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O instituto das astreintes e a questão da sua aplicabilidade em desfavor do Erário

POLÍTICAS PÚBLICAS

5.3 MEDIDAS COERCITIVAS NOS PROVIMENTOS MANDAMENTAIS: EXECUÇÃO INDIRETA EM FACE DO ESTADO

5.3.2 O instituto das astreintes e a questão da sua aplicabilidade em desfavor do Erário

Medida coercitiva por excelência, a multa diária, ou astreinte, é sempre lembrada nas hipóteses em que se faz necessário o cumprimento forçado de obrigação de fazer ou não fazer diretamente pelo devedor, estando inserida dentre os meios executivos admissíveis para essa modalidade de tutela jurisdicional, na forma do art. 536, § 1º, do CPC.

Inspirada no direito comparado, sobretudo no sistema francês, como um dos raros instrumentos coercitivos eficazes na execução específica das obrigações de fazer – diante da regra geral da inadmissibilidade, entre nós, devido à limitação do art. 5º, inciso LXVII, da

330 GRINOVER, Ada Pellegrini. Tutela jurisdicional nas obrigações de fazer e não fazer. Revista de processo.

São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 79, jul. 1995, p. 69.

331 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). REsp 830417/RS, Relator Min. Mauro Campbell Marques.

Brasília, 14 set. 2010. DJe de 06 out. 2010. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200600575652&dt_publicacao=06/10/201 0>. Acesso em: 08 abr. 2016.

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Constituição Federal, da prisão civil dos países de common law, de indiscutível poder persuasivo –, a multa coercitiva chega a ser apontada, no dizer de Araken de Assis, como “o melhor meio executório hoje disponível”, apesar das restrições que lhe são inerentes, pois somente surte efeitos práticos em face de quem disponha de bens suscetíveis de penhora, bem como, porque não exerce pressão satisfatória perante os gestores públicos, “sempre tentados a ignorá-la, repassando o encargo aos seus sucessores, fiados na cômoda fila do precatório”.332

É nesse delicado cenário, fielmente retratado pelo ilustre professor gaúcho, que se insere o tema da aplicabilidade das astreintes nas demandas voltadas ao controle judicial de políticas públicas.

Antes de indagar, pois, acerca da admissibilidade de imposição, em desfavor do Erário, da pena de multa diária por descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, cumpre averiguar acerca da efetiva adequação da medida à hipótese versada, tendo em mente a natureza e finalidade do instituto, além do comportamento esperado das pessoas a quem de fato cabe o cumprimento da medida e os efeitos práticos que dela podem vir a resultar.

O caráter coercitivo das astreintes, que já era afirmado pela doutrina como uma dedução lógica da cumulabilidade entre a multa e as perdas e danos, enunciada no art. 461, § 2º, do Código Buzaid,333 encontra-se agora melhor explicitada no dispositivo congênere do novo CPC, ao dispor, em seu art. 500, que “a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa fixada periodicamente para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação”. (Grifou-se).

Com efeito, se o propósito da cominação pecuniária atribuída ao destinatário da ordem não é sancioná-lo, nem servir de fonte de enriquecimento ao beneficiário, mas “desestimular a inércia injustificada do sujeito passivo em cumprir a determinação do juízo”,334 é necessário certificar-se de que ela, de fato, detém potencialidade para produzir o efeito desejado, na hipótese em que se cogite sua aplicação.

No cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer em face do Estado, não se observa plausibilidade satisfatória da ocorrência de um resultado persuasivo sobre a vontade do

332 ASSIS, Araken de. Execução na ação civil pública. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.

82, abr. 1996, p. 51-52.

333 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 1995, p.

149.

334 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Seção). REsp 1112862/GO, Relator Min. Humberto Martins.

Brasília, 13 abr. 2011. DJe de 04 maio 2011. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200900590176&dt_publicacao=04/05/201 1>. Acesso em: 09 abr. 2016.

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administrador, diante da simples incidência da entidade pública respectiva em multa periódica arbitrada pelo juízo.

Ora, mesmo abstraindo-se quaisquer divagações acerca do nível de zelo e preocupação que os gestores públicos brasileiros possam ter para com a preservação do patrimônio coletivo, cumpre-nos perquirir, na seara puramente processual, se é razoável esperar que um dirigente de órgão estatal se sensibilize com o fato de estar a entidade incorrendo em imposição pecuniária decorrente de decisão judicial, mesmo sabendo que as consequências financeiras práticas daí provenientes são absolutamente incertas, e que só podem vir a se concretizar por meio de uma futura e eventual execução pelo moroso regime do precatório.335

Ainda mais incerta, outrossim, seria uma ação regressiva da Administração Pública contra o administrador, a fim de ressarcir o Erário pelos prejuízos experimentados com o pagamento da multa diária. A aplicação de astreintes ao poder público, destarte, somente teria o condão de servir, quando muito, para impor mais um ônus às já combalidas finanças públicas, revitimizando o contribuinte carente da atuação estatal,336 sem reflexo coercitivo bastante na demanda em que se busca a implementação de política pública determinada judicialmente.

Não milita a favor da ideia de adequação da multa periódica na hipótese, ademais, o argumento de que o demandante poderia valer-se da quantia obtida como proveito daquela para proceder à efetivação, com seus próprios meios, do direito prestacional objetivado na lide, ressarcindo-se dos gastos realizados para essa finalidade, a exemplo da aquisição de determinado medicamento ou do pagamento por cirurgia que deveriam ser custeados pelo poder público. É que não é esse o propósito do instituto, que não se presta a funcionar como mecanismo de conversão da obrigação em perdas e danos,337 pois detém função eminentemente coercitiva, destinada a assegurar o cumprimento específico da obrigação.

Caso deseje, portanto, obter a conversão do dever de fazer ou não fazer em perdas e danos, deverá o autor socorrer-se do disposto no art. 499 do CPC,338 ao invés de utilizar-se das

consequências pecuniárias das astreintes para tal fim. Entendimento diverso pode abrir margem ao surgimento de uma mera fonte de enriquecimento dos que litigam contra o Erário, pois, além de poderem usufruir do proveito financeiro da multa diária, corriqueiramente ignorada pelos

335 CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 9. ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 162. 336 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2012, p.

960.

337 AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do artigo 461 do CPC e outras.

2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 75.

338 “Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a

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gestores, ainda se mostra cabível aos exequentes a formulação do pleito de conversão da obrigação em perdas e danos, em face da cumulabilidade prevista no art. 500, do mesmo Código.

Não possui a multa diária, portanto, quando se cuide de tutela executiva em desfavor do poder público, a devida “aptidão para pressionar a vontade do devedor, de modo a induzi-lo a cumprir a obrigação”,339 ao ser direcionada contra os cofres públicos, não revelando, assim, a necessária adequação à finalidade perseguida por meio do processo, qual seja, o efetivo cumprimento do provimento judicial.

Ressalte-se, todavia, que não estamos a repreender a orientação jurisprudencial consolidada no Superior Tribunal de Justiça, no sentido do cabimento da imposição de multa coercitiva em desfavor do Estado.340 Permitimo-nos sustentar, por outro lado, a falta de eficácia prática de tal medida como meio de execução indireta contra a Fazenda Pública,341 tornando recomendável que se busquem, em seu lugar, outros mecanismos processuais bastantes para assegurar, com a devida efetividade, o cumprimento da decisão exequenda.

Não passa a multa periódica, desse modo, quando utilizada em face do poder público, de um arremedo de meio coercitivo, para nada mais servindo do que conferir ao autor uma doce ilusão de que o ente demandado está sendo efetivamente compelido à satisfação do direito tutelado, ao mesmo tempo em que o Poder Judiciário, assim agindo, parece fingir que exerce algum esforço com esse desiderato. Consiste, enfim, em uma indesejável causa de descrédito e de mácula à autoridade das decisões judiciais, cuja prática no cotidiano forense – se é que verdadeiramente há um compromisso com a efetividade processual –, necessita ser extirpada, diante de seu caráter nitidamente inútil e até mesmo nocivo.

Assim, nada obstaria, legalmente, a aplicação de astreintes contra o Estado, mas a falta de utilidade concreta de tal cominação para induzir o administrador público à implementação da política pública almejada no processo torna inadequado, via de regra, o seu manejo como meio coercitivo nessa espécie de demanda, ressalvadas as raríssimas hipóteses nas quais, de fato, haja fundadas razões que possam levar a conclusão diversa.

339 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 191.

340 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). AgRg no REsp 1073448/RS, Relator Min. Napoleão Nunes

Maia Filho. Brasília, 06 out. 2015. DJe de 15 out. 2015. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200801511600&dt_publicacao=15/10/201 5>. Acesso em: 09 abr. 2016.

341 GOUVÊA, Marcos Maselli. O direito ao fornecimento estatal de medicamentos. In: GARCIA, Emerson

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Trataremos em tópico autônomo do assunto alusivo à possibilidade de se direcionar os meios coercitivos à pessoa do gestor em sede do controle judicial de políticas públicas, devido à necessidade de uma abordagem mais aprofundada do tema, em razão de suas especificidades.

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