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O mito de Narciso

No documento Culturas do Eu (páginas 119-123)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

1. DISPOSITIVOS DE REFLEXÃO

1.4 O mito de Narciso

É conhecido o desenlace do mito de Narciso – jovem que se apaixona pela sua própria imagem. Ovídeo, em As Metamorfoses, narra o episódio de Narciso abei- rando-se das águas. Nessa narrativa fundadora há, porém, alguns elementos a salientar. O primeiro diz respeito à própria superfície de reflexão – a água. Oví- deo descreve-a como uma nascente límpida, não conspurcada por nenhum ser vivo, nem mesmo iluminada pela luz solar. Narciso abeira-se para matar a sede. É essa função orgânica que o leva a deparar-se com a sua própria imagem. E apaixo- na-se por um rosto que, de início, ele não identifica como seu. A superfície reflec- tora aparece como enganadora, como ilusória. Não é senão, num segundo tempo, que Narciso constata a duplicidade da imagem: “iste ego sum: sensi, nec me mea fallit imago; uror amore mei: flammas moueoque feroque” (“então sou eu: compreendi, e a

minha imagem não me engana; consumo-me de amor por mim: provoco a chama que eu próprio acendo.” – 3,463/4), exclama ele, tomando a palavra. A revelação da identidade da imagem e a consequente identificação com ela acontecem, pre- cisamente, após o deslumbramento para com esse Outro por quem se apaixona: “Quisquis es, huc exi!” – “Quem quer que sejas, vem cá!” (3,454). A mesma imagem, ilusória, primeiro, devolve-lhe, num segundo tempo, a verdade de si, o si-mesmo como sua condição. Acaba por perder-se ao buscar a sua própria imagem, ao diluir-se no outro de si, numa impossibilidade de ser autónomo. A imagem-re- flexo ganha assim um estatuto duplo, nessa ambivalência entre uma imagem enganadora – simulacro – e uma imagem fiel – garante da sua condição. Por outro lado, registe-se ainda a surpresa de Narciso face ao reflexo, na emergência enunciativa do eu: – então sou eu! este sou eu! –, enfim, a diversidade de enun- ciados possíveis em que o sujeito da enunciação, ao enunciar-se, se coloca como sujeito do enunciado, mas encetando o acesso à linguagem.

A psicanálise convocou o mito de Narciso para explicar a complexidade dos processos de desdobramento e identificação e sua inscrição no devir da lingua- gem, pelos quais passa o sujeito na formação da identidade. A remissão para a ordem especular da teoria lacaniana do sujeito deve buscar-se em Freud que havia, em primeiro lugar, definido já as estratificações narcísicas do sujeito. Freud contrapõe à libido de objecto – investimento sobre o mundo exterior – a libido do eu – o narcisismo designa o conjunto de procedimentos que permi- tem a colocação da libido no eu. O eu, em Freud, é tanto o sujeito que se enuncia como o corpo próprio (como objecto de amor ou narcisismo primário). Existem assim, estados de desenvolvimento relacional distintos. Muito embora a teoria freudiana do narcisismo tenha ela própria sofrido alterações da primeira para a segunda tópica, poder-se-á dizer que a um narcisismo primário, como fase pre- coce do desenvolvimento do sujeito – em que há um investimento da libido no corpo próprio, sendo portanto anobjectal – corresponde um narcisismo secun- dário – em que o objecto já não é um órgão ou um conjunto de órgãos, mas o eu, enquanto sistema de ligação de representações entre elas. O ideal do ego é uma formação narcísica.

Lacan retém, do mito de Narciso, o dispositivo especular como formador da função do eu. O reconhecimento da própria imagem no espelho dá-se, no recém- -nascido, entre os 6 a 8 meses de idade. Diz Lacan, (1966: 90) o estádio do espelho é: “Uma identificação no sentido pleno que a análise dá a este termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem, cuja pre- destinação para este efeito de fase está suficientemente indicada pelo uso, na teo- ria, do termo antigo imago.” Acerca da imagem especular, Lacan fala da “assunção

jubilatória” para um ser que ainda nem sequer adquiriu a capacidade motora. Ora o papel que esta instância desempenha na formação do eu é assim descrito pelo analista: “esta forma situa a instância do eu, antes mesmo da sua determi- nação social, numa linha de ficção, jamais irredutível para o próprio indivíduo, ou antes, que só em assíndeto encontrará o devir do sujeito, quaisquer que sejam as sínteses dialécticas pelas quais ele terá de resolver, enquanto eu, a sua discor- dância para com a sua própria realidade” (1996: 91). A forma do corpo é devolvida ao sujeito como uma gestalt, uma totalidade exterior que, se por um lado, permite a fixação do eu, também, por outro, lhe fornece um destino alienante. Ela é for- madora na medida em que permite a passagem do corpo desmembrado – disjecta membra – a uma “forma ortopédica da sua totalidade” (1966: 93); mas no âmbito da imago, a imagem especular do corpo próprio, é ainda uma espécie de porta de acesso ao mundo visível, quer isto dizer, permite “estabelecer uma relação do organismo com a sua realidade – ou, como se diz, da Innenwelt (mundo interior) à Umwelt (mundo envolvente)” (1966: 93). O estádio do espelho está cumprido, então, aquando da viragem do eu especular em eu social, por identificação à ima- gem do próximo, do semelhante.

Desde logo, para Freud, a experiência da identificação especular era já entendida como “a forma mais primitiva de ligação afectiva a um objecto” (1984: 170). Mas, enquanto Freud reactivou o mito clássico de Narciso, Lacan despoja o mito para se centrar unicamente no dispositivo especular como dispositivo formador do eu. O espelho cumpre uma função determinante na filogénese de sujeito, em Lacan. O estádio do espelho lacaniano é um processo de identifica- ção e de transformação operado no sujeito quando ele se vê na imagem – outro. O ego, imagem reflectida, unificadora e identificadora mas alienante porque outra, cumpre uma função de organização e unificação do corpo. O sujeito ins- taura-se na representação e no agenciamento de representações. E é isso que Lacan afirma em “Le stade du miroir”: “esta forma [a imago] situa a instância do moi, mesmo antes da sua determinação social, numa linha de ficção, para sem- pre irredutível para o indivíduo”; e mais: “prefigurando-lhe um destino alie- nante” (1996: 91). Esta alienação, constitutiva do eu enquanto imagem e de todas as outras formas de representação, fantasmas, mas também determinações ideológicas, marcará o sujeito daí para a frente. No jogo de espelhos da refle- xividade, o outro instala-se no lugar do mesmo, o mesmo no lugar do outro. A mesmidade estará, desde então, sempre maculada de alteridade, assim como a alteridade, numa projecção fantasmática, tenderá a ser sempre confundida com a mesmidade – processos de identificação. O espelho, como dispositivo opera- dor dos processos de reflexividade e identificatórios, interpõe-se, senão mesmo

impõe-se, na própria constituição do sujeito, executando a mediação entre um je e um moi ou um id e um ego; e, para além disso, impõe-se como o próprio dispositivo de formação ou instauração desse mesmo ego. Seria, nesta óptica, o único acesso ao ego e ao real social. Assim, o sujeito estaria votado à incapa- cidade da leitura do mundo exterior através do dispositivo vítreo, para estar condenado, digamos assim, a uma visão sempre devolvida a partir da reflexão, a partir do seu próprio moi. O dito moi, termo que em português se confunde com o je, é resultado justamente da operação de reflexão e não uma instância ante- rior, como origem plena do sujeito. Tal condição determinará para sempre o sujeito nas várias imagens mais ou menos ilusórias, mais ou menos desviantes, que ele produzirá, quaisquer que sejam as suas relações com o mundo e com os outros. Daí poder falar-se em “destino alienante”. A perspectiva lacaniana parece ser determinada por esse ascendente que ganha a imagem especular face à imago, já que ele próprio a situa “na fronteira do mundo visível” (1996: 92), isto é: será condição do sujeito ver o mundo através desse inexorável reflexo de si, se, prossegue, “nos fiarmos na disposição em espelho que apresenta, na alu- cinação e no sonho, a imago do corpo próprio […]” (ibidem). O sujeito ficará, para Lacan, preso do seu imag(inári)o e é nessa condição que se integra na ordem simbólica – o grande Outro enquanto significante despótico.

Lendo Lacan, U. Eco considera o espelho como um “fenómeno-limiar, que marca os limites entre imaginário e simbólico. […] No assumir jubilatório da ima- gem especular, manifesta-se uma matriz simbólica em que o eu se precipita em forma primordial e é a linguagem que deverá restituir-lhe a sua própria função de sujeito no universal” (1989: 12/13). Quer dizer que, não só o momento espe- cular permite a emergência da percepção visual da imagem do corpo, unifican- do-a, como permite ainda, e esta é a novidade da tese lacaniana, a emergência dos processos semiósicos, como lhes chama Eco, uma outra forma de designar a ins- tância lacaniana do simbólico. Há como que um “nó inextricável” do imaginário especular ao simbólico como linguagem. Mas, para além disso, o que o regime do simbólico vem instaurar é a possibilidade, para o sujeito, de sair da condição das ocorrências, dos factos enquanto presença, para uma outra dimensão, universal, os tipos. Como explica Eco, “a imagem especular não estabelece nunca uma rela- ção entre tipos mas só entre ocorrências (o que é uma outra maneira de distinguir o imaginário do simbólico – implicando o simbólico uma mediação de carácter ‘universal’, que é precisamente uma relação entre tipos)” (1989: 30). Ora, é condi- ção do espelho a presença, não a lei. Assim, a imagem especular pode dizer-se que alia a sua natureza de signo icónico à de índice, dadas as características de simi- litude mas também de contiguidade física, já que ela está sempre dependente

da sua causa, o modelo. O mesmo não acontece com o regime sígnico em geral, nomeadamente com o símbolo, que, esse, funciona precisamente lá onde o real falha, dada a sua ausência.

Mas daqui não se pode concluir que o espelho cumpre uma simples função protésica de desvendamento da realidade como Eco advoga. O carácter protésico do espelho justificar-se-ia, a seu ver, dado que pode funcionar como extensão e amplificação do olho e que considera como uma prótese intrusiva (1999: 351-353). Sendo inegável este estatuto em algumas funções que este pode tomar, como o periscópio, o espelho retrovisor, etc, parece, porém, inaceitável na função refle- xiva que é, por excelência, da ordem da duplicação identitária. A questão que aqui se coloca tem, pois, uma fundamentação semiótica distinta.

No entanto, e para concluir, não é de realidade que se trata, mas do sujeito, da sua imagem, desse retorno sobre si que a reflexão permite e com o qual o sujeito deverá confrontar-se. Se a imagem especular exige, para a devolver, a presença do sujeito, ela não deixa de ser imago, isto é, uma exterioridade a si.

É que a explicação do processo de constituição do sujeito através do disposi- tivo especular advém das suas características catóptricas que passamos a descre- ver e que permitem alargar o entendimento sobre a natureza da imagem especu- lar face às outras imagens obtidas por transparência ou inscrição.

No documento Culturas do Eu (páginas 119-123)