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Da memória orgânica à memória inorgânica

No documento Culturas do Eu (páginas 190-194)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.12 Da memória orgânica à memória inorgânica

A ligação da memória à escrita e desta ao arquivo baseia-se numa perspectiva primeira, a da relação entre orgânico e inorgânico. Na verdade, a memória é da ordem do vivo, como salientava Platão, distinguindo, desde logo, entre memória viva e memória morta, enquanto a escrita, assim como o arquivo, estão do lado do inerte, do inorgânico. O arquivo, entendido aqui como conjunto ou depósito de escrita e dos escritos, é morto (curiosamente, não se falando de arquivo vivo, fala- -se correntemente de arquivo morto, aquele que deixa de estar actual, que é, por definição, inactual). Mas é também um legado, no sentido em que o arquivo tem nele compilado o que extravasa a memória singular, a memória do vivido indivi- dual. As sociedades de escrita fabricam, todas elas, um arquivo como herança, na medida em que passa de memória individual a património colectivo.

Por outro lado, a relação da memória à escrita pode ser tratada na dimensão de interioridade/exterioridade para que remetem os termos em análise. Vejamos em que consistem estas relações:

Podemos recuar a Platão para recuperar o entendimento que sobre a memória o texto do Teeteto nos lega. Em primeiro lugar, há que referir o facto de a memória vir inserida num diálogo onde se discute a dimensão epistémica do saber, face à doxa ou opinião corrente. Como é sabido, a doxa opõe-se em Platão à epistemé, ao saber certo ou saber verdadeiro. Sendo do domínio da opinião, a doxa situa-se em pleno no campo do discurso. Ela é justamente o discurso da opinião corrente, circulante, comum. É uma discursividade activa que se baseia na produção da opinião. É neste contexto da discussão que uma outra metáfora tão fundadora como a Alegoria da Caverna, mas porventura menos conhecida, se nos apresenta: a da placa de cera. Cada alma possui um bloco de cera, oferta de Mnemosina, mãe das musas e deusa da memória. Ora, este objecto serve para registar sensações, mas também diálogos, ou conceitos. Como funciona então? Tais acontecimentos são impressos na cera, tal como se grava um selo ou um carimbo em lacre. O fenó- meno impressivo regista pensamentos e imagens, sensações; todos eles fazem parte do impresso. A única distinção virá da nitidez com que foram gravados. Uns apagam-se depressa, outros resistem. Estes registos são traças ou vestígios, impressões [empreintes] que caracterizam as opiniões, o acesso ao conhecimento, e definem o seu valor de verdade. Assim, o conhecimento far-se-ia por re-conheci- mento. Todo o reconhecimento não é senão a projecção da sensação presente na sensação ausente, isto é, a comparação da sensação actual com a sua marca ou gravação. Toda a arte dos sábios, segundo Sócrates, é a de possuir uma cera de qualidade pura, no âmago da alma, de modo a poder gravar com todo o rigor e

perfeição as sensações vividas. Ora, os registos deixados seriam assim de grande fiabilidade de modo a permitir reconhecimentos futuros e a evitar enganos. Dos sábios é dito que “têm antes de mais facilidade em aprender; depois, memória e, enfim, não confundem as marcas das suas sensações e formam juízos verda- deiros” (Platão, Teeteto, 1967: 144). O reconhecimento torna-se fácil e consiste na devolução dessas marcas aos respectivos carimbos, isto é, a realidade, com os quais coincidem. Segue-se uma tipologia da memória, em que tudo depende da própria qualidade da cera — sendo mole oferece uma facilidade de aprendizagem mas um esquecimento rápido e, sendo dura, o contrário. Para aqueles cuja cera é impura, restar-lhes-á a posse de marcas impuras ou indistintas. Há ainda as almas que pela sua pequenez estão sujeitas ao engano, à confusão no reconheci- mento e, portanto, a produzir opiniões falsas. A memória impressiva ou impressa determina então todo o saber a a capacidade do reconhecimento.

A questão da memória abordada por Platão coloca, no dizer de Paul Ricoeur, a aporia da “presença do ausente” (2000: 9). Tal é o enigma da lembrança comum à memória, assim como à imaginação. Ora, a figura que descreve esta aporia é a figura da marca — tupos — isto é, da marca como inscrição. A memória aparece assim do lado da escrita, usurpando à escrita, enquanto inscrição da marca, o seu molde, a sua figuração metafórica. Mas, ao mesmo tempo, associa marca, registo, imagem, a escrita e a linguagem. Deparámo-nos com a seguinte aporia assinalada pela inversão derrideana: se toda a escrita é marca, a phonè é tam- bém já marca, isto é, todo o pensamento está atingido pela marca como ausência (isto é, a fala, dada a sua regularidade e exterioridade, integra então esse mesmo princípio escritural). Por outro lado, as imagens, tal como a escrita, são marcas, visto que também elas se plasmam na ordem do traço, dos traçados e, portanto, das impressões. A categoria das marcas indistingue, desde logo, escrita e ima- gem. É, aliás, esta indistinção que aparece no Fedro, associando a escrita à pin- tura e considerando que ambas, por serem marcas autónomas e marcas já de outras marcas — cópias de cópias — são ilusórias. Se a memória é remetida para a escrita — tupos — no Teeteto, a escrita, por seu turno, é distinta da memória no Fedro. A questão, tal como a coloca Ricoeur (2000: 16), oscila entre marcas ou registos exteriores, como é o caso da escrita, e interiores, como é o caso da cera figurando a memória.

Trata-se de distinguir entre memória íntima face à escrita exterior ou, diría- mos, entre uma escrita interior (a da memória e de memória) e a memória exte- rior, que é pública, a memória arquivada, as memórias do arquivo e em arquivo. Eis uma segunda aporia que atravessa a da presença do ausente. O que a metáfora da cera aproxima — a alma é um bloco de cera onde se gravam impressões —, a

escrita – como invenção de uma técnica exterior de gravação ou impressão – vem afastar. Isto é, o eixo que atravessa duas técnicas, tão próximas que se confun- dem, de modo a separá-las inexoravelmente, é da ordem do orgânico/inorgânico; do vivo/morto; do íntimo/público; do vivo/inerte. Quer dizer que só a vida ou o vivo podem manter gravado o passado da sensação, do discurso. Só o vivo tem essa capacidade e/ou legitimidade. É à figura do vivo, perpassando em filigrana, que Platão devolve a garantia da presença do ausente. O ausente só pode estar presente no vivo porque só este tem a possibilidade de o manter na presença, de o chamar à presença. É por aqui que se afirma uma ontologia da presença. Daí, a analogia da marca impressa na cera — memória — com a sombra ou a imagem especular, e não com a escrita alfabética, porque artefacto e, portanto, da ordem do não-vivo. Aliás, no Teeteto (1967: 142), é com o espelho que a analogia se faz, mesmo se para denunciar um princípio de erro ou de ilusão que este último provoca.

Pode ler-se no Fedro essa recusa de um remédio para a memória. O fármaco de que falava Toth, para quem a escrita seria o remédio para a perda de memória, é um veneno para Tamus, o rei que assim prevê o alastramento do esquecimento, por falta de exercício da memória. A memória viva pratica a anamnese, enquanto a repetição que procede da escrita é uma memória morta, maquínica porque exte- rior: hipomnese. A hipomnese é a figura do artifício, da técnica, do simulacro. Se a anamnese suporta a dialéctica e o pensamento filosófico conduzindo à ver- dade, a hipomnese está na base do pensamento sofista. Platão levanta, pois, uma suspeita sobre a escrita, que funciona como aide-mémoire, prótese exterior, em contraponto com a memória que vem de dentro, orgânica, recusando essa memó- ria assente em suplementos — hypomnesis. É que o tipo pode fazer passar-se pelo original. Assim, o fora não depende simplesmente da clivagem entre o físico e o psíquico mas:

“no ponto em que a mnèmé em vez de estar presente a si na vida, como movi- mento de verdade, se deixa suplantar pelo arquivo, se deixa esvaziar por um signo de rememoração ou de co-memoração. O espaço da escrita, o espaço como escrita, abre-se no movimento violento desta suplementaridade, na diferença entre mnèmé e hypomnesis.” (Derrida, 1989, p. 312)

O problema da escrita não se restringe à sua exterioridade mas ao facto de ela atingir, desvirtuando, a intimidade da psiqué ou mnèmé. O paradoxal nesta apa- rente oposição entre o logos como sentido vivo e o graphein como sentido morto é, ainda segundo Derrida, o facto de Platão acabar por proceder a uma contami-

nação nos termos, uma vez que a metáfora da cera como substituta da alma é ela mesma da ordem do graphein e, portanto, da escrita:

“E se a rede das oposições de predicados que relacionam uma escrita com outra contém nas suas malhas todas as oposições conceptuais do “plato- nismo” — aqui considerado como a estrutura dominante da história da meta- física — poder-se-á dizer que a filosofia se jogou no jogo das escritas. Mesmo quando não queria distinguir entre fala e escrita.” (Derrida, 1989: 361) É neste contexto, algo recriminatório, que recebemos o legado da escrita e que esta se propaga no pensamento ocidental. É o que acontece na metáfora empre- gue por Séneca, em carta a Lucílio, relativamente à memória:

“…mas há muito tempo que não exercito a minha memória, por isso me abandona ela facilmente. O que acontece aos livros cujas folhas se colam quando não as manuseamos é, penso eu, o que me aconteceu. É preciso des- dobrar a alma e remexer continuamente tudo o que nela se armazenou a fim de ter pronta essa riqueza de todas as vezes que a necessidade o exige.” (Carta 72 a Lucílio; 2010: 786)

Propondo e defendendo o exercício da memória como garantia da permanên- cia da lembrança, também ele utiliza a metáfora da escrita na sua forma de livro para definir o processo mnésico. A memória é actividade, é trabalho de reme- moração, é trazer ao presente o passado inscrito, mas acabado. Curiosamente, também em Séneca, a memória é comparada à escrita e o seu arquivo tido por um livro há muito por ler.

Falar de memória apaga, desde logo, o esquecimento, na medida em que a memória é, à partida, remetida para a positividade da lembrança. Freud rompeu com esta tradição dando a ver o lado obscuro da memória e os processos do seu apagamento. A sua teoria do inconsciente desmonta o processo do esquecimento sob a forma do recalcamento que não é senão uma memória reclusa, incapaz de advir como memória: um passado que está contudo presente, não sob a sua forma passada, mas até como acção, na formulação ricoeuriana (2000: 653), na medida em que, sendo passado, pode actuar no presente do sujeito ignorante. Do mesmo modo, uma memória actuante é uma memória-cuidado, que acarreta inquietação. Nesse plano, haveria a considerar, com Ricoeur, que o supremo esquecimento, o esquecimento bem-aventurado, seria aquele que, por absoluto, se daria numa espécie de despreocupação inocente: o esquecimento descuidado. Nenhuma

escrita, por mais ilegível que se torne, pode igualar este apagamento inocente da memória. Esse é o seu drama, essa a sua condição. Qualquer texto, mesmo rasu- rado, mesmo ilegível, aguça e promove a sua decifração. Mesmo ilegível, ele tor- na-se demasiado visível. É que exterioridade acarreta também impessoalidade: sendo uma memória de ninguém, no sentido em que se perdeu a origem, ela é memória transversal a todos: uma herança.

Por outro lado, a suposta adesão do bios à escrita, que fundamentaria o género autobiográfico, afigura-se, na Modernidade, como uma não-consubstanciação. Desse ponto de vista, a autobiografia contemporânea faz a distinção entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação, assumindo a sua não identifica- ção total, ou seja, a sua diferença abissal. O mesmo se passa com a escrita baseada nos traços mnésicos, as memórias, por exemplo. A autobiografia deixou de ser um género narrativo considerado fiel e sem lacunas para passar a assumir uma organização de sentido disperso e necessariamente fragmentário, como acon- tece por exemplo com W, de Georges Perec, narrativa lacunar da infância, que se desenrola em pedaços de narração disseminados por zonas de esquecimento do passado. Neste sentido, a reconstrução ou reconstituição da própria vida é um trabalho de escrita que reelabora, reinterpreta e ficciona mesmo os espaços inter- valares da memória, as bolsas de amnésia.

No documento Culturas do Eu (páginas 190-194)