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A medida extrema da prisão civil como meio de efetivação da tutela específica de obrigação de fazer ou não fazer

MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

4 O CONTEMPT OF COURT COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE DO ESTADO

4.4 PRISÕES CIVIL E PENAL EM RAZÃO DO DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL POR SERVIDOR PÚBLICO NO DIREITO BRASILEIRO

4.4.1 A medida extrema da prisão civil como meio de efetivação da tutela específica de obrigação de fazer ou não fazer

Não obstante a falta de previsão legal expressa estatuindo a admissibilidade da prisão civil como medida coercitiva no direito brasileiro, para além da situação específica do “inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia”, de que trata o art. 5º,

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LXVII, da Carta Magna, controverte-se em doutrina acerca da existência de fundamento jurídico bastante para o cabimento do instituto em outros casos, especialmente naqueles de maior gravidade, que estejam a desafiar a autoridade dos provimentos jurisdicionais de caráter mandamental.

Ensina Ingo Sarlet que, contrariamente ao que comumente se possa pensar, a prisão civil era amplamente aceita nas origens do direito brasileiro, sobretudo nas hipóteses de depositário infiel e suas variações, conforme previsões contidas no Código Comercial de 1850 e no Código Civil de 1916, silenciando sobre o tema as Constituições de 1824 e de 1891. Já a prisão civil do devedor alimentante somente depois veio a ser instituída em nossa legislação. A partir da Carta Constitucional de 1934, passou a ser expressamente vedada a “prisão civil por dívidas, multas ou custas”, até se chegar ao modelo jurídico contido na Constituição vigente.253

É consabido que, por força da jurisprudência consolidada no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, por meio, respectivamente, da Súmula Vinculante n. 25, de 16 de dezembro de 2009,254 e da Súmula n. 419, de 03 de março de 2010,255 foi banida qualquer modalidade de prisão civil de depositário infiel, em razão da exegese dada ao art. 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).256

Resta saber, por conseguinte, se o correto é concluir que hoje somente se admite, como única modalidade de prisão civil, a do devedor de alimentos, ou, por outro lado, se a expressão prisão civil por dívida, de que trata o dispositivo constitucional citado, compreenderia unicamente as situações alusivas a obrigações pecuniárias, sem vedar terminantemente outras hipóteses em que ela possa ter cabimento.

Para Ovídio Baptista da Silva, não é aceitável a tese de que a Constituição proibiria apenas a prisão por dívidas. No entender do autor, ao mencionar as exceções abertas ao princípio, a Constituição aludiu a um caso de dívida monetária, qual seja, a obrigação alimentar, bem como, a outro que não se confunde com essa espécie de obrigação, que é a prisão do

253 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais em espécie. In: SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz

Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 478.

254 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 25. Brasília, 16 dez. 2009. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1268>. Acesso em: 14 abr. 2016.

255 Id. Superior Tribunal de Justiça (Corte Especial). Súmula n. 419. Brasília, 03 mar. 2010. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br/SCON/sumulas/enunciados.jsp>. Acesso em: 14 abr. 2016.

256 CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Pacto de San José da Costa Rica. San José

de Costa Rica, 22 nov. 1969. Disponível em:

<http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>. Acesso em: 14 abr. 2016.

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depositário infiel. Assim, se a prisão por razões distintas de dívidas fosse autorizada, ficaria desprovida de sentido a exceção atinente à infidelidade depositária.257

Refutando tal raciocínio, assevera Sérgio Cruz Arenhart que a prisão do depositário infiel, assim como a do devedor de alimentos, consiste em situação tipicamente derivada de relação obrigacional. Dessa maneira, a menção feita pelo texto constitucional à prisão civil por dívida representaria uma vedação taxativa de tal meio coercitivo apenas para os casos originados de vínculo obrigacional. Essa seria uma interpretação que atribui algum significado à palavra dívida, empregada pelo constituinte, não podendo ser solenemente desconsiderada.258

Há que se salientar, ademais, que o entendimento consagrado na Súmula Vinculante n. 25, do STF, não se erige em empecilho a essa última orientação doutrinária, tendo em vista que os precedentes que originaram a emissão de tal enunciado restringem-se, unicamente, à hipótese da infidelidade depositária, fazendo-se necessária a devida distinção em relação a outros casos ainda não submetidos à análise de constitucionalidade pelo Pretório Excelso.259

De fato, quisesse o constituinte banir qualquer espécie de prisão civil, para preservar apenas as exceções expressamente descritas, não teria se utilizado do termo dívida. Isso pode estar relacionado, contudo, às origens históricas da norma, tal como vinha sendo adotada nas Constituições anteriores.

Refletindo sobre o tema, anota Marcelo Lima Guerra que a solução para esse dilema hermenêutico não pode ser obtida no plano puramente semântico, sendo necessária uma decisão interpretativa fundamentada. Consigna, ainda, que a tese ampliativa da prisão civil, que confere à palavra dívida o sentido de obrigação pecuniária, apresenta compatibilidade com a teoria dos direitos fundamentais, pois permitiria o uso concreto dessa medida coercitiva somente nos casos em que se revelasse “necessário, exigível e proporcional proteger outro direito fundamental, com sacrifício da liberdade individual”. Entendimento contrário implicaria em privilegiar, de modo abstrato e absoluto, a liberdade individual, em uma indevida hierarquização de direitos

257 SILVA, Ovídio Baptista da. Do processo cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 535. No mesmo sentido:

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Impossibilidade de decretação de pena de prisão como medida de apoio, com base no art. 461, para ensejar o cumprimento da obrigação in natura. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 112, out.-dez. 2003, p. 199.

258 ARENHART, Sérgio Cruz. A prisão civil como meio coercitivo. In: TESHEINER, José Maria Rosa;

MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto. Instrumentos de coerção e outros temas de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 643-647.

259 ZACARELLA, Peterson; COUTO, Mônica Bonetti. Horizontes da prisão civil nas tutelas das obrigações

de fazer, não fazer e entregar coisa certa no direito processual civil brasileiro: esvaziamento ante a Súmula Vinculante 25/STF? In: IOCOHAMA, Hiroshi Celso; SALDANHA, Jânia Maria Lopes (Coord.). Processo e jurisdição. Florianópolis: FUNJAB, 2013, p. 280-283. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/publicacao/unicuritiba/livro.php?gt=97>. Acesso em: 18 dez. 2015.

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fundamentais. Desse modo, a comprovada eficácia da prisão civil como meio indutivo favorece o direito fundamental à tutela executiva, possibilitando a proteção de outros direitos fundamentais como o meio ambiente, a saúde, a privacidade e a própria vida.260

Prosseguindo em seu escólio, entende o doutrinador que, afastada a vedação do uso da prisão civil fora das hipóteses explicitamente previstas no art. 5º, LXVII, da Constituição, poderia ela ser empregada como medida coercitiva inominada, embasada no direito fundamental à tutela executiva e inserida na moldura aberta do art. 536, § 1º, do CPC. Essa seria, contudo, uma alternativa excepcional, sujeita ao exame de proporcionalidade no caso concreto, somente sendo admissível diante da inadequação de qualquer outro meio coercitivo para a obtenção do resultado almejado.261

A orientação esposada viabiliza a outorga da tutela jurisdicional adequada em situações nas quais estejam em jogo direitos fundamentais de igual estatura à dignidade e à liberdade, possibilitando-se a utilização da prisão civil como meio coercitivo quando, no caso concreto, se mostre necessária para assegurar o cumprimento de decisões judiciais destinadas à efetivação de deveres legais em hipóteses distintas de obrigações de natureza pecuniária.262

Essa é a conclusão que se extrai do método hermenêutico-concretizador,263 pelo qual se deve evitar a interpretação da norma tão-somente com base no seu texto, isolada do contexto no qual deve incidir. O uso da prisão civil não deve ser descartado, portanto, quando se mostre como o único meio bastante para conferir uma tutela efetiva a direitos fundamentais.264

Outros autores entendem que, embora não haja obstáculo constitucional à prisão civil quando esta se apresente como necessária a proporcionar a satisfação de direitos fundamentais, especialmente aqueles destinados a assegurar uma existência digna ao seu titular – como os direitos sociais a prestações fáticas, a exemplo das relacionadas à saúde, educação ou moradia –, tal medida precisaria ser autorizada de forma expressa pelo legislador.265

260 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2003, p. 135-136.

261 Ibid., p. 136-137.

262 BALEOTTI, Francisco Emilio. Extensão dos poderes do juiz na execução. Revista de processo. São Paulo:

Revista dos Tribunais, n. 199, set. 2011, p. 132.

263 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 323. 264 MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 4. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2013, p. 230-231.

265 TALAMINI, Eduardo. Concretização jurisdicional de direitos fundamentais a prestações positivas do Estado.

In: TESHEINER, José Maria Rosa; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto. Instrumentos de coerção e outros temas de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 172- 173. Também: BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e Estados Unidos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2012, p. 135.

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Não há razão, porém, para se exigir uma disposição legal específica nesse sentido, se a norma processual estabelece que cabe ao juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”,266 em razão de consistir a prisão civil, nos casos em que possa ser admitida,

em um meio coercitivo por excelência.

Registre-se, por fim, que somente na hipótese concreta será possível, mediante o esforço argumentativo típico de casos difíceis, fazer prevalecer, após uma acurada análise de proporcionalidade, a tutela de outro direito fundamental sobre o direito de liberdade, para se decretar a prisão civil como forma de dar efetividade à atuação jurisdicional, caso seja esta a única medida coercitiva capaz de salvaguardar o interesse tutelado, diante das peculiaridades da situação fática.267

No que diz respeito, mais propriamente, à admissibilidade da prisão civil do agente público, em sede de demanda movida contra o Estado para a realização do controle judicial de políticas públicas, verifica-se uma dificuldade ainda maior para que se tenha por autorizado o uso desse meio coercitivo extremo.

É que há, em tese, outras medidas igualmente hábeis para assegurar a observância da decisão judicial, pelo servidor, a exemplo da cominação de multa diária pessoal para o agente, de que trataremos mais adiante, ou mesmo do seu afastamento temporário do cargo, com prejuízo dos vencimentos, a título de medida coercitiva inominada, durante prazo razoável, a fim de que o correspondente substituto legal na função possa dar cumprimento à ordem jurisdicional, o que, sem dúvida alguma, possuiria menor invasão na esfera jurídica do administrador público do que a decretação de sua prisão civil. Tudo isso, é claro, devidamente cercado das garantias do contraditório e ampla defesa, para que possa resultar na imposição de qualquer medida coercitiva em face de um terceiro, que não integra, pois, a relação processual.

Infere-se, por conseguinte, que embora não se possa excluir de modo absoluto, diante do lastro teórico colacionado, a possibilidade de decretação da prisão civil do gestor público, como forma de viabilizar a efetivação da política pública judicialmente determinada, dando-se o necessário valor ao direito fundamental à tutela executiva, vislumbramos essa alternativa como altamente rara e excepcional. Somente será admissível o exame de seu cabimento, em

266 Art. 139, inciso IV, do CPC.

267 ARENHART, Sérgio Cruz. A prisão civil como meio coercitivo. In: TESHEINER, José Maria Rosa;

MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto. Instrumentos de coerção e outros temas de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 643-647.

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concreto, quando não haja nenhuma outra medida capaz de amparar o direito fundamental vindicado na demanda, cujo sacrifício não seja razoável se exigir, mediante confrontação ponderativa com o direito de liberdade.

4.4.2 A infração penal resultante do ato de descumprimento a ordem judicial por agente

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