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O corpo híbrido das artes e da ciência

No documento Culturas do Eu (páginas 187-190)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.11 O corpo híbrido das artes e da ciência

Desde 1995 que Joel de Rosnay criou o conceito de “homem simbiótico”. O termo simbiótico é um neologismo fabricado a partir da síntese entre a biologia e a infor- mática. Aliando as descobertas científicas e tecnológicas à biologia produzem-se novos componentes e circuitos electrónicos moleculares que passam a integrar o corpo e interfaces bioelectrónicos que o ligam a computadores. Com a ajuda de componentes digitais e tirando partido das nanotecnologias, está aberto o campo à invasão e modificação das funções e competências do humano. O corpo deixa de ser pura carne para se tornar corpo híbrido, um tecnocorpo ou corpo-biónico, já explorado no cinema e cada vez mais uma realidade da medicina experimental. Por outro lado, e segundo o próprio Rosnay, a electrónica molecular irá repre- sentar a próxima grande etapa da evolução informática, mergulhada no infinita- mente pequeno. O corpo deixou de ser carne, puramente orgânica, individual. Se a experiência estética não estivesse aí, na ordem do dia, a resistir à obsolescência do corpo orgânico, tal demonstração caberia por si só às novas tecnologias desen- volvidas no âmbito científico.

Os fenómenos ligados às tecnologias do digital vêm questionar não só o esta- tuto protésico conferido aos dispositivos tecnológicos como, além do mais, inter- rogar o próprio estatuto do corpo. Já não é a carne que é afectada, porque ampu-

tada ou transplantada ou incorporando apêndices, mas trata-se sobretudo de um devir imaterial do corpo que é também ele produtor das suas figuras imaginárias, donde o cyborg. Como referia, já em finais do século passado, Ieda Tucherman:

“o que acontece hoje é que a tecnologia exibe escandalosamente o ‘corpo conectado’. Mudou no entanto a consistência destas ligações: não são mais religiosas, naturalistas, antropocentradas, já que pertencem ao mundo da electrónica e da informação” (1999: 165).

Trata-se de um outro corpo, o corpo cyborg, onde a prótese se substitui por inteiro ao próprio corpo ou ao corpo dito próprio, num regime de afectação do incorporal que traz implicada a questão de como mudar de corpo e, portanto, do limiar do humano enquanto carne. É de uma falência do corpo que releva o cyborg, falência já antecipada por Lyotard quando afirmava que “o corpo não responde às exigências e desafios futuros da humanidade” (1997: 69), apontando claramente para uma necessidade de desencarnação do corpo.

Dois modelos de corpo pós-humano se desenham no quadro científico-ima- ginário da actualidade. Um corpo desmaterializado, virtualizado, que se transpõe para o ciberespaço, o cyborg, e um corpo modificado, através de micro-disposi- tivos informáticos ou bio-informáticos que o transformam num corpo tecnolo- gizado. Este corpo será sempre material, sujeito às leis biológicas embora fruto de manipulações genéticas e tecnológicas. O cyborg, por seu turno, não é corpo, nem será o corpo futuro correspondendo à tão falada desencarnação. O futuro do corpo está na hibridação que explora ao máximo a própria estrutura informa- cional que a descoberta do genoma humano veio permitir. Informatizar o corpo é, não só transformá-lo em nó na rede como também explorar esta capacidade de o ler à luz da informação que ele próprio contém inscrita. As tecnologias do digital, molecular, robótica e das telecomunicações modificaram a concepção de humano e vêm-lhe criando novos desafios.

Na verdade, as descobertas já levadas a cabo e as que se anunciam no quadro da genética apontam para um corpo que não é nem protésico nem cyborg, mas um corpo híbrido, que sofre uma mutação ao nível da própria estrutura, para assu- mir uma dimensão biónica, ou então um corpo que contém na própria estrutura celular o embrião da sua clonagem protésica, como premonitoriamente afirmava Jean Baudrillard:

“É a fórmula genética inscrita em cada célula que se torna a verdadeira pró- tese moderna de qualquer corpo. Se a prótese é normalmente um artefacto

que substitui um órgão deficiente, ou o prolongamento instrumental de um corpo, então a molécula de ADN, que contém toda a informação relativa a um corpo é por excelência a prótese que irá permitir prolongar indefinida- mente esse corpo através dele próprio – tornando-se ele a própria série inde- finida das suas próteses” (1981: 150).

Pelo exposto, o regime de desconstrução, encontrámo-lo em embrião no próprio corpo, o qual, num processo auto-reprodutor, passa a ser prótese de si mesmo, acabando de vez com a dimensão originária e identitária do sujeito. O corpo híbrido entra então na “era da sua reprodutibilidade” para usar uma expres- são consagrada.

Concluímos, com Ieda Tucherman (2002), que o pós-humano não é o fim do humano, mas o fim de uma concepção do humano. Ora, a concepção ultrapas- sada de humano é a consideração da existência de um corpo íntegro, intocável mas capaz de acoplar extensões artificiais sempre para lá dos seus limites de carne. No mesmo propósito, Steven Shaviro propõe uma abordagem biológica da pós-modernidade. Cada mutação cultural infere um novo estádio do corpo. As modificações tecnológicas modificam a própria natureza dos nossos sentidos e do nosso sistema nervoso. São portanto inovações biológicas. É disso que se trata também para K. Hayles (1999). Por isso mesmo, os progressos da biologia pós-moderna, para o autor, implicam “uma problematização e uma ‘desnatura- lização’ radicais de noções como a de organismo e de indivíduo” (Shaviro, 2003). O corpo torna-se então uma ideia construída segundo quadros de referência que variam com os desenvolvimentos técnicos e biotecnológicos. Shaviro rejeita qualquer distinção entre interior e exterior do corpo e, do mesmo modo, entre natureza e cultura. Neste contexto, o ultrapassar da perspectiva dicotómica, que é estática, deve-se ao facto de existir uma condição do humano que passa por um jogo de influências genéticas e do próprio ambiente que não se podem separar. O bios não está separado do socius. Daí caber ao próprio pensamento sobre o corpo estar atento “à diferença e à mudança” observar os fenómenos de “incorporação biológica” (ibidem).

Ao corpo revém, repetimo-lo, a faculdade de incorporação, essa capacidade em aberto que permite um campo inexpugnado e inexpugnável de mutações: abertura do leque de sentidos, abertura das performances, abertura da memó- ria e da inteligência. Teremos então de rever a concepção de vivo e o limiar da corporeidade.

No documento Culturas do Eu (páginas 187-190)