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O corpo a partir de uma pós-modernidade

No documento Culturas do Eu (páginas 174-177)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.7 O corpo a partir de uma pós-modernidade

As filosofias da diferença têm em comum, não uma mesma perspectiva sobre o corpo, mas uma mesma desconstrução da dualidade a que ele estava votado no pensamento ocidental.

A questão interessante que, a partir de MillePlateaux se pode evocar, é a de saber como entender um devir-animal que nega o estatuto de metáfora ou de representação. A clara rejeição da obra de Freud está numa certa medida ligada à importância que tomam no seu pensamento noções como a de imaginário e de fantasma, da ordem da representação. Ora, o que se verifica, na obra deleu- ze-guattariana, é a recuperação da ideia de arquétipo e de imaginário colectivo junguiano, sublinhando a importância que têm, para o imaginário as figuras animais investidas pela libido. No universo do imaginário em geral e particular- mente no sonho, as séries animais teriam como função absorver a perturbação inconsciente. É que, “diversamente da história natural, não é mais o homem o termo eminente da série, pode ser um animal pelo homem, o leão, o caranguejo ou a ave de rapina, a pulga, relativamente a tal acto, a tal função, seguindo uma dada exigência do inconsciente” (1980: 288). A série é apresentada em Jung contra a estrutura fabricada em Lévi-Strauss (ibid: 288/289). As séries são arquetípicas e do imaginário, as estruturas são simbólicas. Mas a questão da animalidade não se restringe às séries animalescas de Jung. A crítica à sua função de representação surgirá, a partir da concepção de devir-animal: “Um devir não é uma correspon- dência de relações” (ibidem). O devir também não se localiza na imaginação, não é pois imitação, não se dá na analogia, na representação – fantasma –, não é de ordem icónica, mas localiza-se antes no real, que consiste na própria efectivação do devir, sem ter no entanto nenhum animal verdadeiramente como advindo. Esse devir-animal que não recorre à ordem da representação deve ser entendido como conjunto de “protocolos de experiência” como os próprios autores o desig- nam, uma dimensão do agir inserida na dimensão política e não de todo imaginá- ria. O devir é, em suma, como afirma J. Gil (2001: 206), da ordem do “movimento das intensidades”. Pensar o devir-animal permite sair fora do ciclo avassalador das representações e inseri-lo no real, na medida em que ele toca o afecto, afecta o afecto, “é o próprio afecto, a pulsão em pessoa e não representa nada” (1980: 317). O estádio último de devir-animal não é uma transformação orgânica, uma mudança de espécie, uma aberração da natureza, mas antes uma movência das afecções, uma concentração de intensidades que resultam numa outra forma de devir-animal, uma forma im-perceptível no plano da realidade e que se denomina mesmo como o devir-imperceptível (1980: 342 e sgts). A questão deixada como resto será então, neste caso: que fazer do imaginário enquanto lugar de fabricação de imagens? O descentramento que operam Deleuze e Guattari é o que permite introduzir o afecto e o percepto no lugar do conceito. Quer dizer, os perceptos, ou autonomizarem-se como conjuntos de sensações e de percepções, vêm, por assim dizer, destronar os conceitos. São conceitos fenomenologicamente ancorados.

No pensamento de Derrida, o bios aparece, antes de mais, como a animalidade do vivo que é distinta do inorgânico ou cadáver; que é uma sensibilidade ínfima reconhecível a todo o ser vivo. Quer dizer que a ruptura a estabelecer não é, mais uma vez, a de humano/animal, mas antes a de vida/morte.

A acentuação da disponibilidade ou disposição à afecção como marca de todo o ser vivo indistingue o humano do animal. Afigura-se relevante a dimensão pática ou patémica, essa aptidão ao sofrimento referida por Bentham e retomada por Derrida (1999: 280), como marca de todo o ser vivo.

Por outro lado, a clivagem instituída entre o animal e o humano, a estabelecer- -se, ganha aqui outros contornos, já que se trata de perceber que ela não pode ser dirimida do ponto de vista estritamente biológico mas que é, essencialmente, uma questão histórica sustentada por pressupostos filosóficos, como aliás ficou referido anteriormente. E nessa medida, esse bordo não é unilinear, é múltiplo e heterogé- neo. A linguagem como separação consensualmente aceite tem vindo a ser ques- tionada nos seus fundamentos. É que essa clivagem, declaradamente antropocên- trica, terá favorecido o esbatimento de uma multiplicidade de outras clivagens no interior da esfera dos seres vivos, onde existe uma multiplicidade de organizações, de relações e de separações. A desconstrução da ideologia antropocentrada passa pela averiguação de certas desproporções assinaladas por Derrida. Desde logo, a aptidão humana, não estritamente ao signo enquanto código, mas à resposta, per- mite admitir as linguagens codificadas em certas espécies animais, mas utiliza- das na dimensão puramente comunicacional, isto é: horizontal e transitiva (passar uma mensagem) enquanto a aptidão humana teria a ver com a faculdade reflexiva da própria linguagem, com a sua mîse en abyme, quer dizer, com a capacidade de dizer o dito, de enunciar as propriedades da própria linguagem, de falar a fala, no sentido barthesiano, isto é, uma discursividade segunda por sobre uma discursi- vidade comunicativa primeira. Há aqui portanto uma fronteira mais subtil, um bordo dentro do bordo, que era já a linha de demarcação do humano. E há também ainda todo o domínio da afecção que é da ordem do vivo e que o humano parti- lha com o animal. A questão etológica pode hoje trazer luz sobre essas linhas de partilha, esfumando as aludidas dicotomias fundadoras do pensamento ocidental. Refira-se que a disparidade contida na oposição animal/humano é de tal ordem, que num só lado cabe todo um jardim zoológico, para não falar dos oceanos nem ainda da totalidade dos céus do planeta, e do outro, encontra-se o humano na sua superioridade solitária. Na verdade, uma certa narrativa histórica transformou as fronteiras múltiplas num bordo homogéneo, antropocêntrico ou antropo-centrado. A questão que toda a filosofia se colocou é a de saber se os animais “são do tipo zoon logon eklon, se eles podem falar ou raciocinar”. O animal

seria então considerado como desprovido de capacidade de simbolização, pelo menos de resposta ou de relato, isto é, de transposições no quadro da ordem sim- bólica, pelo contrário, no homem, uma espécie de falta ou falha fundadoras, um defeito originário provocaria o seu acesso à linguagem, às trocas simbólicas e respectivas transposições, à sociabilidade em geral. Suprimir a linguagem como fronteira equivale a esbater as diferenças da oposição animal/humano.

Para Derrida, a questão da origem como falha explicaria essa aptidão ao logos, marcante da natureza antropomórfica e da vertente logocêntrica que logo inun- dou todo o pensamento ocidental. Ao tentar encontrar os fundamentos filosófi- cos para o dito antropocentrismo, o filósofo depara-se com dois mitos ocidentais, de Caím e de Belerofonte, autónomos entre si, mas ambos reveladores de uma falta abissal. Diz ele:

“…em todo o discurso sobre o animal nomeadamente no discurso filosófico ocidental, a mesma dominante, a mesma recorrência de um esquema na ver- dade invariante. Qual? O seguinte: o próprio do homem, a sua superioridade avassaladora sobre o animal, ou mesmo o seu devir-sujeito, a sua historicidade, a sua saída para fora da natureza, a sua socialidade, o seu acesso ao saber e à téc- nica, tudo isso, e tudo o que constitui (num número não finito de predicados) o próprio do homem, teria a ver com esse defeito originário, precisamente esse defeito de propriedade, esse próprio do homem como defeito de propriedade – e com esse ‘é preciso/il faut’ que aí encontra o seu fluxo e refluxo” (1999: 295). O próprio do humano, portanto, seria antes da ordem de uma falta irremediá- vel. Falta instauradora da linguagem, diríamos, que advém também como suple- mento, superioridade humana. Uma falta que se traduz em excesso.

No documento Culturas do Eu (páginas 174-177)