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Genealogia do bios

No documento Culturas do Eu (páginas 163-165)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.3 Genealogia do bios

Humano e animal são atravessados pela auto-afecção do vivo. Em Ética a Nicómaco, Aristóteles estabelece uma tipologia do bios. O corpo enquanto vida, enquanto prazer, corresponde ao bios apolaustikos, caracterizado por se esgotar numa existência animal. Derrida socorre-se dessa tipologia para formular o bios como sendo, antes de mais, a animalidade do vivo que é distinta do inorgânico ou cadáver; uma sensibilidade ínfima reconhecível a todo o ser vivo. Quer dizer que a ruptura a estabelecer não é pois a de humano/animal, mas antes a de vida/ morte. Aliás, na classificação grega, a zoografia era um conceito abrangente do vivo, um retrato do ser vivo em geral e não tanto especificamente da animalidade, “a animalidade, a vida do vivo, pelo menos quando se pretende poder discer- ni-la do inorgânico, do puramente psico-químico inerte ou cadavérico, defi- ne-se correntemente como sensibilidade, irritabilidade e auto-motricidade, espontaneidade apta a mover-se, a organizar-se e a afectar-se ela própria, a marcar-se ela mesma, a traçar-se e a afectar-se de traços de si” (Derrida, 1999: 300).

A acentuação da disponibilidade ou disposição à afecção como marca de todo o ser vivo indistingue, desde logo, o humano do animal. Afigura-se relevante a dimensão pática ou patémica, essa aptidão ao sofrimento referida por Bentham e retomada por Derrida (1999: 280), como marca de todo o ser vivo, do bios.

Descentrar a questão da oposição animal/humano para a ordem do vivo é, por- tanto, encetar uma nova perspectiva de entendimento da questão a partir de um termo que atravessa e destrói, ao mesmo tempo, a dicotomia cristalizada no pen- samento ocidental. É, para além do mais, remeter a questão para uma ordem mais englobante que é a nova ordem ecológica: uma nova ecologia do vivo. É este conceito de vivo, pois, que há que trabalhar, indo buscar a sua genealogia para nele deter- minar a sua força de ruptura com as dicotomias que formataram o pensamento ocidental. Justamente, a proposta de Giorgio Agamben vai no sentido inverso à do humanismo e, a esse propósito, ele próprio lembra o empenhamento de Foucault em demonstrar como o poder se foi apropriando dessa animalidade imersa na vida e como as sociedades modernas instauraram o bio-poder como sua regulação.

No quadro dessas dicotomias em que o corpo é um termo da oposição, a noção de bios surge como uma espécie de resto impensado do corpo. Agamben, ao ocu- par-se da genealogia desse conceito fugidio, uma das constatações que retira da sua análise é a de que o vivo é um indefinível na textualidade ocidental (2002: 26); indefinível que, no entanto, suporta e alimenta todos os termos que dele deri- vam. Assim, retira de Aristóteles o estado vegetativo – a faculdade nutritiva – e de Bichat a vida animal – definida pela relação ao mundo exterior (Agamben, 2002: 27-29). A linha de separação entre essa vida interna, ou vida nua, tal como a designa o autor, e a vida de relação é flutuante, não fixa. Assim também se poderá entender a eliminação da dicotomia animal /humano, dado que o animal – zoo – se encontra dentro e não oposto ao humano (2002: 30). Aliás, na classificação grega, a zoografia era um conceito abrangente do vivo, um retrato do ser vivo em geral e não tanto especificamente da animalidade.

Heidegger, também ele, havia mergulhado no pensamento dos gregos para formular a questão do vivo e de que forma ela se prende com o universo que a rodeia, por um lado, e como ela atravessa, desfazendo-a, essa dicotomia do corpo e do espírito. É que ele sente a necessidade de criar um modo próprio de aproxi- mação do humano que possibilite vislumbrá-lo na sua complexidade e não na sua esgotada dicotomia soma VS psique. Segundo ele, há no grego uma discriminação entre soma e forma. Homero usa soma referindo-se ao corpo material, físico, ao corpo morto ou mesmo à massa humana, e forma para se referir ao corpo vivo o que leva o filósofo a considerar que a nossa representação moderna vem do latim corpus, que a partir da escolástica e, posteriormente com Descartes, toma um sentido de corpo material animado. Baseando-se na etimologia grega, Heide- gger adopta então a diferença entre os vocábulos “corpo” (Leib) e “corpo material” (Körper). Nas notas registadas Na Interprétation de la deuxième intempestive…, resul- tantes do Seminário de Fribourg de 1938-1939, vai buscar a Nietzsche a funda- mentação do vivo que transcende o próprio sujeito, já que a vida é a experiência fundamental desse “animal-homem” a tal ponto que ela desloca o enunciado car- tesiano do cogito para o vivo: “(já não ego cogito – (ergo) sum, mas ego vivo – ergo cogito)” (2003: 237). Neste entendimento, é a própria biologia que encontra a sua fundamentação essencial no vivo, “intensificação da vida”, no sentido de uma potência de vida que encontra no jogo da predação a sua “nobreza e raridade” (ibid: 239). Neste quadro, será esta potência fundadora a verdade das ciências, nomeadamente da biologia; a sua potência metafísica.

É neste quadro do vivo, que agrega numa mesma instância o homem e o ani- mal, que se refere ainda à dispensabilidade da alma, dando ao corpo vivo um hori- zonte aberto – uma periferia espacial e introduzindo-lhe uma dimensão outra: o

corporar: “4. O corporar ‘in’-corpore não somente nutrindo-se mas, integrando-se no meio ambiente. Tomar a medida do espaço, e não unicamente ocupá-lo com o corpo material vivo.” (2009: 268). Para ele, portanto, corpo vivo é sempre já um corpo- rar (Leiben). O corporar é o modo-singular-de-ser-do-homem-no-mundo. O fenó- meno do corporar distingue-se da mensurabilidade matérica do corpo – Körper. Nunca o corpo é um mero objecto, o corporar é a relação directa com o mundo, é o horizonte existencial no qual o sujeito permanece. Tem um alcance fenome- nológico e não estritamente fisiológico. E, nessa medida, assinala ainda, “O corpo corpora – a vida corpora ao ser vivida; ela vive corporando.” (ibidem)

Vem a propósito lembrar o célebre exemplo heideggeriano, do ruborescer. Tal fenómeno, apesar de verificado no corpo, como manifestação de vergonha, por exemplo, oferecendo um afluxo de sangue às faces, não só não pode ser mensu- rável quantitativamente, como lança um indeterminável quanto à proveniência psíquica ou somática da reacção. Da ordem do corporar, o rubor nem é físico nem é psíquico ele resulta sobretudo da vivência relacional com o meio ambiente. Dir- -se-ia que nem sequer é um fenómeno que possa ocorrer na solidão do indivíduo mas unicamente em relação transubjectiva ou intersubjectiva. Dir-se-ia o mesmo do riso, da transpiração, de todo um conjunto de fenómenos cujo carácter é jus- tamente fenomenal, relacional, ambiental. Trata-se, em todos estes casos, como muitos outros, da forma singular do ser-no-mundo que implica esse corporar.

No documento Culturas do Eu (páginas 163-165)