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MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

4 O CONTEMPT OF COURT COMO ÓBICE À CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM FACE DO ESTADO

4.2 O CONTEMPT OF COURT NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO

4.2.1 A sanção por descumprimento a ordem judicial no novo Código de Processo Civil

Mencionamos em linhas anteriores que o novo Código de Processo Civil não trouxe alterações substanciais em relação às disposições contidas no art. 14, inciso V, parágrafo único, do CPC revogado – que já previa, na redação dada pela Lei nº 10.358/2001, a tímida sanção por contempt of court civil do nosso direito processual –, mas contemplou algumas modificações dignas de nota, na regulação do instituto, que passaremos a abordar.

A verdadeira mudança que o novo CPC tendia a acarretar no tratamento legal dado ao ato atentatório ao exercício da jurisdição, que se encontrava prevista no anteprojeto elaborado pela comissão de juristas designada pelo Senado Federal, foi lamentavelmente suprimida no curso do processo legislativo, minando as perspectivas de uma maior efetividade na repressão de condutas do tipo.

Tratava-se do § 2º do art. 66, do Anteprojeto do novo Código, que possuía a seguinte dicção:

Art. 66. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:

[…];

217 TALAMINI, Eduardo. Concretização jurisdicional de direitos fundamentais a prestações positivas do Estado.

In: TESHEINER, José Maria Rosa; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sergio Gilberto (Coord.). Instrumentos de coerção e outros temas de direito processual civil: estudos em homenagem aos 25 anos de docência do Professor Dr. Araken de Assis. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 171.

218 DIDIER JUNIOR, Fredie; JORGE, Flavio Cheim; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A nova reforma

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V – cumprir com exatidão as decisões de caráter executivo ou mandamental e não criar embaraços à efetivação de pronunciamentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

§ 1º Ressalvados os advogados, que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da Ordem dos Advogados do Brasil, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa.

§ 2º O valor da multa prevista no § 1º deverá ser imediatamente depositado em juízo, e seu levantamento se dará apenas depois do trânsito em julgado da decisão final da causa. […].219 (Grifo nosso).

Possibilitaria tal dispositivo, caso houvesse sido convertido em lei, a exigibilidade imediata da multa aplicável em razão de conduta desrespeitosa a provimentos judiciais, inclusive mediante execução provisória, ao impor desde logo o recolhimento do valor em depósito judicial, condicionando somente o seu levantamento ulterior ao trânsito em julgado da decisão final do processo.

Essa não foi, contudo, a decisão de nosso legislador, que entendeu por bem estatuir, em seu lugar, que não sendo paga no prazo a ser fixado pelo juiz, tal multa deve ser inscrita como dívida ativa da União ou do Estado, “após o trânsito em julgado da decisão que a fixou”, observando-se na sua execução o rito destinado aos créditos fiscais.

É inegável o maior efeito pedagógico que assumiria, na hipótese, uma punição de incidência imediata, tal como se apresentava a proposta abraçada pelos autores do anteprojeto, comparada a uma quase sempre longínqua, imprevisível e incerta cobrança mediante processo de execução fiscal, sujeita às vicissitudes do funcionamento da pesada máquina burocrática estatal.

Perde o Processo Civil brasileiro, assim, uma grande oportunidade de tentar tornar mais efetivas as decisões judiciais, ao rejeitar o legislador a ideia de atribuir exigibilidade imediata à multa por ato de contempt of court. Manteve-se quase que inalterado, nesse aspecto em particular, o disposto no CPC revogado, preservando-se a larga distância existente, a respeito do assunto, entre o nosso direito e a autoridade ostentada pelas decisões judiciais no sistema do common law.220

219 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas. Anteprojeto do novo Código de

Processo Civil. Brasília: Senado Federal, 2010. Disponível em:

<http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=79547&tp=1>. Acesso em: 19 nov. 2015.

220 CARPENA, Márcio Louzada. Os poderes do juiz no common law. Revista da ABDPC. Porto Alegre:

Academia Brasileira de Direito Processual Civil, passim. Disponível em:

<http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Os%20Poderes%20do%20juiz%20na%20Common%20Law%20%2 0pronto.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2015.

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Permitimo-nos transcrever o texto do Código de Processo Civil de 2015, acerca do tema, para uma melhor confrontação com a legislação anterior:

Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: [...];

IV - cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação;

[...];

VI - não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso. § 1º. Nas hipóteses dos incisos IV e VI, o juiz advertirá qualquer das pessoas mencionadas no caput de que sua conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça.

§ 2º. A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta.

§ 3º. Não sendo paga no prazo a ser fixado pelo juiz, a multa prevista no § 2º será inscrita como dívida ativa da União ou do Estado após o trânsito em julgado da decisão que a fixou, e sua execução observará o procedimento da execução fiscal, revertendo-se aos fundos previstos no art. 97.

§ 4 º. A multa estabelecida no § 2º poderá ser fixada independentemente da incidência das previstas nos arts. 523, § 1º, e 536, § 1º.

§ 5º. Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa prevista no § 2º poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.

§ 6º. Aos advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público não se aplica o disposto nos §§ 2º a 5º, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará.

§ 7º. Reconhecida violação ao disposto no inciso VI, o juiz determinará o restabelecimento do estado anterior, podendo, ainda, proibir a parte de falar nos autos até a purgação do atentado, sem prejuízo da aplicação do § 2º.

§ 8º. O representante judicial da parte não pode ser compelido a cumprir decisão em seu lugar.

Trata-se da consagração do princípio da boa-fé objetiva no processo civil. Para atuar conforme reclama tal postulado, devem as partes e os demais sujeitos processuais abster-se de praticar condutas que frustrem a confiança do outro, ou de abusar das respectivas posições jurídicas.221

Tem afirmado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a propósito do tema, que o princípio do devido processo legal exige a observância da máxima do fair trial, como garantia de participação equânime, justa, leal e imbuída de ética e boa-fé, não só dos que fazem parte da relação processual, mas de todos os sujeitos, instituições e órgãos, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções no processo.222

221 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo CPC comentado. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 162.

222 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2ª Turma). RE 464963-2/GO, Relator Min. Gilmar Mendes. Brasília, 14

fev. 2006. DJ de 30 jun. 2006, p. 35. Disponível em:

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Nesse sentido, aliás, preceitua expressamente o art. 5º, do novo CPC, que “aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”. Dispõe o art. 6º do mesmo Código, ademais, ao instituir o princípio da cooperação como um dos grandes vetores que regem a novel legislação processual,223 que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. (Grifo nosso).

Ganha ainda mais importância, portanto, com o novo Código, a necessidade de preservação de um ambiente processual pautado pela boa-fé, motivo pelo qual deve o Poder Judiciário não apenas concitar os partícipes do processo a assim proceder, mas, principalmente, reprimir com vigor as condutas ímprobas, desleais ou anticooperativas para a adequada resolução do litígio, praticadas por qualquer deles.

Ampliou o novo CPC o rol de provimentos judiciais cujo descumprimento se mostra passível de acarretar a aplicação das sanções a título de contempt, ao enunciar como dever processual, a ser por todos observado, “cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação”. 224 Deixou-se, assim, de apenar o desatendimento unicamente a decisões mandamentais, como estatuía o art. 14, inciso V, do Código de 1973, muito embora esse deva continuar a ser, ressalte-se, o seu principal campo de incidência.

A consequência prática que daí decorre consiste na possibilidade de se passar a reprimir, doravante, também os atos que impliquem na criação de óbices a decisões de qualquer natureza, compreendendo especialmente, no caso, as de caráter executivo, nas quais prescinde o Estado-juiz da colaboração do réu para a efetivação do comando jurisdicional, comportando técnicas de cumprimento direto do provimento emitido. Pode-se sancionar, com isso, a conduta do executado que oculta bens para escapar à penhora, ou que impede a entrada do oficial de justiça no imóvel objeto de despejo ou de reintegração de posse.225

Uma outra alteração de relevo, no entanto, diz respeito ao valor da multa aplicável em razão da prática de atos da espécie, mantendo-se o mesmo limite de 20% (vinte por cento) do valor da causa, outrora contido no art. 14, parágrafo único, do CPC revogado, porém admitindo a sua fixação em até dez salários mínimos, nas hipóteses em que à causa seja atribuído valor

223 THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo CPC: fundamentos e sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro:

Forense, 2015, p. 72.

224 Art. 77, inciso IV, do CPC. Grifo nosso.

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irrisório ou inestimável, consoante a dicção do art. 77, §§ 2º e 5º, do Código de Processo Civil em vigor.

Enfatiza a doutrina, a propósito do tema, que o montante da pena pecuniária em questão deve ser dimensionado conforme a gravidade da conduta, sem indagar da capacidade financeira do infrator.226

Estabelece o art. 77, § 1º, do novo Código, ademais, que cabe ao juiz advertir as partes, seus procuradores e todos aqueles que de qualquer forma participem do processo, que sua conduta é passível de punição como ato atentatório à dignidade da justiça. Salienta Guilherme Rizzo Amaral, a esse respeito, que não constitui requisito fundamental para a imposição da referida pena de multa a prévia advertência do magistrado, somente se exigindo esta nos casos em que o juiz tenha tido ciência antecipada de que a conduta reprovável poderia vir a ser praticada pelo sujeito processual respectivo.227

De fato, se o magistrado emite uma ordem a ser cumprida de modo específico por qualquer dos sujeitos processuais, convém que o advirta previamente que o seu hipotético desatendimento implicará na incidência das mencionadas sanções processuais. Exemplo eloquente disso é a necessidade de comparecimento pessoal das partes à audiência de conciliação, devendo ser expressamente alertadas, no mandado ou carta de citação ou intimação, que a ausência injustificada irá configurar ato atentatório à dignidade da justiça.228

Situação bem diferente, contudo, consiste no comportamento inesperado daquele que, no curso do processo, pratica conduta tendente a embaraçar o cumprimento de decisão judicial, como, por exemplo, o ato de ocultar bens que devam ser entregues à parte contrária. Nesse caso, não há que se exigir do Juízo que proceda a uma prévia advertência ao agente, acerca das sanções aplicáveis à hipótese, diante da impossibilidade material de antevisão do fato, sob pena de total ineficácia do dispositivo.

Outra regra trazida pelo novo CPC, cuja menção se mostra necessária, veio inserida no § 8º do multicitado artigo, ao enunciar que “o representante judicial da parte não pode ser compelido a cumprir decisão em seu lugar”. Trata-se de texto normativo que merece uma análise mais detida, mediante contextualização adequada, o que será procedido no item 4.3.2

226 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo CPC comentado. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 165.

227 AMARAL, Guilherme Rizzo. Alterações do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 139. 228 DIDIER JR., Fredie; DOTTI, Rogéria; TALAMINI, Eduardo (Coord.). Enunciado n. 273. Enunciados do

fórum permanente de processualistas civis: carta de Curitiba. Curitiba, 23 a 25 out. 2015. Disponível em: <http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/12/Carta-de-Curitiba.pdf>. Acesso em: 14 dez. 2015.

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infra, por ocasião do exame da aplicabilidade, ou não, ao agente público, das sanções processuais resultantes de ato atentatório à dignidade da jurisdição, em processo no qual seja parte pessoa jurídica de direito público.

Tornando ainda mais explícita a disposição contida no art. 14, parágrafo único, do CPC de 1973, que estabelecia a independência entre a referida sanção processual e as astreintes,229

dispõe o § 4º do art. 77, do novo CPC, que a multa do § 2º pode ser fixada independentemente da incidência das previstas nos arts. 523, § 1º, e 536, § 1º.

Preserva-se, assim, a natureza essencialmente punitiva do instituto em comento, não se confundindo com o caráter coercitivo atribuído, no direito brasileiro, às astreintes.230

4.3 A CONFIGURAÇÃO DO CONTEMPT OF COURT NO ÂMBITO DO CONTROLE

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