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POLÍTICAS PÚBLICAS

5.4 A ADMISSIBILIDADE DA MULTA DIÁRIA EM FACE DE AGENTES PÚBLICOS

5.4.2 A suscetibilidade de terceiros ao poder coercitivo da atividade jurisdicional

Vale atentar, inicialmente, para a posição processual exercida pelo administrador público em relação ao cumprimento da ordem que lhe é dirigida, visando a efetivação de determinada providência em nome do ente estatal ao qual é vinculado.

Para além da evidente constatação de que o servidor não é parte na causa, pois o polo passivo deve ser sempre ocupado pela pessoa jurídica em face de quem tenha sido formulado o pedido meritório, não cabe ignorar que o administrador desta, a quem tenha sido diretamente emitida uma determinação para o cumprimento de medida relacionada às respectivas atribuições, passa a ostentar um inevitável liame com a relação processual, ainda que restrito ao atendimento do provimento judicial e à obrigatoriedade legal de prestar as devidas informações ao magistrado.346

Como decorrência do dever genérico de boa-fé processual que cabe a todos os sujeitos processuais e mesmo aos simples partícipes do processo, na forma do art. 5º do CPC, impõe o art. 77, inciso IV, do mesmo Código, que incumbe às partes, a seus procuradores e, também, a “todos aqueles que de qualquer forma participem do processo”, os deveres de (i) “cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final”, e (ii) de “não criar embaraços à sua efetivação”. A inobservância de qualquer desses deveres, na dicção do § 2º, do mesmo artigo, constitui ato atentatório à dignidade da justiça, dando ensejo à aplicação, ao responsável, de multa de até vinte por cento do valor da causa, conforme a gravidade da conduta, “sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis”.

346 Cf. art. 378 do CPC: “Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento

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Trata-se, como enfatizado pela própria norma, de dever processual inerente a todos os sujeitos processuais e a qualquer pessoa que de qualquer forma participe do processo.347 O caráter abrangente da regra visa, inapelavelmente, alcançar quem quer que possa contribuir com o cumprimento das decisões judiciais, ou ainda, inversamente, embaraçar-lhes a implementação, a fim de assegurar a autoridade da atividade jurisdicional do Estado.

Nesse sentido, aliás, tem entendido o Superior Tribunal de Justiça que a multa por ato atentatório à dignidade da justiça, anteriormente estatuída no art. 14, parágrafo único, do CPC de 1973, e hoje disciplinada, sem grandes alterações, pelo art. 77 do novo Código, aplica-se inclusive aos peritos atuantes no processo, que, notoriamente, não integram a relação processual. Em didático voto, inclusive, a eminente Ministra Relatora bem distinguiu os dois deveres destinados a garantir a efetividade das decisões judiciais, que podem dar azo à referida reprimenda pecuniária, quais sejam, o dever de cumpri-las com exatidão, inerente a quem haja sido diretamente atribuída tal incumbência, e, por fim, o de não criar embaraços à efetivação daquelas, sendo este último aplicável a todas as pessoas, ainda que alheias à relação processual, em decorrência do “ônus de colaborar com a justiça, afeto a todos os cidadãos”.348

É válido afirmar, por conseguinte, que o servidor público a quem seja dirigida uma ordem judicial para a adoção das providências administrativas que lhe caibam, por inerentes às suas atribuições funcionais, objetivando implementar determinada política pública, incorrerá, caso deixe de dar cumprimento a tal determinação, nas mencionadas sanções por ato de contempt of court, do art. 77, inciso IV, § 2º, do CPC. Pode ainda o agente incidir, ademais, nas penas por crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal, caso fique evidenciado que agiu com dolo, consoante expusemos por ocasião dos itens 4.3 e 4.4 deste estudo.

Essa é a razão pela qual respeitável corrente doutrinária sustenta que, assim como vários outros dispositivos da lei processual impõem deveres e responsabilidades para terceiros que não figuram como partes no feito,349 ao ponto de implicar na emblemática possibilidade de

serem apenados por ato atentatório à dignidade da justiça, mostra-se perfeitamente admissível

347 A lei processual excepciona apenas, do âmbito de incidência da referida sanção, no § 6º do artigo, os

advogados, Defensores Públicos e membros do Ministério Público, suscetíveis de responder tão-somente, na hipótese, por penalidade disciplinar, conforme previsão contida no estatuto funcional ou profissional próprio.

348 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3ª Turma). REsp 1013777/ES, Rel. Min. Nancy Andrighi. Brasília, 13

abr. 2010, Dje de 01 jul. 2010. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200702946938&dt_publicacao=01/07/201 0>. Acesso em: 21 dez. 2015.

349 Alude-se à situação congênere do depositário ou do administrador (arts. 159 a 161 do CPC), do arrematante

(arts. 895 e 897), ou, ainda, da pessoa indicada para a execução de obrigação de fazer por terceiros (arts. 817 a 819), dentre outras hipóteses.

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a aplicação de multa diária em desfavor do agente público a quem caiba a efetivação do provimento judicial, nas demandas contra o Estado, na forma do art. 536, § 1º, do CPC.350

Outra não é, também, a lição de Marcelo Lima Guerra, para quem a imposição de multa coercitiva contra terceiros – dentre os quais o autor insere o administrador público de cuja ação ou omissão dependa diretamente a efetivação da tutela específica da obrigação –, é uma exigência do direito fundamental à tutela executiva, autorizada pelo art. 461, § 5º, do Código revogado, cuja redação foi incorporada pelo art. 536, § 1º, do novo CPC.351

Salienta o professor cearense, ainda, que a ilação de que o poder jurisdicional não pode alcançar terceiros alheios à relação processual é um dogma incorreto que necessita ser desfeito, pois tal limitação diz respeito apenas às providências finais do processo, alusivas ao mérito da causa, e não ao poder coercitivo, “destinado a remover obstáculos à administração da justiça”,352 a exemplo da determinação da exibição e apreensão de documentos e coisas em poder de terceiros ou da condução coercitiva de testemunhas faltosas.353

Demonstração evidente do acerto do escólio referido, a propósito, está na redação atribuída ao art. 380 do Código de Processo Civil, que teve acrescido um parágrafo único, em relação ao texto do art. 341 do CPC revogado, para estabelecer que, no caso de descumprimento, pelo terceiro, de qualquer dos deveres processuais de “informar ao juiz os fatos e as circunstâncias de que tenha conhecimento e de exibir coisa ou documento que esteja em seu poder”,354 poderá o juiz impor, além “de multa, outras medidas indutivas, coercitivas,

mandamentais ou sub-rogatórias”. (Grifo nosso).

Trata-se da expressa confirmação legal, destarte, do inescapável alcance, também em relação a terceiros, do poder coercitivo inerente às decisões jurisdicionais, com maior razão ainda para aquelas revestidas de caráter mandamental, destinadas à obtenção da tutela específica de um fazer ou não fazer.

Diversos outros processualistas de escol compartilham do entendimento esposado,355

ensinando Cândido Rangel Dinamarco que a necessidade de observância das decisões emitidas

350 ARENHART, Sérgio Cruz. A efetivação de provimentos judiciais e a participação de terceiros. Revista do

Instituto dos Advogados do Paraná. Curitiba: IAP, n. 34, dez. 2006, p. 217-221.

351 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2003, p. 130-132 e 197.

352 Ibid., p. 130-132.

353 Arts. 403, parágrafo único, e 455, § 5º, do CPC. 354 Art. 380, incisos I e II, do CPC.

355 DIDIER JR., Fredie et al. Curso de direito processual civil: execução. 6. ed. Salvador: Juspodivm, v. 5, 2014,

p. 453. Também: CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 9. ed. São Paulo: Dialética, 2011, p. 162.

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pelo Judiciário em face dos demais Poderes impõe-se diante do dever recíproco de respeito às atividades legitimamente realizadas por cada um destes, sendo fundamental à existência de um ambiente democrático o cumprimento, pelos entes estatais, das determinações judiciais, sob pena de risco ao próprio Estado de Direito.356

Não se mostra admissível, todavia, uma generalização indiscriminada da imposição de multa coercitiva aos agentes públicos, no âmbito das ações destinadas ao controle jurisdicional de políticas públicas, pois isso poderia implicar em violação ao disposto no art. 77, § 8º, do CPC,357 conforme discorremos no item 5.2 retro.

De fato, dirigir uma determinação genérica a um servidor, para que proceda à implementação de determinada política pública, sob pena de incorrer, ele próprio, em cominação pecuniária, sem maiores considerações acerca das providências que estão ao alcance do agente estatal, dentro da sua esfera de atribuições, para conferir cumprimento à decisão judicial, parece implicar em uma indevida transferência para terceiro dos ônus atinente à satisfação do interesse tutelado na demanda, que deve caber ao Estado.

Entendemos que assiste inteira razão, desse modo, a Eduardo Talamini e a Desirê Bauermann, ao defenderem que a multa coercitiva somente seja imposta ao administrador público quando este demonstre resistência injustificada à efetivação do provimento jurisdicional,358 ou quando, em razão de conduta a ele imputável, venha a adotar

comportamento incompatível com o cumprimento da medida,359 de modo a constituir embaraço

à sua implementação.

Não se vislumbra, por outro lado, qualquer excesso ou censurabilidade na decisão judicial que, diante da existência de indícios suficientes de que tenha havido descumprimento desmotivado, pelo servidor, da determinação que lhe foi expressamente dirigida, relacionada ao plexo de atribuições funcionais inerentes ao cargo que ocupa, fixa prazo razoável para a efetivação da ordem, sob pena de incorrer pessoalmente na multa arbitrada em seu desfavor.

Tal providência, contudo, para que possa ser legitimamente adotada, deve resultar de um procedimento adequado, conduzido sob os ditames do contraditório, visando assegurar ao agente público interessado, enquanto terceiro alheio à relação processual, exercer as faculdades

356 DINAMARCO, Cândido Rangel. Efetividade do processo e os poderes do juiz: fundamentos do processo

civil moderno. 3. ed. São Paulo: Malheiros, t. 1, 2000, p. 606.

357 “Art. 77. [...]. § 8º. O representante judicial da parte não pode ser compelido a cumprir decisão em seu lugar.” 358 TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de

entrega de coisa. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 247 e 450.

359 BAUERMANN, Desirê. Cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer: estudo comparado Brasil e

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processuais bastantes à defesa da situação jurídica que lhe é própria, especialmente diante da ausência de disposição legal expressa autorizando a aplicação do referido meio coercitivo. Somente assim será necessariamente prevenida a ocorrência de qualquer mácula na decisão, superando-se, com isso, os entraves levantados por alguns autores contra a admissibilidade da medida.360

Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, apesar de se registrar pelo menos um acórdão unânime da Segunda Turma, exarado em Recurso Especial oriundo do Estado do Rio Grande do Norte, admitindo a cominação das astreintes em ação civil pública “não apenas ao ente estatal, mas também pessoalmente às autoridades ou aos agentes responsáveis pelo cumprimento das determinações judiciais”,361 consoante o disposto no art. 11 da Lei n. 7.347/85, veio tal decisão a ser posteriormente modificada em sede de embargos declaratórios, afastando-se a aplicação da multa aos gestores por não lhes ter sido oportunizada prévia manifestação acerca do pedido, em violação ao contraditório e a ampla defesa.362

Decisões ulteriores do STJ reafirmaram tal orientação,363 vindo esse Tribunal Superior a admitir, contudo, a adoção do referido meio coercitivo diretamente contra servidor público, pelo descumprimento de decisões proferidas em mandado de segurança, quando figure como autoridade impetrada no processo, por ser considerado, nesse tipo específico de relação processual, como parte sui generis na demanda.364

Já no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (TJRN), percebe-se a ocorrência de fenômeno inverso quanto à modificação no entendimento acerca do assunto, tendo em vista que, conquanto a jurisprudência local viesse se mostrando amplamente favorável à admissibilidade da incidência do administrador público em multa cominatória nas ações de

360 AMARAL, Guilherme Rizzo. As astreintes e o processo civil brasileiro: multa do art. 461 do CPC e outras.

2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 129.

361 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). REsp 1111562/RN, Rel. Min. Castro Meira. Brasília, 25

ago. 2009, Dje de 18 set. 2009. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=200802788845&dt_publicacao=18/09/2009>. Acesso em: 12 abr. 2016. (Grifo nosso).

362 Id. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). EDcl no REsp 1111562/RN, Relator Min. Castro Meira. Brasília,

01 jun. 2010, Dje de 16 jun. 2010. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200802788845&dt_publicacao=16/06/201 0>. Acesso em: 12 abr. 2016. (Grifo nosso).

363 Id. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). AgRg no AREsp 196946/SE, Rel. Min. Humberto Martins.

Brasília, 02 maio 2013, DJe de 16 maio 2013. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/ita.asp?registro=201201352666&dt_publicacao=16/05/2013>. Acesso em: 12 abr. 2016.

364 Id. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). REsp 1399842/ES, Relator Min. Sérgio Kukina. Brasília, 25 nov.

2014, DJe de 03 fev. 2015. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201302794476&dt_publicacao=03/02/201 5>. Acesso em: 12 abr. 2016.

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obrigação de fazer,365 a Corte de Justiça potiguar tem se inclinado, em julgados posteriores,

compreensivelmente, para seguir a tendência atualmente verificada na jurisprudência do STJ, que admite “a imposição de multa pessoal ao gestor, nos casos de descumprimento de decisão judicial em ação contra o Ente Público, desde que este figure como parte no processo e seja previamente instado a se manifestar sobre a possibilidade de sua incidência”.366 (Grifo nosso).

Observa-se, portanto, que tais julgados partem da premissa equivocada de que, para que alguém possa exercer o direito ao contraditório e estar sujeito, consequentemente, à incidência de multas processuais ou de outras medidas de caráter indutivo, necessita integrar a relação processual como parte.

Ocorre, contudo, que não só por meio dos escólios doutrinários citados, mas mediante simples leitura dos arts. 77, inciso IV, § 2º, e 380, parágrafo único, do novo CPC, pode-se concluir que a lei processual autoriza textualmente a adoção de sanções e de providências coercitivas em face de terceiros e de pessoas que, de qualquer modo, participem do processo.

A necessidade de observância do contraditório e ampla defesa não exige que esses terceiros componham a relação processual na qualidade de parte, pois, se assim fosse, jamais seria possível punir um perito, assistente técnico ou depositário por ato atentatório à dignidade da justiça,367 nem seria admissível a aplicação de medidas coercitivas em desfavor de terceiros que estejam em poder da coisa ou documento cuja exibição tenha sido determinada pelo juízo,368 relativamente às quais não se dispensa a observância do devido processo legal.

Uma vez estabelecida a admissibilidade da imposição de multas coercitivas em face de terceiros, impende, para que tal providência se torne possível, em prol da efetividade processual, que se indague acerca da maneira de exercício do contraditório e da ampla defesa, pela pessoa em desfavor de quem venha a ser pleiteada a medida.

365 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (1ª Câmara Cível). Apelação Cível n°

2012.019634-6, Rel. Des. Expedito Ferreira. Natal, 06 fev. 2014. Disponível em: <http://esaj.tjrn.jus.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau.jsp?&CDP=0100066BP0000&nuProcesso=2 012.019634-6>. Acesso em: 12 abr. 2016.

366 Id. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (1ª Câmara Cível). Agravo de Instrumento n°

2015.006782-4, Relator Des. Cornélio Alves. Natal, 26 nov. 2015. Disponível em: <http://esaj.tjrn.jus.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau.jsp?&CDP=010009VUH0000&nuProcesso= 2015.006782-4>. Acesso em: 12 abr. 2016.

367 WAMBIER, Luiz Rodrigues. O contempt of court na recente experiência brasileira: anotações a respeito da

necessidade premente de se garantir efetividade às decisões judiciais. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 119, jan. 2005, p. 19.

368 FERREIRA, William Santos. Comentários ao art. 380 do CPC. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER

JR., Fredie. TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (Coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. E-book. Disponível em: <https://proview.thomsonreuters.com/library.html>. Acesso em: 04 abr. 2016.

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