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PECULIARIDADES DO CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER OU NÃO FAZER CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

POLÍTICAS PÚBLICAS

5.2 PECULIARIDADES DO CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER OU NÃO FAZER CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Sabe-se que a finalidade precípua dos mecanismos coercitivos destinados à efetivação da tutela específica das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa consiste, precisamente, em induzir o devedor ao cumprimento da determinação judicial, mediante pressão psicológica exercida pela cominação de uma dada consequência para o caso de sua inobservância, de que constituem exemplos por excelência a multa diária ou a prisão do devedor de pensão alimentícia, caracterizadas por sua natureza meramente processual, e não punitiva.313

Quando é o poder público que deva ser induzido a realizar determinada prestação, ou a abster-se de agir, contudo, tal como ocorre no controle judicial de políticas públicas, deve o julgador adotar as cautelas necessárias para que a medida eleita para a hipótese de inadimplemento possua, de fato, efeito coercitivo sobre a vontade daquele por meio de quem o

312 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de

entrega de coisa. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 284-285.

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Estado efetivamente atua – o gestor público –, compelindo-o a adotar as providências devidas para satisfazer o direito tutelado na demanda.

Esse poder de persuasão nem sempre é verificado, porém, por razões que se mostram até mesmo óbvias, quando a sanção estipulada pelo magistrado limita-se a onerar o Erário, sem qualquer reflexo sobre a esfera jurídica do agente público recalcitrante à efetivação da ordem judicial.314

Não se pode ignorar, por outro lado, que a personalidade jurídica da entidade de direito público é distinta da de seus membros, sejam eles ocupantes de cargos, empregos ou funções públicas, de maneira que a aplicação de consequências de ordem penal ou processual em desfavor destes, quando admissíveis, deve guardar estrita relação com sua própria conduta. Assim, eventuais atos de descumprimento do comando jurisdicional somente devem resultar na aplicação de medidas sancionatórias ou coercitivas contra o agente estatal, quando possam ser pessoalmente imputáveis a este, em razão de suas próprias ações ou omissões, e não simplesmente da pessoa jurídica de cujos quadros seja integrante, o que por vezes se mostra, ressalte-se, particularmente dificultoso de distinguir, em termos práticos.

Vale lembrar, a respeito do tema, o ensinamento de Hely Lopes Meireles, abraçando a teoria do órgão desenvolvida por Otto von Gierke, no sentido de que “os órgãos são centros de competências instituídos para o desempenho de funções estatais, através de seus agentes, cuja atuação é imputada à pessoa jurídica a que pertencem”.315

Assim, os órgãos públicos dependem de seus representantes legais, agentes ou servidores, para exercer as funções que lhes são legalmente conferidas e desenvolver as competências disciplinadas nas normas constitucionais e legais, porém os atos praticados por tais agentes ou representantes, ao atuarem nessa condição, são atribuíveis, nos planos civil e administrativo, ao próprio ente estatal.

Coerente com essa ideia, aliás, é a regra da responsabilidade objetiva dos atos do poder público, relativamente aos danos que seus agentes, nessa qualidade, ocasionarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa, na dicção do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

Dessa forma, a Administração Pública assume o risco inerente às suas atividades e responde civilmente pelos danos porventura causados a terceiros por seus agentes, no exercício

314 VILLEN, Antônio Carlos. Ação de preceito cominatório e Fazenda Pública. Revista de direito público. São

Paulo: Revista dos Tribunais, n. 86, abr.-jun. 1988, p. 153-155.

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das funções respectivas, somente ficando isenta de tal responsabilidade quando comprovada alguma causa excludente, como a culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior.316

A norma em comento é fundada na teoria do risco administrativo, que propugna pela repartição social equânime dos ônus provenientes de atos lesivos a terceiros, mediante a responsabilização da pessoa jurídica pelos danos decorrentes do funcionamento do serviço público, independentemente da verificação da qualidade deste.317 Não serve a regra, portanto, para imunizar o servidor público quanto às consequências de seu proceder – mesmo porque este pode ser condenado em ação regressiva estatal nos casos em que tenha agido com dolo ou culpa – , mas para viabilizar a distribuição por toda a coletividade das consequências do prejuízo causado à vítima, que fica dispensada do ônus de provar a ocorrência de culpa do agente.318

No aspecto eminentemente processual das medidas coercitivas destinadas a assegurar o cumprimento de provimento judicial pelo ente estatal, todavia, cuida-se de eleger o mecanismo que se mostre mais hábil para compeli-lo à realização da conduta que lhe foi imposta, mediante pressão psicológica exercida sobre quem detenha a competência legal de atuar em nome do Estado, a saber, o agente público a quem caiba a efetivação da ordem.

Nesse diapasão, dispõe o novo CPC, em seu art. 77, § 8º, que “o representante judicial da parte não pode ser compelido a cumprir decisão em seu lugar”. Verifica-se, inclusive, a ocorrência de impropriedade técnica do legislador, ao inserir a disposição em comento no artigo que disciplina a aplicação de sanção em virtude de ato atentatório à dignidade da justiça, de natureza induvidosamente punitiva, ao passo em que busca vedar, por meio de tal regra, a utilização de mecanismo coercitivo contra o representante da parte, como forma de o impelir à efetivação, no lugar desta, de provimento jurisdicional.

Renovamos, aqui, o raciocínio desenvolvido por ocasião do item 4.3.2 retro, pelo qual o dispositivo legal citado deve ser interpretado restritivamente, em sua dicção puramente literal, a fim de que não haja violação ao direito fundamental à tutela executiva. Explicando melhor, a exegese da regra é no sentido de que não se deve direcionar ao representante legal da parte, unicamente por se encontrar nessa posição jurídica, eventuais consequências do desatendimento de ordem judicial, como forma de pressioná-lo a cumprir, por seus próprios meios, a prestação ou abstenção reclamada. Desse modo, todos os custos e encargos inerentes ao cumprimento da

316 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1ª Turma). RE 109615/RJ, Relator Min. Celso de Mello. Brasília, 28

maio 1996. DJ de 02 ago. 1996, p. 25.785. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=200815>. Acesso em: 07 abr. 2016.

317 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 1961, p. 466. 318 STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 761.

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medida determinada judicialmente devem ser suportados pela pessoa jurídica figurante no polo passivo da ação.

Enfática, porém, deve ser a resposta judicial ao comportamento do gestor que, colocando-se entre o órgão jurisdicional e a pessoa jurídica que integra, obstaculiza, mediante ação ou omissão abusivas, a efetivação da ordem judicial, seja deixando injustificadamente de praticar ato de ofício, necessário à implementação da medida respectiva, seja assumindo comportamento oposto à obtenção de tal resultado, hipótese em que se revela admissível o direcionamento de medidas coercitivas à pessoa do agente público.

À semelhança, portanto, do que se dá na responsabilidade objetiva por atos da Administração Pública, defendemos que, via de regra e ordinariamente, para que se obtenha a satisfação do direito tutelado na demanda, sejam eleitos meios indutivos da atuação do agente ou representante legal do poder público, sob pena da incidência em consequências que devem pesar, em primeiro lugar, sobre o Erário, afetando preferencialmente o interesse público secundário.

Caso reste evidenciado, entretanto, que o agente público deixou de adotar, com um grau minimamente aceitável de eficiência, as providências que razoavelmente estavam ao seu alcance, comportando-se, culposa ou dolosamente, de modo contrário ou incompatível com o que lhe seria exigível para dar cumprimento à determinação judicial, podem ser manejados contra a sua pessoa os meios de execução indireta do art. 536, § 1º, do CPC, a fim de que seja compelido a exercer as atribuições funcionais necessárias à implementação da decisão, tal como na ação regressiva cabível em desfavor do servidor que ocasionou dano a terceiro por dolo ou culpa, na forma do art. art. 37, § 6º, da Constituição Federal.319

Essa, pois, é a única interpretação do art. 77, § 8º, do novo CPC, que se revela consentânea ao direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e adequada, identificado doutrinariamente como um direito às medidas judiciais consonantes com as necessidades do direto material deduzido em juízo e realizadas específica e concretamente em tempo hábil.320

Perceba-se, nesse passo, que a conduta do agente público que se oponha maliciosamente ao cumprimento de ordem judicial configura até mesmo crime de

319 VIANA, Juvêncio Vasconcelos. Efetividade do processo em face da Fazenda Pública. São Paulo: Dialética,

2003, p. 267-268.

320 MITIDIERO, Daniel. Direito fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva, tutelas jurisdicionais

diferenciadas e multa processual para o cumprimento das obrigações de pagar quantia. In: SHIMURA, Sérgio; BRUSCHI, Gilberto Gomes. Execução civil e cumprimento de sentença. São Paulo: Método, v. 3, 2009, p. 131.

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desobediência, a teor do que se depreende do art. 330 do Código Penal, conjugado com os arts. 26 da Lei do Mandado de Segurança (n. 12.016/09) e 536, § 3º, parte final, do Código de Processo Civil, conforme discorremos no item 4.4.2 do presente trabalho. Ora, se a determinação judicial dirigida ao servidor público, nas ações de obrigação de fazer ou não fazer movidas contra o Estado, possui caráter mandamental, cuja inobservância caracteriza infração penal, como sustentar que o Poder Judiciário não é autorizado a valer-se de meios coercitivos para assegurar o cumprimento de suas decisões, em face de quem tem a responsabilidade funcional de efetivá-la, e, injustificadamente, não o faz?

Nesse diapasão, leciona Sérgio Cruz Arenhart que, assim como ocorre nas sanções processuais por ato atentatório à dignidade da justiça, hoje disciplinadas pelo art. 77, inciso IV e § 2º, do novo CPC, que podem alcançar terceiros “que de qualquer forma participem do processo”, também as medidas coercitivas atípicas previstas no art. 536, § 1º, do CPC, podem ser direcionadas aos servidores da pessoa jurídica destinatária da ordem judicial,321 que possuem o dever de cumpri-la, não lhes sendo permitido opor embaraços à sua execução, sob pena de incorrerem nas reprimendas de ordem processual pertinentes.322

Para que o meio coercitivo eventualmente aplicado ao agente público não se transmude, contudo, em violação ao disposto no art. 77, § 8º, do CPC, nem venha a malferir o princípio da utilidade da execução, deve ser afastada a incidência de qualquer sanção processual em desfavor do servidor, nos casos em que o descumprimento resulte da real impossibilidade, por razões de ordem jurídica ou material, de efetivação, pelo ente público demandado, das providências necessárias à satisfação do direito.

A maior dificuldade, ressalte-se, para que se possa distinguir as hipóteses de inobservância voluntária e inescusável do provimento judicial, pelo agente público, daquelas em que o seu cumprimento se mostra impossibilitado, reside nas limitações cognitivas do próprio processo judicial, especialmente na tutela executiva, onde, de regra, não são desenvolvidos atos instrutórios exaurientes acerca da situação jurídica constitutiva da demanda, sobretudo nas ações relacionadas ao tema do controle judicial de políticas públicas, invariavelmente cercado de complexidade.

Esse é um dos motivos, aliás, pelo qual se deve preferir que, nos litígios de interesse público, a execução se desenvolva, tanto quanto possível, de forma negociada entre as partes e

321 ARENHART, Sérgio Cruz. A efetivação de provimentos judiciais e a participação de terceiros. Revista do

Instituto dos Advogados do Paraná. Curitiba: IAP, n. 34, dez. 2006, p. 228-230.

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o magistrado, visando construir um cronograma pactuado para a efetivação do provimento jurisdicional, a ser objeto de ulterior fiscalização pelos sujeitos processuais.323

Caso não seja possível, porém, a consecução de resultados satisfatórios pela via da colaboração entre as partes e demais interessados, com vistas ao atingimento consensual de tais objetivos, não é dado ao julgador pronunciar o non liquet, devendo valer-se dos instrumentos que a lei processual lhe conferem para, com a máxima efetividade, obter a satisfação integral do direito vindicado, inclusive empregando os meios coercitivos bastantes em face de quem, de modo suficientemente claro, esteja colocando embaraços, por ação ou omissão indevidas, ao cumprimento das medidas exigíveis na situação concreta.

Passemos à análise, doravante, dos diferentes meios executivos de natureza direta ou indireta, de que dispõe o julgador para o fim de realizar a tutela específica da obrigação ou de seu resultado equivalente em desfavor do Erário, à luz das normas e interesses potencialmente colidentes no caso concreto.

5.3 MEDIDAS COERCITIVAS NOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS: EXECUÇÃO

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