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A eficácia dos direitos fundamentais sociais: evolução do entendimento doutrinário e jurisprudencial no Brasil

MEIO DO CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS

2.3 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENQUANTO PRESTAÇÕES ESTATAIS POSITIVAS

2.3.1 A eficácia dos direitos fundamentais sociais: evolução do entendimento doutrinário e jurisprudencial no Brasil

No tema da eficácia das normas constitucionais, prevaleceu entre nós, durante décadas, a doutrina de Rui Barbosa, inspirada no direito norte-americano e idealizada sob a égide da primeira Constituição Republicana, de 1891, classificando as normas constitucionais em autoaplicáveis e não-autoaplicáveis, conforme fossem, ou não, aptas a produzir efeitos

40 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 128-132. 41 Id. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 101.

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independentemente de interposição legislativa, a depender de se encontrar devidamente determinado o conteúdo respectivo.42

Citando a lenta evolução dessa orientação teórica, a partir da contribuição inicial de Pontes de Miranda, até chegar à crítica mais veemente de autores como José Afonso da Silva, José Horácio Meirelles Teixeira, Maria Helena Diniz, dentre outros, registra Ingo Wolfgang Sarlet que tal lição doutrinária passou a tornar-se incompatível com o direito constitucional positivo advindo a partir da Constituição de 1934, de caráter social e programático. Isso porque, ao passo que partia a teoria clássica da premissa de que a maior parcela das normas constitucionais não era aplicável sem a intervenção do legislador, sustenta a doutrina contemporânea que a maioria das disposições constitucionais é plena e diretamente aplicável.43

A maior parte das classificações doutrinárias propostas na atualidade, ainda que adotando diferentes nomenclaturas, adotam como ideia básica que, em relação à sua eficácia jurídica, dividem-se as normas jurídicas em dois grupos, quanto à necessidade, ou não, de interposição legislativa para possibilitar a produção da plenitude dos efeitos almejados pela norma, sendo unanimemente proclamado, porém, que não há norma constitucional completamente destituída de eficácia, em uma ruptura definitiva com o citado entendimento clássico.44

Desenvolveu Luís Virgílio Afonso da Silva uma das mais contundentes críticas a essa visão dicotômica das normas constitucionais, ao refutar a classificação destas em normas de eficácia plena ou limitada, já que, em relação às primeiras, verifica-se impropriedade ontológica, pois não há direitos fundamentais absolutos, sendo todos passíveis de restrição, seja pelo intérprete, seja pelo legislador, a fim de harmonizá-los diante de situações concretas. Por outro lado, defende o autor que todos os direitos fundamentais dependem de atuações estatais, meios institucionais e condições fáticas e jurídicas para se realizarem, motivo pelo qual, igualmente, não se justifica categorizar normas constitucionais como de eficácia limitada, pois todas as normas jurídicas, para que possuam eficácia, estão sujeitas a tais fatores condicionantes.45

42 BARBOSA, Rui. Commentários à Constituição Federal brasileira: coligidos e ordenados por Homero

Pires. São Paulo: Saraiva & Cia, v. II, 1933, p. 488-489.

43 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2006, p. 253.

44 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 104.

45 SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas

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Daí se dizer em doutrina, acertadamente, que todas as normas constitucionais são detentoras de algum grau de eficácia, sendo aplicáveis na medida de seu próprio conteúdo objetivo.46

Não mais se admite, por conseguinte, que se negue eficácia a normas constitucionais, especialmente as definidoras de direitos fundamentais, mediante a invocação de óbices puramente dogmáticos, em uma atitude autoritária de anulação do direito, relegando a concretização de tais interesses ao livre talante das forças políticas, econômicas ou sociais prevalecentes em uma dada conjuntura.

Mesmo as normas ditas programáticas, aliás, consoante o escólio de J. J. Gomes Canotilho, citando Crisafulli, contam hoje com o reconhecimento de um valor jurídico idêntico aos demais preceitos constitucionais, devendo ser consideradas de observância obrigatória pelos poderes constituídos. Vinculam o legislador de forma permanente, portanto, à sua realização, bem como, todos os órgãos concretizadores, como diretivas materiais ao exercício das atividades legislativa, executiva ou jurisdicional, além de vincularem os poderes públicos na qualidade de limite material negativo, sob pena de se dar ensejo à declaração da inconstitucionalidade dos atos de qualquer destes.47

No que diz respeito, mais propriamente, à eficácia dos direitos fundamentais sociais, há que se considerar que, de fato, na condição de direitos concretizáveis mediante a entrega de prestações estatais positivas, aqueles não raro são positivados na Constituição de modo a exigir, em princípio, a atuação mediadora do legislador para que produzam todos os efeitos a que se destinam. Por força do disposto no art. 5º, § 1º, da Constituição brasileira, contudo, também os direitos prestacionais consistem, como todo direito fundamental, em normas diretamente aplicáveis já ao nível da Constituição.48

A ausência de atuação do legislador, com vistas à efetivação do comando normativo contido no direito fundamental, não pode, assim, vir a erigir-se em obstáculo intransponível à concretização de direitos subjetivos diretamente fundados na norma constitucional, pois, como já afirmado, nenhum direito fundamental é totalmente destituído de eficácia.

Nesse sentido, leciona Clèmerson Clève que os direitos prestacionais possuem eficácia progressiva, vinculando os poderes públicos no sentido de que sejam desenvolvidas políticas

46 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a

construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 216.

47 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 184. 48 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

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voltadas para o gradativo cumprimento daqueles. Referidos direitos teriam ainda o condão, no dizer do autor, de criar posições jurídico-subjetivas de vantagem que, embora limitadas, decorrem da conjugação da respectiva norma constitucional com o princípio da dignidade da pessoa humana, obrigando o Estado a respeitar o mínimo existencial.49 Desenvolveremos

melhor o tema, a propósito, nos tópicos seguintes.

Semelhante evolução pode ser percebida na jurisprudência de nossos Tribunais Superiores, que anteriormente possuíam orientação no sentido de que as normas constitucionais programáticas possuiriam eficácia meramente limitada, consistindo em “uma estrutura jurídica sem suficiente densidade normativa”.50 Tais normas, portanto, não confeririam aos titulares do interesse o poder de exigir a sua satisfação em juízo, sem que o legislador delimite o seu objeto e a sua extensão, não possuindo, antes disso, “força suficiente para desenvolver-se integralmente”.51

Outro passou a ser, todavia, alguns anos após, o entendimento dominante no Superior Tribunal de Justiça, ao afirmar ser de menor importância a discussão atinente ao caráter programático da norma alusiva ao direito à saúde, para proclamar a eficácia deste, determinando o fornecimento gratuito, pelo Estado, de medicamento a usuário do Sistema Único de Saúde (SUS).52 Na mesma esteira, decidiu o Supremo Tribunal Federal que o caráter programático da regra contida no art. 196 da Constituição Federal não pode transformá-la em uma promessa constitucional inconsequente, pois, se assim fosse, estaria o poder público fraudando as expectativas nele depositadas pela coletividade, para substituir, de modo ilegítimo, “o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto de infidelidade governamental ao que determina a Lei Fundamental do Estado”.53

49 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Revista de direito constitucional e

internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 54, jan. 2006, p. 37.

50 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIN 4/DF, Relator Min. Sidney Sanches. Brasília, 07 mar. 1991. DJ

de 25 jun. 1993, p. 12.137. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=266153>. Acesso em: 02 mar. 2016.

51 Id. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). RMS 6564/RS, Relator Min. Demócrito Reinaldo. Brasília, 23

maio 1996. DJ de 17 jun. 1996, p. 21448. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&num_registro=199500687828 &dt_publicacao=17/06/1996>. Acesso em: 24 fev. 2016.

52 Id. Superior Tribunal de Justiça (1ª Turma). RMS 11183/PR, Relator Min. José Delgado. Brasília, 22 ago.

2000. DJ de 04 set. 2000, p. 121. Disponível em:

<https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/listarAcordaos?classe=&num_processo=&num_registro=199900838840 &dt_publicacao=04/09/2000>. Acesso em: 24 fev. 2016.

53 Id. Supremo Tribunal Federal (2ª Turma). RE 271286 AgR/RS, Relator Min. Celso de Mello. Brasília, 12 set.

2000. DJ de 24 nov. 2000, p. 101. Disponível em:

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Tem perdido cada vez mais importância, entrementes, a discussão inerente à eficácia dos direitos fundamentais sociais previstos na Constituição, diante do disciplinamento legal da maior parte das políticas públicas constitucionalmente enunciadas, com a edição, ainda na primeira década seguinte à promulgação da Carta Republicana de 1988, de leis instituidoras, por exemplo, do Sistema Único de Saúde (Leis nºs. 8.080/90 e 8.142/90), das Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96), do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), da Política Nacional do Idoso (Leis nºs. 8.842/94 e 10.741/03), dentre várias outras.54

Muito mais rara, destarte, tem se tornado a necessidade de invocação direta de preceitos constitucionais para fazer valer direitos prestacionais em face do Estado, diante da farta produção legislativa já existente acerca do assunto, o que não chega a suprimir, contudo, a relevância do debate de vários outros aspectos atinentes ao tema, conforme teremos a oportunidade de expor a seguir, ainda que sinteticamente.

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