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MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

2.4 LIMITES E POSSIBILIDADES DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

2.4.2 A reserva do possível como limite fático aos direitos prestacionais

É inegável que todos os direitos fundamentais, possuem, em maior ou menor medida, um custo para sua efetivação, mormente os de caráter prestacional, por exigirem, para tanto, o desenvolvimento de políticas públicas e ações estatais positivas, como já tivemos a oportunidade de expor no item 2.3.2 retro. Erige-se como um aspecto de grande importância, consequentemente, para a análise do assunto inerente à concretização de direitos fundamentais sociais, o tema das limitações de recursos realmente existentes para tal fim.

Cumpre destacar, inicialmente, a advertência de Andreas J. Krell, no sentido de que a adaptação ao direito brasileiro da teoria da reserva do possível, criada pela Corte Constitucional alemã, não pode se dar sem a devida consideração às peculiaridades do precedente que a originou, nem à realidade sócio-econômica vigente em cada país.81

Lembra o autor que o Tribunal Constitucional Federal (TCF) da Alemanha, ao decidir o caso, definiu que o direito a prestações positivas “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade”, para proclamar, ao final, a ausência de obrigatoriedade da ampliação, pelo Estado, da quantidade de vagas ofertadas no ensino superior, a fim de atender a todos os candidatos existentes.82

Observe-se, outrossim, que o cerne principal da questão decidida pelo TCF alemão cingia-se à discussão acerca do direito que assiste aos cidadãos de escolher livremente os locais de ensino para a sua formação, como pressuposto ao exercício do direito de liberdade profissional, o que, por sua vez, estaria sendo obstaculizado pela restrição de acesso dos

79 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2006, p. 318-319.

80 Ibid., p. 313-314.

81 KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos

de um direito constitucional 'comparado'. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 51-57.

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candidatos excedentes às vagas ofertadas para o curso de medicina em universidade pública, sem que houvesse lei dispondo acerca do assunto. A questão da existência, ou não, da obrigação estatal de ampliar tais vagas, constituía, portanto, matéria prévia ao exame da constitucionalidade da forma de admissão dos candidatos, então praticada pela instituição.83

Não se pronunciou aquela Corte Constitucional, no referido caso, sobre aspectos inerentes ao mínimo existencial, mesmo porque a possibilidade de acesso ao ensino superior não integra tal conceito, nem mesmo na desenvolvida Alemanha, restringindo-se a abranger, no dizer de Alexy, direitos fundamentais sociais básicos, a exemplo dos direitos “a uma moradia simples, à educação fundamental e média, à educação profissionalizante e a um patamar mínimo de assistência médica”.84

Daí porque não se pode concordar com a importação indiscriminada, para o nosso direito, da cláusula da reserva do possível, especialmente para os fins da sua já banalizada invocação pelos entes estatais, como forma de buscarem se eximir do cumprimento de direitos prestacionais dos mais elementares, inclusive os compreendidos pelo conceito de mínimo existencial.

Assim é que, conforme entendimento amplamente dominante, a objeção da reserva do possível não pode atingir o conteúdo dos direitos abarcados pelo mínimo existencial, mas, quando muito, acarretar a revisão de prioridades orçamentárias.85 Em idêntico sentido, assinala

Ingo Sarlet a existência de um elemento nuclear intangível da dignidade, que deve valer mesmo contra a reserva do possível.86

Outra não é, aliás, a orientação adotada de modo assente pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao afastar a aplicação de tal alegação defensiva “sempre que a invocação dessa cláusula puder comprometer o núcleo básico que qualifica o mínimo existencial”, afirmando a inadmissibilidade de sua invocação como forma de conferir legitimidade ao inadimplemento estatal de deveres prestacionais constitucionalmente exigíveis,

83 Cf. íntegra da decisão BVERFGE 33, 303 (numerus clausus). Apud MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta

anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Berlin: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005, p. 656-667.

84 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo:

Malheiros, 2014, p. 512.

85 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da

pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 287-288.

86 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição de 1988.

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diante do caráter vinculante das normas que estabelecem diretrizes de políticas públicas, especialmente as relacionadas à saúde.87

Em decisão paradigmática a respeito do assunto, entendeu o STF que a alegada incidência da reserva do possível não tem o condão de obstar a imposição, ao ente federativo responsável, do mandamento constitucional de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso e atendimento, em favor das crianças de zero a seis anos de idade (CF, art. 208, IV), em creches e unidades de pré-escola, sobretudo diante da falta de comprovação objetiva de que todas as iniciativas possíveis a esse fim foram adotadas, com a aplicação máxima dos recursos disponíveis.88

Não se pode deixar de reconhecer, destarte, a existência de limitações materiais à concretização dos direitos fundamentais sociais, com a devida ressalva, porém, de que a alegação da ausência de recursos financeiros pelo Estado não tem como se erigir em pretexto para o descumprimento de deveres constitucionalmente impostos, em especial no que concerne às prestações inerentes ao mínimo existencial.

A constatação da efetiva carência de meios materiais para a implementação de determinada política pública, em todas as suas potencialidades e níveis de alcance social, deve ser sopesada em face das demais prioridades constitucionalmente estabelecidas, não se admitindo, porém, a abertura de espaço para uma omissão absoluta do poder público em qualquer das áreas essenciais em que deva atuar.

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