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Como mudar de corpo

No documento Culturas do Eu (páginas 184-187)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.10 Como mudar de corpo

A questão que se coloca actualmente ao corpo parece ser portanto de uma outra ordem. Não se trata já de descrever, de aceitar, de interpretar os limites do corpo, ou sequer de falar do corpo como matéria imutável na sua forma mas, antes, como refere Bernard Andrieu, de se perguntar “como mudar de corpo?”. É que, a partir do século XX, a interrogação que é feita à noção de corpo não estará mais assente na sua natureza supostamente imutável, “a definição do corpo humano deixa de ser definitiva: podendo agir sobre os genes, e não unicamente sobre o soma, o património genético que até então era herança transmitida pela família, é posto em causa pela acção da ciência” (1994: 20). Na verdade, o que se exige hoje do corpo é que ele seja mutável. A manipulação genética e a transfiguração,

mutação de género, mutação plástica, etc. provocam uma verdadeira ruptura no corpo dito natural que deixa de ser assumido como origem e destino. O indiví- duo deixa de se sujeitar ao seu corpo, podendo, pela primeira vez, modificar-lhe quer a imagem quer a natureza e até mesmo, ou por isso mesmo, a identidade. O corpo como lugar do sujeito passa a ser um corpo fabricado, senão moldado, não somente pelo vivido como pelas intervenções de vária ordem que nele se podem operar. A noção de destino aplicada ao corpo é assim substituída por uma outra que poderíamos formular enquanto devir-carne-subjectivada.

Os dispositivos de extensão têm eles próprios raízes em todo um imaginário maquínico que faz aparecer as máquinas simuladoras das várias performances do humano. Mas o que se passa é que o corpo protésico contemporâneo, uma simbiose do orgânico e do maquínico, dá lugar a um corpo outro, onde deixa de fazer sentido, por exemplo, a oposição natureza/cultura.

Tibon-Cornillot chama a este processo, que se enceta com múltiplos efei- tos, a “mecanização do vivo” (1992: 231), a qual institui uma certa dependência do corpo a dispositivos que a ele aderem e nele se incorporam, transformando ou transfigurando o próprio material genético. Esta nova “natureza biológica” é constituída de objectos “racionais-vivos” ou “artificiais-vivos” que novos campos do saber como as ciências informáticas, as neurociências e as ciências cognitivas ou a biologia genética estudam. Segundo ele (1992), e ao contrário daquilo que se passaria com as técnicas ancestrais na sua relação com o corpo, o corpo humano actual está fortemente exposto a transmutações. Enquanto, ao longo da história, o desenvolvimento técnico manifestado na produção de utensílios mantinha-os relativamente destacados do corpo, não-incorporados portanto, o que permitia garantir uma certa disponibilidade e liberdade do corpo, o que acontece hoje em dia é uma relação outra que a tecnologia estabelece com o corpo. E Tibon-Cor- nillot prossegue, constatando que, face aos desenvolvimentos das novas técni- cas genéticas, elas não estão mais ao serviço do humano entendido como sendo aquilo que é, mas apostam antes numa “reconstrução dos seres vivos”, de que os humanos são os primeiros a sentir os efeitos. A metamorfose a que se assiste por influência da técnica transforma o corpo em “objecto tecnológico”, como o designa H.-P. Jeudy (1998).

Fazendo um rápido levantamento dessas modificações estruturantes, B. Andrieu (1993 e 1994) refere que desde os anos 60, em que foi possível o controle da natalidade através da pílula anticonceptiva, se inaugura uma nova era do humano. Em 1985, o património genético, até aí uma herança transmitida pela consanguinidade, fica posto em causa pela acção da ciência. A natureza deixa de ser aceite como um destino não modificável. Por outro lado, a cirurgia plástica

produz uma nova dimensão do corpo. O indivíduo pode modificar o seu corpo, deixando de o aceitar tal qual a natureza lho impôs e, sobretudo, de o assumir como irredutível e irremediável. A genética e as neurociências mas, também, o desenvolvimento da farmacologia vêm permitir, ainda, a modificação dos esta- dos mentais e afectivos, por via das compensações que as substâncias injectadas operam no sistema orgânico global: lítio, serotonina, anfetamina, psicotrópicos, ansiolíticos, antipsicóticos, etc., etc. O humano torna-se vulnerável à medicina e à química, às técnicas de transformação plástica, de implante, ou de transplante, à manipulação genética e hormonal, etc..

Então, quando o pensamento contemporâneo faz do corpo o tema de eleição, de que corpo está a falar? Da carne opaca e sujeita às leis da gravidade? Do corpo sentinte que capta o que lhe é estranho, exterior? Do corpo pensado, imaterial, representado? É que vão-se desenhando muito claramente duas vertentes de abordagem do corpo (Casalegno, 2000), uma que o desmaterializa e o remete para o domínio do virtual, corpo etéreo, nó na rede – o corpo cyborg não é senão a força da mente potenciada e mediada pelas tecnologias do digital –, a outra que o considera como carne capaz de incorporar o estranho, a tecnologia, corpo pro- tésico que devém corpo híbrido. Ora, enquanto a especulação imaginária desma- terializa o corpo na figura virtual do cyborg, o corpo real, esse, vai sofrendo um processo que deixou de ser uma simples operação protésica para se tornar num corpo manipulado, definindo-se pela sua capacidade de incorporação de compo- nentes alheias à carne mas que a potenciam nos seus múltiplos desempenhos. Não pondo em causa a capacidade do corpo dito humano para “habitar” mundos imaginários, projectar-se nas dimensões da realidade virtual, etc., o que interessa aqui salientar é que esse corpo, capaz de tais projecções fantas(má)ticas, não deixa por isso de ex-sistir e de re-sistir ao seu destino virtual, estando a ser entretanto objecto das mais inacreditáveis incorporações, sensórias, orgânicas, musculares ou ósseas, de natureza tecnológica e biótica, como vimos, mas sendo até objecto de transacções e comercializações ilícitas como, por exemplo, o tráfego de órgãos. O corpo está vivo e seria de um idealismo distraído pensar-se que alguma vez ele se poderá volatilizar, desmaterializar. É que, entretanto, os corpos e as vidas neles vão morrendo de fome e doença porque a mesma tecnologia que desmaterializa o corpo não chegou até ele para o salvar.

A mutação do corpo protésico em corpo híbrido dá-se, porém, na ruptura tec- nológica que a cibernética vem proporcionar: o corpo pós-humano. A própria con- cepção de sujeito vê-se abalada por esta alteração. A possibilidade cada vez mais avassaladora da implantação do suplemento na carne não só anula a ideia de imu-

tabilidade do corpo, como vimos, mas anula ainda a própria ideia de mesmidade e de identidade. É que uma outra questão se abre ainda, imbricada na implanta- ção protésica, a da temporalidade, tal como a formula Stiegler (1996), isto é, a da relação do vivo com o morto e com a morte. A consequência última desta falta originária do corpo e da possibilidade de incorporação tecnológica é, para este autor, a própria finitude do corpo, e essa está nele inscrita, desde os primórdios da técnica. A morte como “desaparecimento possível do corpo próprio” está inscrita nesta capacidade de conservação exterior, memória externa ou arquivo. A dispen- sabilidade do corpo ao funcionamento do sujeito já não se discute no domínio da ficção ou no da realidade mas, antes, no domínio da actualidade. A questão da técnica redunda tão só na aceleração da finitude humana, tomada como fim do corpo e como fim de uma ideia de humano.

Trata-se de um devir-monstro do humano, por onde se imiscuem os proce- dimentos de alterização identitária configuradores de uma mutação na própria subjectividade. É esse o desafio que se nos coloca ao pensar o corpo na actuali- dade tecnológica.

No documento Culturas do Eu (páginas 184-187)