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A incidência do agente público nas sanções por contempt of court em demanda movida contra o Estado

MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

4 O CONTEMPT OF COURT COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE DO ESTADO

4.3 A CONFIGURAÇÃO DO CONTEMPT OF COURT NO ÂMBITO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

4.3.2 A incidência do agente público nas sanções por contempt of court em demanda movida contra o Estado

Defendia parcela expressiva da doutrina, sob a égide do Código Buzaid, a possibilidade de incidência do funcionário público destinatário da ordem judicial nas penas então previstas no art. 14, parágrafo único, por descumprimento do dever processual descrito no inciso V do mesmo artigo, de “cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final”.240

Registrava Araken de Assis que, na condição de “destinatário precípuo da ordem”, cuja atuação subordina-se ao princípio da legalidade, insculpido no art. 37 da Constituição Federal, ficava o servidor público sujeito às referidas sanções.241

Entendia-se, na esteira do instituto similar do common law,242 que as sanções por ato de contempt of court alcançariam não só quem fosse parte no processo, mas, na literalidade do art. 14, caput, do CPC revogado, “todos aqueles que de qualquer forma participam do processo”, de modo a abarcar os terceiros em sentido estrito (como o assistente, o Ministério Público, ou o arrematante) e os terceiros em sentido lato (a exemplo da testemunha, do perito, do depositário, do administrador e qualquer do povo que se interponha entre o magistrado e o cumprimento do seu mandado).243

No mesmo diapasão era o ensinamento de Cândido Rangel Dinamarco, que visualizava no art. 14, inciso V, do CPC revogado, a existência de dois deveres distintos. O primeiro, que exigia o cumprimento da decisão mandamental, era atribuível exclusivamente ao titular da obrigação nesta especificada, de fazer, não-fazer ou entregar coisa. Já o segundo, de não embaraçar a efetivação dos provimentos judiciais, detinha eficácia erga omnes, sendo inerente

240 VIANA, Juvêncio Vasconcelos. Efetividade do processo em face da Fazenda Pública. São Paulo: Dialética,

2003, p. 273-274.

241 ASSIS, Araken de. O contempt of court no direito brasileiro. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos

Tribunais, n. 111, jul.-set. 2003, p. 31.

242 BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e

Estados Unidos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 40-44.

243 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil interpretado. 6. ed. São Paulo: Manole,

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a “quem quer que, mesmo não tendo dever algum relacionado com essa efetivação, interfere no iter de sua produção mediante condutas que a impossibilitem ou dificultem”.244

Essa também tem sido a orientação adotada pela jurisprudência do STJ, conforme se depreende do esclarecedor voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi, acolhido à unanimidade por aquele Colegiado, no qual restou assentada a aplicabilidade das sanções do art. 14, parágrafo único, do CPC de 1973 em relação aos peritos e especialistas, que não integram a relação processual:

Nos termos do inciso V do art. 14 do CPC, são dois os deveres impostos com a finalidade de garantir a efetividade das decisões judiciais: (i) cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e (ii) não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais de natureza antecipatória ou final.

Os destinatários da norma, portanto, são distintos: o primeiro dever diz respeito ao obrigado direto do provimento mandamental, que deve cumprir imediatamente a ordem; o segundo dever, contudo, é endereçado às partes e a todos os que, de qualquer modo, participem do processo.

Ao exigir que terceiros, alheios à relação jurídica processual, sejam também destinatários do dever de obediência inscrito art. 14, caput e sujeitos à multa prevista no parágrafo único do mesmo dispositivo legal, o CPC apenas enunciou o ônus de colaborar com a justiça, afeto a todos os cidadãos.

[...] Conforme a regra do art. 14 do CPC, portanto, mesmo quem não é parte ou terceiro interveniente está obrigado a submeter-se aos deveres nela inscritos e, consequentemente, ao pagamento da sanção devida face ao desacato à jurisdição.245

(Grifo nosso).

Ao comentar a norma proibitiva da criação de embaraços à implementação da ordem judicial, citava a doutrina, como exemplo expressivo de violação da regra, as dificuldades de natureza burocrática provocadas de forma artificiosa por agentes públicos de qualquer esfera da administração, devendo, em consequência, ser pessoalmente responsabilizados em razão de sua conduta.246

Ao regular o tema, o novo CPC trouxe poucas inovações em relação à anterior legislação processual, como já dito no item 4.2.1 retro, mantendo, em suas linhas gerais, a sanção cível por contempt of court instituída em nosso sistema jurídico pela Lei nº 10.358/2001, inclusive quanto ao alcance subjetivo dos deveres de cumprimento das determinações judiciais e de não criar embaraços à sua implementação, que continuam a caber às partes, a seus

244 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 60.

245 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3ª Turma). REsp 1013777/ES, Rel. Min. Nancy Andrighi. Brasília, 13

abr. 2010, Dje de 01 jul. 2010. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200702946938&dt_publicacao=01/07/201 0>. Acesso em: 21 dez. 2015.

246 WAMBIER, Luiz Rodrigues. A efetividade do processo e a nova regra do art. 14 do CPC. In: CALMON,

Eliana; BULOS, Uadi Lammêgo. Direito processual: inovações e perspectivas – Estudos em homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 363.

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procuradores e a todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, na forma do art. 77, inciso IV, do novo Código.

No que se refere especificamente ao representante judicial da parte, contudo, dispôs o § 8º do mencionado artigo que este “não pode ser compelido a cumprir decisão em seu lugar”. Deve-se indagar, consequentemente, se permanece válida, com a nova dicção legal ora em exame, a orientação doutrinária pela qual o gestor público poderia ser apenado por ato atentatório à dignidade da justiça, relacionado à falta de cumprimento de ordem judicial na qual figure como destinatário, alusiva a obrigações impostas ao ente estatal que integra.

É de se perceber, de início, que o teor do sobredito § 8º apenas explicita uma regra que se afeiçoa até mesmo intuitiva, por decorrente da absoluta distinção entre a personalidade jurídica do dirigente do órgão público e a deste próprio, a exigir, como consectário lógico, que o cumprimento da determinação jurisdicional seja efetivado às expensas da própria pessoa jurídica demandada, e não de seu representante judicial ou legal.247

Ora, como restou salientado nas linhas anteriores, a punição que poderia ser dirigida ao administrador da pessoa jurídica, segundo a doutrina, na forma do art. 14, inciso V, do CPC de 1973, não tinha por fundamento a norma contida na primeira parte do dispositivo, alusiva ao cumprimento em si da ordem judicial, exigível unicamente, por óbvio, de quem tenha o dever jurídico de agir. Vedava-se na segunda parte do texto legal, entrementes, que a pessoa que, de qualquer forma, participasse do processo, viesse a causar embaraços à efetivação do provimento emitido pelo Poder Judiciário.248

Tais regras foram mantidas – e até mesmo ampliadas em relação ao seu alcance objetivo, como já expusemos no item 4.2.1 retro – pelo CPC de 2015, em seu art. 77, inciso IV. A norma do art. 77, § 8º, do novo CPC, portanto, limita-se a adotar de forma expressa os escólios doutrinário e jurisprudencial citados, pelos quais cabe às partes cumprir as decisões judiciais, sendo vedado a qualquer pessoa, contudo, embaraçar-lhes a efetivação, sob pena de incorrerem, em ambos os casos, nas penas por contempt.

Assim é que, na opinião de Guilherme Rizzo Amaral, as condutas diretamente imputáveis ao representante da parte, configuradoras de atentado à dignidade da justiça e que independam da capacidade de cumprimento da pessoa jurídica obrigada, podem resultar na

247 Faz-se necessário examinar, todavia, a possibilidade de incidência subsidiária de medidas judiciais coercitivas

em desfavor do gestor da pessoa jurídica, visando o cumprimento de ordem jurisdicional, o que será objeto de análise no capítulo próprio do presente trabalho, destinado ao estudo dos mecanismos de apoio aos provimentos de caráter mandamental.

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aplicação da sanção por contempt, como, por exemplo, o ato de se ocultar do oficial de justiça para não ser cientificado da decisão.249

Não se ignora, pois, para que possa haver a imposição de pena por embaraço à implementação da decisão,250 a necessidade de restar devidamente caracterizado o

comportamento abusivo do agente público, que lhe haja sido atribuído de forma individualizada, em razão de ação ou omissão no desempenho das atribuições funcionais exigíveis no caso concreto.

Entendimento diverso viria, inclusive, a contrariar frontalmente a compreensão pela qual configura crime de desobediência a conduta do servidor público que deixa de atender a provimento de natureza mandamental que lhe tenha sido dirigido, consoante estabelecem os arts. 26 da Lei nº 12.016/2009 e 536, § 3º, do novo CPC, o que será objeto de estudo no item 4.4.2 do presente trabalho.

Isso porque, na eventualidade de sequer chegar a constituir atentado à dignidade da justiça a atuação comissiva ou omissiva do agente público, violadora do dever processual de não embaraçar o cumprimento de ordem judicial que lhe tenha sido expressamente dirigida, não poderia tal conduta vir a ser considerada crime, diante do caráter subsidiário exercido pelo Direito Penal, decorrente do princípio da intervenção mínima.251

Leciona André Copetti, a propósito do tema, que se deve “dar preferência a todos os modos extrapenais de solução de conflitos. A repressão penal deve ser o último instrumento utilizado, quando já não houver mais alternativas disponíveis”.252

Não se pode admitir, desse modo, que o legislador tenha aberto mão de uma sanção de cunho processual para reprimir determinado comportamento, ao passo que mantém a tipificação da mesma conduta como infração penal. Caso se entenda de tal maneira, ter-se-á por derrogado, pelo novo CPC, o crime de desobediência, em relação ao funcionário público no exercício de suas funções, enquanto destinatário da ordem mandamental prevista no art. 26 da Lei nº 12.016/2009, de forma contraditória, ademais, com o disposto no art. 536, § 3º, do próprio CPC. Dita interpretação não se coaduna, no entanto, com os princípios do acesso substancial à justiça e da inafastabilidade do controle jurisdicional, que exigem, para afirmação do Estado

249 AMARAL, Guilherme Rizzo. Alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 140-141. 250 Cf. art. 77, inciso IV, parte final, do CPC.

251 Preconiza tal princípio que o Direito Penal somente deve ser chamado a interferir na vida em sociedade quando

os demais ramos do Direito não sejam suficientes para proteger os interesses considerados mais importantes (GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 16. ed. Niterói: Impetus, v. 1, 2014, p. 51-52).

252 COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000,

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Democrático de Direito, de modo indispensável, a preservação da autoridade das decisões judiciais, não se podendo, enfim, abdicar de meios legais asseguradores da respeitabilidade destas.

Vindo o agente público destinatário da ordem judicial, destarte, de modo injustificado, a deixar de dar-lhe o devido cumprimento, mediante omissão em realizar as atribuições funcionais que lhe incumbem para a obtenção dos resultados especificados, ou por vir a exercê- las de modo manifestamente incompatível com a efetivação do provimento jurisdicional, deve receber a sanção legalmente prevista para o ato atentatório à dignidade da justiça, arbitrada de forma proporcional à gravidade da conduta.

Convém atentar, por fim, para o equívoco cometido pelo legislador, ao associar ao contempt of court do art. 77 do novo CPC, de natureza essencialmente punitiva, a regra contida no § 8º, pela qual “o representante judicial da parte não pode ser compelido a cumprir decisão em seu lugar” (grifo nosso), buscando-se, assim, na verdade, vedar a aplicação de medidas coercitivas àquele, para o fim de induzi-lo à efetivação da medida no lugar da parte por ele representada em juízo, o que será, de igual modo, tratado oportunamente neste estudo.

4.4 PRISÕES CIVIL E PENAL EM RAZÃO DO DESCUMPRIMENTO DE ORDEM

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