioeducativa, mas também de sérias irregularidades na administração dos recursos humanos e na gestão da instituição, de modo a acarretar a completa ineficiência no atingimento dos fins a que se destinam as medidas aplicadas pela Justiça juvenil, no âmbito infracional.441

Expôs o órgão do Ministério Público, ainda, a intensa atuação anteriormente desenvolvida em torno da problemática, consistente em procedimentos investigatórios que resultaram na propositura de outras ações judiciais por meio das quais foi decretada a interdição de unidades isoladas de Centros Educacionais (CEDUCs) situados na respectiva Unidade Federativa, em face da constatação, por órgãos fiscalizadores como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), da absoluta falta de condições de funcionamento.

Tais problemas não vieram, contudo, a ser solucionados por meio de tais demandas pontuais, chegando até mesmo a se agravar, já que, com a interdição de um estabelecimento socioeducativo, os seus internos eram transferidos para outra unidade do Estado, passando esta, por sua vez, a ver potencializada a sua própria situação de superlotação e de carências múltiplas.

Como resultado de todo esse contexto, vivenciava-se no início de 2014 um quadro caótico no sistema socioeducativo potiguar, ao ponto de ficarem os magistrados da área infracional sem qualquer alternativa de encaminhamento de adolescentes para cumprimento de

441 BRASIL. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Justiça defere pedido em ação do MP e

determina intervenção na Fundac. Íntegra da petição inicial e da decisão judicial. Notícias do MPRN, Natal, 11 mar. 2014. Disponível em: <http://www.mprn.mp.br/portal/inicio/noticias/6062-6062-justica-defere- pedido-em-acao-do-mp-e-determina-intervencao-na-fundac>. Acesso em: 25 ago. 2015.

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medidas em meio fechado, por total ausência de vagas, gerando um sentimento social generalizado de impunidade quanto aos atos infracionais apurados pelo Poder Judiciário.

Além da notória inadequação dos referidos Centros Educacionais para os propósitos socioeducativos, passaram a ser perceptíveis as consequências nefastas daí advindas para a sociedade, como a crescente utilização de adolescentes por organizações criminosas para a prática de ilícitos e o consequente recrudescimento da violência, acarretando, inclusive, o surgimento de grupos de extermínio de adolescentes suspeitos de envolvimento com práticas delitivas.

Constataram os operadores do sistema de justiça juvenil que as abordagens processuais até então desenvolvidas nas ações anteriormente propostas, no sentido de procurar solucionar as gravíssimas deficiências do sistema socioeducativo do Estado do Rio Grande do Norte, limitavam-se a buscar remediar os efeitos do problema, deixando incólumes as suas verdadeiras causas, decorrentes de irretorquível ineficiência de gestão, aliada ao uso eleitoreiro dos cargos comissionados disponíveis na aludida entidade administrativa.

O desvirtuamento do quadro de servidores comissionados da FUNDAC/RN foi comprovado, inclusive, em ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Estadual em desfavor de uma ex-presidente do referido órgão, de parentes desta e de um outro integrante da diretoria, resultando em sentença condenatória em razão da prática de nepotismo, proferida pelo Juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Natal em agosto de 2015.442

Optou-se, então, diante da manifesta ineficácia das demais estratégias de atuação judicial anteriormente desenvolvidas, por procurar solucionar tamanha crise por meio da metodologia diferenciada da reforma institucional estrutural, a ser realizada no âmbito da FUNDAC/RN, com o objetivo maior de promover a sua adequação às normas do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), instituído pela Lei nº 12.594/2012.

Estabelece tal diploma legal que o SINASE consiste no conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, além de regulamentar a execução das medidas aplicáveis a adolescente que pratique ato infracional, estatuindo acerca dos requisitos a serem atendidos pelos programas pertinentes, em regime de semiliberdade ou internação, a forma de avaliação e acompanhamento da gestão do atendimento

442 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Ocupantes de cargos comissionados da

FUNDAC são condenados por nepotismo. Notícias, Natal, 25 ago. 2015. Disponível em: <http://www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/9330-ocupantes-de-cargos-comissionados-da- fundac-sao-condenados-por-nepotismo>. Acesso em: 25 ago. 2015.

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socioeducativo, a responsabilização dos gestores, operadores e entidades de atendimento, os direitos individuais do socioeducando, dentre outras normas.

Trata-se, portanto, de dar concretude, a um só tempo, por meio da intervenção judicial na FUNDAC/RN, a diversos preceitos constitucionais, consubstanciados nos princípios da dignidade da pessoa humana, da eficiência e da moralidade administrativas e, em última análise, no próprio direito difuso à segurança pública, sistematicamente violados por práticas desidiosas e irresponsáveis, nocivamente consolidadas na dinâmica organizacional do sistema socioeducativo potiguar.

Pleitearam os promotores de Justiça, ao final, a emissão de provimento judicial determinando o completo reordenamento institucional da FUNDAC para que passe a observar as diretrizes do SINASE, mediante a nomeação de interventor judicial, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, prorrogável por iguais e sucessivos períodos, dotado de amplos poderes para gerir a entidade, em substituição ao atual gestor, fixando-se sua remuneração, a ser custeada pela FUNDAC, a fim de garantir o integral cumprimento das obrigações estabelecidas pelo Juízo.

Detalhando ainda mais o pedido, postulou o Ministério Público, em síntese, que o interventor judicialmente nomeado cumprisse as decisões proferidas pelo Poder Judiciário nas demais ações já ajuizadas contra a entidade, realizando investimentos em estrutura física, adquirindo materiais e elaborando planos de atendimento socioeducativos, cabendo ao Estado do Rio Grande do Norte, para tanto, realizar os repasses financeiros mensais do duodécimo previsto no orçamento estadual para a manutenção da entidade, além de outras medidas bastantes a assegurar-lhe a autonomia administrativa e financeira necessária à superação do problema.

Esclareça-se que o Poder Judiciário acolheu, em primeiro e segundo graus de jurisdição,443 o pedido antecipatório formulado na petição inicial da mencionada ação civil

pública, vindo a julgar procedente, ao final, por sentença, o pleito ministerial, confirmando a tutela de urgência anteriormente emitida, que restou submetida, desde logo, a cumprimento provisório.444

443 BRASIL. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. Justiça nega recurso para suspender

intervenção na Fundac. Notícias do MPRN, Natal, 25 mar. 2014. Disponível em: <http://www.mprn.mp.br/portal/inicio/infancia-e-juventude/infancia-e-juventude-noticias/6094-6094-justica- nega-recurso-para-suspender-intervencao-na-fundac>. Acesso em: 25 ago. 2015.

444 Id. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Consultas processuais. Autos nº 0108149-

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Tal decisão meritória veio a ser mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, ao julgar a causa em remessa necessária, em Acórdão assim ementado:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CRIANÇA E ADOLESCENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITOS FUNDAMENTAIS ASSEGURADOS ÀS CRIANÇAS E AOS ADOLESCENTES PREVISTOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ART. 227 DA CF/88. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. NECESSIDADE DE

INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE.

REORGANIZAÇÃO DA FUNDAÇÃO ESTADUAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - FUNDAC. DESIGNAÇÃO DE INTERVENTOR. CRISE NO

SISTEMA DE APLICAÇÃO DE MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS

DETECTADA EM RELATÓRIO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. DEVER DO ESTADO. INCIDÊNCIA DOS ARTS. 227, CAPUT E § 7º, DA CF/88. EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO DO ARGUMENTO DA RESERVA DO POSSÍVEL NEM O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. ADOLESCENTES. CONHECIMENTO E IMPROVIMENTO DO REEXAME. PRECEDENTES.

- O Poder Judiciário pode, em situações excepcionais, determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de modo a realizar políticas públicas indispensáveis para a garantia de relevantes direitos constitucionais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes.

- Recentemente, em 13.08.2015, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 592.581/RS, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, processo submetido ao regime de repercussão geral, considerou que o Poder Judiciário pode impor a realização de obras em presídios para garantir direitos fundamentais. Tal raciocínio pode ser aplicado, e até com mais razão, na concretização de direitos fundamentais relacionados a adolescentes que praticaram atos infracionais e cumprem medidas sócio-educativas em centros de internação/ressocialização administrados pelo Estado. Assim, o Poder Judiciário pode determinar que a Administração Pública realize obras, reformas emergenciais e outras medidas necessárias em prédios que abrigam adolescentes submetidos às medidas sócio-educativas, para garantir os direitos fundamentais destes, como forma de preservar sua integridade física, psíquica e moral.

- Considera-se que é lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas na execução de obras em prédios ou outras providências necessárias, tais como a nomeação de interventor, para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos internos (adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas) respeito à sua integridade física e moral, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos Poderes.445 (Grifo nosso)

Muito embora se trate de medida ainda em fase de implementação – cujo grau de êxito, naturalmente, somente poderá ser completamente avaliado ao cabo da correspondente intervenção judicial –, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte tem considerado

445 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (3ª Câmara Cível). Remessa Necessária n°

2015.010252-0, Relator Des. João Rebouças. Natal, 29 set. 2015. Disponível em: <http://esaj.tjrn.jus.br/cposg/>. Acesso em: 27 abr. 2016.

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bastante positivos os resultados que começaram a ser colhidos nos primeiros meses de vigência da decisão antecipatória.446

Perceba-se, outrossim, que o litígio estrutural em comento não reclamou a edição de leis específicas ou de atos propriamente normativos, limitando-se a buscar, no referido caso concreto, a implementação de regras já contidas na legislação federal aplicável ao tema. A situação de intensa desordem administrativa, causadora de profundas precariedades materiais e, consequentemente, de uma continuada transgressão de direitos fundamentais no sistema socioeducativo potiguar, entretanto, evidenciaram a necessidade da adoção de medidas judiciais mais drásticas e profundas, que transbordavam da simples emissão de ordens judiciais para cumprimento pelas autoridades administrativas.

A manifesta insuficiência dos meios processuais ortodoxos, que se revelaram concretamente inadequados para reverter o odioso quadro outrora incrustado no âmbito da FUNDAC/RN, apesar das insistentes tentativas materializadas em ações civis públicas precedentemente ajuizadas, impeliu o Ministério Público a pleitear perante o Poder Judiciário Estadual providências sub-rogatórias que atendessem à complexidade e à gravidade da situação exposta.

Somente na intervenção judicial no órgão da Administração Indireta responsável pela gestão do sistema socioeducativo estadual, destarte, durante o período de tempo que venha a se mostrar necessário à eliminação satisfatória das causas da situação generalizada de violação de direitos fundamentais, é que se vislumbrou uma alternativa viável para implementar as políticas públicas necessárias à superação do contexto narrado.

Esse consiste, enfim, em um exemplo assaz significativo da adoção judicial de uma metodologia processual inspirada nas structural injuctions do direito norte-americano, como recurso extremo dos órgãos integrantes do sistema de Justiça, diante da comprovada inadequação dos meios contenciosos tradicionais anteriormente intentados para o controle jurisdicional, com a necessária efetividade, da política socioeducativa em regimes de internação e de semiliberdade no Estado do Rio Grande do Norte.

A extensão de semelhante técnica processual para outras hipóteses, todavia, deve ficar restrita a casos excepcionais, especialmente no que se refere à nomeação de interventor na

446 BRASIL. Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte. MP comemora renovação de intervenção na

Fundac. Notícias do MPRN. Natal, 24 set. 2014. Disponível em:

<http://www.mprn.mp.br/portal/inicio/infancia-e-juventude/infancia-e-juventude-noticias/6474-mp- comemora-renovacao-de-intervencao-na-fundac>. Acesso em: 25 ago. 2015.

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modalidade substitutiva,447 devido aos inegáveis ônus e responsabilidades de peso que

acarretam ao órgão jurisdicional. Trata-se, ademais, de medida inegavelmente restritiva de competências próprias de outros órgãos ou instituições públicas, que somente se mostra admissível quando justificada pela necessidade premente de preservação de normas ou interesses constitucionalmente tutelados, mediante a indispensável ponderação judicial.

6.4 PROCEDIMENTO ESPECIAL PARA O CONTROLE JURISDICIONAL DE

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