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O Trompe l’oeil

No documento Culturas do Eu (páginas 123-125)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

1. DISPOSITIVOS DE REFLEXÃO

1.5 O Trompe l’oeil

A representação na pintura é também um meio de conhecimento e compreensão do real, instaurando espaços tipificados como a paisagem, o interior, etc. Esse trabalho destaca-se pela sua diferença relativamente aos processos de represen- tação em trompe l’oeil. Na verdade, o trompe l’oeil vive de um excesso de presença, enquanto a representação exige distância, elaboração, apreensão. Louis Marin trabalhou longamente esta distinção entre a representação como trabalho de apropriação e de conhecimento do real e o trompe l’oeil como ilusão, ou mesmo simulacro, em última instância, ausência do real. A forma especular do trompe l’oeil distingue-se portanto da dimensão vítrea da paisagem ou do retrato, enten- didos como representações elaboradas do real (Marin, 1994). A representação não pode ser confundida com a imitação ilusória pois, neste sentido, ela não engana. Pelo contrário, a representação apela ao reconhecimento da sua natureza repre- sentativa. Representar é, já de si, “trazer à presença um objecto ausente, trazê-lo à presença enquanto ausente” (Charpentrat, apud: Marin, 1994: 305). A condição da representação é a perspectiva. Ela opera uma racionalidade do olhar, uma

passagem ao enfoque, a uma verdade teórica, a um ponto de vista. A representa- ção é, neste sentido já, um juízo e reside aí a sua dimensão judicativa. “Assim a representação não tem por efeito fazer-nos crer na presença da própria coisa no quadro” (Charpentat, ibid, 307) mas criar esse prazer e poder de dominarmos teo- ricamente os objectos, a realidade. Ora, a perspectiva é esse dispositivo da repre- sentação que representa e racionaliza ao mesmo tempo. A profundidade da pers- pectiva contrasta com a espessura do trompe l’oeil. A perspectiva é um elemento forte pois ela “permite ao pintor dar conta das três dimensões de um objecto mas não, ipso facto, de o tomar por um objecto a três dimensões”, segundo a defini- ção de Charpentrat (ibid, 303). E acrescenta: “à imagem transparente, alusiva, que espera o amador de arte, o trompe l’oeil tende a substituir a intratável opacidade de uma presença”. Um efeito de presença: é aí que reside a ilusão. À transparência da imagem na representação opõe-se a opacidade do objecto simulado, equivalente à imagem especular, portanto.

O jogo da representação assenta numa admissibilidade da própria representa- ção, mas enquanto operação transitiva, isto é, voltada para fora, cumprindo a sua função de representar algo. A partir do momento em que ela se opacifica, se vira para aquilo que representa e, portanto, se torna reflexiva, aí ela toca o trompe l’oeil embora este, como refere a mesma fonte, não seja, de modo nenhum, percebido como reflexo. O objecto já não está em representação, é a própria coisa, na for- mulação exemplar de Marin: “O espectador admira a representação mas o trompe l’oeil pasma-o” (idem). É, tal como a imagem especular, a irrupção do simulacro enquanto acontecimento – um efeito de presença. O que distingue a representa- ção do simulacro é que, no primeiro, se dá um efeito de realidade, no outro, um efeito de presença (idem: 308). É o excesso da mimesis ou a mimesis que se dá em excesso, como um suplemento da própria representação. O fenómeno, segundo Marin, pode ser explicado da seguinte forma: “a aparição vem à frente do olhar” (idem), daí, talvez, a decepção de que fala a língua inglesa para designar o trompe l’oeil: deception. Haveria nele, tal como no reflexo especular, uma espécie de mîse en abyme da representação, uma representação que se representa a ela mesma, numa dimensão ilusória ou alucinatória. Tal distinção permite separar, na ima- gem, a representação da ilusão, a imago do fantasma, que constitui a grande sepa- ração no âmbito da mimesis em Platão.

Para além disso, há ainda o fenómeno da inserção do espelho na pintura que transporta para o interior da tela uma a-presentação, uma presença que, de outro modo, estaria sempre na ex-cena. Este efeito de presença obtém-se no interior da representação, como ausência do representado, pela inserção do espelho reflec- tindo, ora a própria cena representada, ora o fora-de-cena. Enquanto a presença

do espelho ao reflectir a própria cena cria uma vertigem, a tal mîse en abyme da representação, duplicando assim a cena, o espelho que, pelo contrário, suposta- mente reflecte aquilo que não está no campo visual da representação – no enqua- dramento da janela –, como adverte Stoïchita, desempenha a função de: “‘tenant lieu’ de uma realidade ausente” (1993: 212), de substituto. O efeito de presença ins- creve-se no interior da própria pintura como elemento ambíguo que enceta um estatuto algo distinto do da própria representação. Nessa medida, o espelho pode aparecer como uma figuração da assinatura que é, ela também, inscrição de uma presença. O pintor inscreve-se na pintura, inscreve a sua presença no interior da tela, mesmo sabendo que a sua presença é efémera, quer através de um auto- -retrato em pormenor, quer, posteriormente, através da aposição da assinatura a um canto da tela. Ora a pintura, ao usar o artifício do espelho, está a operar uma ilusão, uma simulação de presença, dado que o espelho não está efectivamente lá a reflectir a cena, mas ela é também já do domínio da representação.

Operando no interior da representação, o espelho seria, simplesmente, um dispositivo suplementar de criação de imagem, cumprindo ainda uma função apresentativa. Mas, para além da representação, o certo é que cria uma duplica- ção. A vertigem do espelho, agora em qualquer circunstância, advém desta pre- sentificação da representação ao representado; ele não se substitui, não funciona na ausência da coisa mas antes como pura extravagância, suplemento da coisa – clonagem. Ao contrário do dispositivo fotográfico de captação de imagem, onde justamente se cria uma brecha temporal entre o momento da captação e o da representação, o espelho duplica, na medida em que ele só revela a cena na efe- meridade de um presente; enquanto apresentação, ele dura o tempo do reflexo.

No documento Culturas do Eu (páginas 123-125)