• Nenhum resultado encontrado

A escrita de si em Marco Aurélio

No documento Culturas do Eu (páginas 65-70)

Cuidar de si, curar-se, ser o seu próprio servidor e cultivar-se, eleger-se em culto são prerrogativas de Marco Aurélio (121 – 180), expoente do estoicismo romano, que adopta a leitura como a actividade, por excelência, da sua construção inte- rior. O caso deste imperador romano da chamada Roma imperial, é de destacar, dado o uso que faz da escrita como dispositivo de meditação e de constituição do si mesmo. Para o autor, ser estóico é, para além de uma atitude filosófica, uma característica própria, uma configuração de carácter que releva justamente desta filosofia com incidências tão pregnantes na atitude de cada um perante a vida. O estoicismo imperial marcou, com os seus escritos, a própria doutrina cristã. E Marco Aurélio é o seu expoente incontornável.

O imperador mantém um diário pessoal, em grego, conhecido pelo título: Coisas para mim mesmo –Ta eis eαυτόν – título despretensioso, para uso próprio, de que caíu a última parte e que se substantivou em Meditações. Curiosa intitu- lação que nos dá já a dimensão prática do texto e de como a escrita se torna o dispositivo indispensável a esta construção do si mesmo. No seguimento dos textos gregos de que falámos anteriormente, também estes pensamentos eram destinados a um uso próprio e não tinham, à partida, vocação a serem public(it) ados. Não se encontra, tão pouco, nesta escrita, o estilo diarístico que tomou lugar na Modernidade. Trata-se, antes, de exercícios de meditação através da

escrita, uma forma objectivada de constituição do próprio. Meditações (Pensées, na edição francesa, 1962) reúne, pois, o pensamento filosófico de Marco Aurélio sob a forma de epigramas, inscrições fragmentárias com reflexões sobre varia- dos temas de natureza moral, segundo os preceitos estóicos e, nomeadamente, de Epicteto. A textualização do fluxo de pensamento faz-se sob a forma de con- selhos. Daí o uso da 2ª pessoa do singular ser recorrente e impor-se como posi- ção geral na obra, dado que esta se escreve com vista à destinação própria, já que o destinatário visado é o próprio sujeito de escrita. O uso do tu permite-nos entender o regime enunciativo das Meditações. Um diálogo, de si para consigo, que tem na escrita a mediação e o garante da dimensão exterior e exteriorizada do sujeito. Trata-se de um processo formador de subjectivação. Aliás, a escrita das meditações é ela mesma um exercício meditativo. Uma meditação em pro- cesso. Mas o tu é, também, esse outro, pessoa objectiva, como lhe chama Benve- niste, garante do eu que, no caso da escrita epistolar, é singular e identificável, estabelecendo um diálogo privado até, e que, neste texto, opera um retorno ao si – ao si mesmo como um outro – concedendo à escrita o seu valor forte de inscrição autónoma; de gramatização, diríamos, de si mesmo e do vivido. Daí que esta mesma escrita íntima e privada tenha já os ingredientes daquela outra, pública e publicável, dirigindo-se a um colectivo anónimo. E, nessa medida, o tu advém como destinatário último do texto. Destinatário que é o próprio sujeito de escrita mas em construção, uma vez que a força elocutória dos enunciados recai justamente sobre este tu que se descentra o eu da enunciação. É de referir o facto de este tu inaugurar um regime discursivo assente no imperativo, um imperativo de ordem moral, que configura o alcance destes escritos e que cons- titui uma determinação da acção do sujeito a que se dirige. O tu dá-nos a ver a própria elaboração do ethos do sujeito.

Ora, essa fórmula dialógica que invade a totalidade da escrita de Marco Auré- lio instaura-se a partir da figura do auto-retrato que o autor propõe de si próprio. Sendo este auto-retrato, desde logo, um recurso discursivo de auto-apresentação e, por conseguinte, de auto-representação, evidencia uma curiosa perspectiva de si, através do Outro. O Livro I constitui, pois, aquilo a que poderíamos chamar um auto-retrato por herança ou delegação. Nele está patente uma configuração por empréstimo que é particularmente intersubjectiva, na medida em que é transver- sal a outros sujeitos, familiares, mas, também, personalidades de referência, que perpassaram ao longo da vida e marcaram o carácter do seu autor, como superfí- cie de inscrição e de alterização. Tal auto-retrato toma uma forma assaz hetero- doxa, já que cada traço de carácter lhe advém, segundo o próprio, de um familiar, por consanguinidade, ou do alheio, pela força da palavra, como é o caso daqueles

que foram seus mestres. O carácter é assim composto e organizado por um con- junto de traços alógenos, marcas que outros inscreveram no próprio, mostrando bem a componente de exterioridade que o seu interior engloba. Assim se inicia o texto:

“Do meu avô Verus. O carácter honesto e a igualdade da alma.

Da reputação e da lembrança deixadas pelo meu pai: a consciência e a virilidade.

Da minha mãe, a piedade, a generosidade, a faculdade de se abster não só de fazer mal mas mesmo de o pensar; …” (1962: 1139)

No Livro II, desenvolve-se uma perspectiva analítica do ser: “Aquilo que sou: carne, sopro vital e razão.” (1962: 1146) Assinale-se a originalidade desta triparti- ção que associa à carne a alma, como o sopro vital – logos pneumático – e a razão, que é a faculdade directora ou “faculdade hegemónica” (cf. nota 1 ao Livro II, 1962: 1372). No entanto, esta analítica do ser permite a redução de cada elemento à sua insignificância:

“…mas despreza a carne como se já fosses morrer: é sangue impuro, ossos, um ligeiro véu, tecido de músculos, de veias e de artérias. E o sopro, vê bem em que consiste: vento, e nem sempre o mesmo, ora relançado, ora rebaixado segundo os momentos. Terceiro, a razão; reflecte então: és velho; não a dei- xes mais subjugar-se nem ser assolada por desejos contrários ao bem social, nem irritar-se contra o destino presente ou futuro.” (1962: 1146)

Assinale-se, aliás, nas Meditações, a adopção de uma metodologia que tem por dispositivo a visão. Trata-se da dimensão óptica da escrita mas a partir de uma visão microscópica do mundo, que chega a ser mesmo míope, como lhe chama Foucault (1989: 278). O exercício consiste na desmontagem constante, no chegar a uma definição analítica das coisas; em suspender o fluxo da repre- sentação e definir essas representações espontâneas; no dar atenção àquilo que é natural para o analisar nas suas componentes. Saber como adquirir as coisas, defini-las. As coisas não se dão por si mesmas. São matéria de exercício espiri- tual. Portanto, estar atento ao mundo é um exercício quotidiano. Mas não se dá de uma forma sistemática, não por um método intelectual, este exercício exige: 1º a contemplação do objecto na sua essência e em todas as suas partes – é da ordem do olhar e, voltado para si mesmo, auto-escópico; 2º dizer o nome da coisa e das partes, para si, falar a si mesmo; nomear, nomear para si através

da enunciação e da memorização (Foucault, 2001: 24 – 2 – 1982): “Olha o interior das coisas: que não haja nenhuma cuja qualidade própria ou o valor te esca- pem”. (1962, Livro VI: 1179)

O método analítico traz à alma uma grandeza que se traduz, por seu lado, na indiferença em relação às coisas e na tranquilidade em relação aos aconteci- mentos; num apaziguamento. Esta análise minuciosa não demonstra um qual- quer apego às coisas, mas antes, o seu desprendimento. Por outro lado, permite mostrar a utilidade de um objecto, o seu valor, qual o seu lugar no universo. Há como que uma desvalorização dos objectos que advém da sua abordagem analí- tica. Como se os objectos não fossem senão imagens, miragens na sua totalidade, imagens do desejo, e essa paisagem totalizante que é dado contemplar não fosse senão da ordem do imaginário. A decomposição é um exercício de desmontagem da imago e, com ela, do imaginário. Em Marco Aurélio, a determinação da decom- posição leva a uma indiferença sobre as coisas: olhá-las descontinuamente é ser superior a elas. Aplicar isso à vida é entendê-la como descontinuidade (Foucault, 1989: 291).

“A duração de vida humana? Um ponto. A sua substância? Fugidia. A sensa- ção? Obscura. O composto corpóreo no seu conjunto? Pronto a apodrecer. A alma? Um turbilhão. A sorte? Difícil de adivinhar. A reputação? Incerta. Resumindo, ao todo, as coisas do corpo fluem como um rio; as coisas da alma não são outra coisa senão sonho e fumaça, a vida, uma guerra e uma estada estranha; a fama que fica, um esquecimento. O que pode fazê-la suportar? A filosofia.” (1962, Livro II: 1150)

Só há um elemento não desdobrável, não analisável, é a virtude. Tudo o resto pode analisar-se nas suas partes: a comida como partes de cadáveres, a toga como lã e esta como pêlos, a música e a dança, através dos elementos desligados que as compõem, etc. Trata-se, assim, de atingir a liberdade do sujeito, pela sua visão analítica, pela decomposição, no duplo sentido desta palavra, divisão em elemen- tos e deterioração:

“Sim, representa-o bem na tua imaginação, a propósito das iguarias e de tudo o que se come, que aqui trata-se de um cadáver de peixe, ali de um cadáver de pássaro ou de porco e, por outro lado, que o Falerno é sumo de uva, o vestido púrpura, pêlos de carneiro embebidos em sangue de uma concha; a propósito da cópula, uma fricção de ventre com ejaculação de um líquido viscoso acompanhado de um espasmo. Tais são as imagens que vão

até às próprias coisas e as penetram para fazer ver o que elas são…” (1962, Livro VI: 1180)

O mesmo método de decomposição deve ser aplicado à vida. No Livro XI pode ler-se: “Propriedades da alma racional: ela vê-se, analisa-se, faz dela própria o que quer, colhe ela própria o fruto que transporta…” (1962: 1232), mostrando que a identidade, que é continuidade no tempo e no espaço, é feita de descontinuida- des. De igual modo, a concepção da temporalidade no texto de Marco Aurélio é problemática, dado que o tempo que aí emerge é um tempo evanescente, conce- bido como um incorporal, de que o presente é a figura epifânica: “o presente é, com efeito, a única coisa de que se pode sofrer a privação, já que é a única que se possui, e não se perde aquilo que se não tem.” (1962, Livro II: 1150) Reflexão que revém, logo no Livro III: “Não se deve pensar somente que a vida se esgota a cada dia e que incessantemente diminui;” (ibid: 1152). Daí resultando uma preparação aturada para uma suspensão repentina do fluxo de vida. A razão é um indivisível e caracteriza-se pela sua falibilidade ou finitude iminente: “agir, falar e pensar como se, a partir de agora, tu pudesses cessar de viver. Deixar os homens, não é terrível, se os deuses existem;” (1962, Livro II: 1148). Há um outro indivisível que é a virtude, virtude para a qual remete toda a estética e ética de vida aureliana. Do singular ao universal. Há, na analítica aureliana, uma estratégia discursiva que Deleuze identifica num outro estóico, Diógenes de Laércio, a saber: “encontrar Aforismos vitais que sejam, a um tempo, episódios do pensamento” (1969: 153), quer isto dizer: conjugar numa mesma fórmula, o universal e o singular. A lei e o acontecimento do quotidiano. Talvez seja esse movimento justamente, o que permite ao sujeito tu ganhar um estatuto impessoal ao mesmo tempo que atinge a plenitude da sua existência na liberdade subjectal:

“/…/sê livre; olha para as coisas virilmente, enquanto homem, cidadão, ani- mal mortal. Tem sempre à tua disposição e debaixo dos olhos estes dois prin- cípios: primeiro, as coisas não tocam a alma, elas ficam de fora, imóveis e as perturbações não vêm senão do foro interior. Em seguida, todos os seres que vês, por pouco que mudem, deixarão de existir; /…./” (1962, Livro IV: 1160). A interioridade aureliana é complexa. Não só porque ela não se dá como essên- cia interior, estando em constante contacto com a visão exterior do sujeito, essa postura auto-escópica que a escrita constrói, mas, porque o exterior, o mundo, intervém na própria constituição do ethos do sujeito; da sua forma de estar e de se posicionar face ao vivido.

Para concluir:

“Propriedades da alma racional: ela vê-se, analisa-se, faz dela própria o que quer, colhe ela própria o fruto que transporta (…), atinge a sua própria finali- dade a qualquer momento em que sobrevenha o termo da vida.” (1962, Livro XI: 1232)

Poder-se-ia sublinhar que, em Marco Aurélio, a analítica do olhar, tanto o olhar sobre o mundo como o movimento de reflexão para dentro, leva a uma estética da indiferença. Olhar as coisas de fora, olhar-se de fora é ser-se superior ao mundo e a si enquanto parte desse mesmo mundo. Este exercício é libertador. E é pela escrita que ele liberta o sujeito. É pelo fora que o dentro se liberta. Nisto consiste a arte da existência, em Marco Aurélio. Daí que, em termos de escrita, não se possa de todo ver nela o germe da autobiografia mas antes, neste laboratório de escrita subjectal onde se experiencia o vivido no seu quotidiano e daí se retiram princípios gerais e impessoais, um início da experiência ensaística. As Medita- ções seriam, nesta perspectiva, um ensaio avant la lettre, ou o ensaio do ensaio que tomará, com Montaigne, a configuração de género.

No documento Culturas do Eu (páginas 65-70)