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MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

4 O CONTEMPT OF COURT COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE DO ESTADO

4.1 O CONTEMPT OF COURT: CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS

Foi no contempt of court do common law que o legislador nacional identificou uma referência apropriada para moldar a sanção processual que deve incidir em casos da espécie, conforme a regra originalmente prevista no art. 14, inciso V, parágrafo único, do Código de Processo Civil recém revogado, mediante alteração promovida pela Lei nº 10.358, de 27 de dezembro de 2001.189

A origem do poder de contempt remonta ao próprio surgimento do Poder Judiciário nos ordenamentos jurídicos nos quais tal instituto se desenvolveu, em razão de imperar o entendimento pelo qual nenhuma corte ou tribunal carece do poder de vindicar sua própria autoridade, dignidade e respeito.190 Trata-se, portanto, de um inherent power,191 compreendido como essencial para a preservação da ordem em procedimentos judiciais e para a devida

189 ASSIS, Araken de. O contempt of court no direito brasileiro. Revista de processo. São Paulo: Revista dos

Tribunais, n. 111, jul.-set. 2003, p. 18-37.

190 Ibid., p. 2.

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administração da justiça, que acompanha os órgãos jurisdicionais desde o momento em que passaram a existir e foram investidos de jurisdição.192

Os poderes inerentes, como decorrência natural da própria doutrina de separação dos poderes estatais, possibilitam ao Poder Judiciário desempenhar sua função de forma efetiva, a fim de se desincumbir satisfatoriamente da missão institucional que lhe é conferida pela ordem constitucional, mediante a utilização de instrumentos que constituam verdadeiros pressupostos para o adequado exercício da atividade jurisdicional, na cultura jurídica anglo-americana.193

Com efeito, para que as ordens emitidas pelos juízes não assumam o papel inócuo de mero aconselhamento aos seus destinatários, necessita o Poder Judiciário dispor de meios práticos para emprestar autoridade às suas decisões, nisso residindo o fundamento lógico e precípuo das diferentes sanções por desobediência ou desacato.

Não obstante as consolidadas raízes históricas do chamado contempt power, nos países do common law, possibilitando sancionar condutas do tipo invocando apenas a autoridade dos precedentes, não se deve ignorar que mesmo em tais sistemas jurídicos, hodiernamente, há diversas leis regulando o assunto de forma expressa, estabelecendo os procedimentos e medidas incidentes na espécie.194

Consiste o contempt of court na prática de ato representativo de ofensa a um tribunal na administração da justiça, ou que possa vir a diminuir sua autoridade ou dignidade, no que se inclui, iniludivelmente, o desatendimento a uma determinação judicial.195

Alude Marcelo Lima Guerra ao contempt of court como um comportamento de “desprezo à corte, ou ainda de desacato ao tribunal, conduta que constitui ofensa punível de diversas maneiras”,196 podendo ser cometida pelas partes do processo ou por terceiros, de forma

192 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 90-92.

193 PASQUEL, Roberto Molina. Contempt of court: correciones disciplinarias y medios de apremio. México:

Fondo de Cultura Económica, 1954, p. 81-82.

194 ZARONI, Bruno Marzullo. Efetividade da execução por meio de multa: a problemática em relação à pessoa

jurídica. 2007. 355 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, Paraná. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=86080>. Acesso em: 11 nov. 2015.

195 SWAYZEE, Cleon Oliphant. Contempt of court in labor injunction cases. Nova Iorque: MAS Press, 1968.

p. 17. Apud SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Contempt of court e Fazenda Pública. Niterói: Eduff, 2015, p. 55. Tradução livre, a partir do original: “contempt of court may be defined as the commission of any act which tends to hamper a court in the administration of justice or to lessen its authority or dignity, whether by disobedience to an order of a court”.

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direta (na presença do juiz) ou indireta (fora do tribunal), ensejando, conforme o caso, a aplicação de sanções nas searas cível ou criminal.197

Ainda segundo este último autor, uma mesma conduta desrespeitosa pode ser punida como contempt civil, penal ou ambos, sendo fundamental perceber que o aspecto criminal, apurado em procedimento próprio e distinto daquele onde haja sido verificada a prática do ato, possui caráter estritamente sancionatório, repressivo, ao passo que o civil contempt apresenta natureza coercitiva, pois visa o cumprimento em si da ordem judicial. Diz-se, por isso, que o primeiro volta-se para o passado, enquanto este se dirige para o futuro.198

Não é outra a lição de Ada Pellegrini Grinover, ao distinguir as duas espécies de contempt of court, destacando que, enquanto o criminal destina-se a punir o comportamento atentatório constatado, o contempt civil visa a obtenção do cumprimento da determinação judicial, valendo-se dos meios coercitivos bastantes, de modo que uma única conduta pode ensejar a adoção de medidas em ambos os aspectos, civil ou penal. Neste último, de índole punitiva, o processo é autônomo e sumário, sendo instaurado de ofício ou mediante provocação do interessado, ao passo que, no civil, que é coercitivo e transacionável, a aplicação da medida se dá nos mesmos autos, por requerimento de quem de direito, garantida ampla defesa.199

Assinala, ainda, a processualista ítalo-brasileira que, dentre as cominações admissíveis, tanto para o contempt civil quanto para o criminal, estão a prisão – que na primeira modalidade citada é por tempo indeterminado, até que haja o efetivo atendimento da determinação judicial –, além da multa, a perda de direitos processuais e o sequestro de bens.200

Não é todo ato de descumprimento de ordem judicial, todavia, passível de ser coibido, indiscriminadamente, a título de contempt of court, mas apenas aqueles que impliquem na inobservância de uma injuction, veiculada por meio de decisões de caráter mandamental, que exigem do seu destinatário que realize ou deixe de realizar alguma atividade,201 destinando-se

essencialmente tal determinação, portanto, a obter o cumprimento de obrigações em sua forma específica.202

197 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 93. 198 Ibid., p. 95-98.

199 GRINOVER, Ada Pelegrini. Abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o contempt of court. In: A

marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 65.

200 Ibid., loc. cit.

201 BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e

Estados Unidos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 27-29.

202 BRAGA, Paula Sarno. O parágrafo único do art 14 do CPC: um contempt of court à brasileira. Revista jurídica

direito Unifacs. Salvador: Centro de Pesquisas Jurídicas, set. 2008, p. 5. Disponível em: <http://www.unifacs.br/revistajuridica/arquivo/edicao_setembro2008/>. Acesso em: 05 jun. 2015.

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Entende-se, no direito norte-americano, que o instituto das injuctions desempenha função intimamente relacionada à preservação da autoridade judiciária, de maneira que o desrespeito ao tribunal ocorre ainda que a ordem venha a ser posteriormente cassada ou alterada, quando do julgamento definitivo da causa. Parte-se do pressuposto de que não se pode deixar ao talante do destinatário decidir sobre a validade das ordens judiciais, sob pena de submeter-se o poder jurisdicional ao escárnio público.203 Esse o sentido e a finalidade precípua da punição por contempt.

Quanto ao elemento subjetivo, não se exige prova de dolo ou má-fé para possibilitar a condenação por civil contempt, bastando que a ordem seja objetivamente descumprida, podendo a sanção vir a alcançar inclusive terceiros que não sejam parte no feito, desde que comprovadamente conheçam o conteúdo da decisão e tenham efetivamente auxiliado ou contribuído para o seu desatendimento prático.204

Anota Desirê Bauermann, a propósito, que a própria codificação das normas processuais federais dos Estados Unidos, Federal Rules of Civil Procedure, em sua regra 65(d)(2), parte final, estabelece textualmente que estão vinculados ao cumprimento das injuctions não só as partes do processo, mas também seus oficiais, agentes, serventes, empregados e advogados, abrangendo, inclusive, outras pessoas que com estas participem em ativa comunhão de desígnios,205 hipótese em que ficam individualmente submetidas a formas

de coerção como a multa ou a prisão civil, atingindo-as de forma distinta da esfera jurídica e do patrimônio da pessoa jurídica demandada.206

Esses seriam, em uma sumária abordagem, os contornos básicos do poder de contempt em seus fundamentos e aplicabilidade prática, valendo atentar para a característica de ser inerente ao próprio exercício da atividade jurisdicional, por destinar-se a garantir a autoridade

203 ARENHART, Sérgio Cruz. A doutrina brasileira da multa coercitiva: três questões ainda polêmicas.

Disponível em:

<https://www.academia.edu/214439/A_DOUTRINA_BRASILEIRA_DA_MULTA_COERCITIVA_TR%C 3%8AS_QUEST%C3%95ES_AINDA_POL%C3%8AMICAS>. Acesso em: 14 nov. 2015.

204 BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e

Estados Unidos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 40-44.

205 Tradução livre do autor, a partir do original: “(2) Persons Bound. The order binds only the following who

receive actual notice of it by personal service or otherwise: (A) the parties; (B) the parties’ officers, agents, servants, employees, and attorneys; and (C) other persons who are in active concert or participation with anyone described in Rule 65(d)(2)(A) or (B).” ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Federal Rules of Civil Procedure. Disponível em: <http://www.uscourts.gov/file/rules-civil-procedure>. Acesso em: 15 set. 2015.

206 BAUERMANN, Desirê. Op. cit., p. 43-44. No mesmo sentido: GUERRA, Marcelo Lima. Contempt of court:

efetividade da jurisdição federal e meios de coerção no Código de Processo Civil e prisão por dívida – tradição no sistema anglo-saxão e aplicabilidade no direito brasileiro. Série cadernos do CEJ. Brasília: CJF, 2003, p. 319. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/CEJ-Coedi/serie-cadernos-do-cej>. Acesso em: 19 set. 2015.

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das decisões judiciais, destacando-se, ainda, a considerável amplitude de seus efeitos, alcançando as partes e mesmo terceiros alheios à relação processual, nas circunstâncias apontadas. Ainda que haja diferenças, aliás, em relação ao instituto congênere do direito pátrio, que examinaremos a seguir, é importante conhecer a natureza e particularidades de suas origens teóricas, para possibilitar uma melhor compreensão do tema.

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