• Nenhum resultado encontrado

O Corpo enquanto pele

No documento Culturas do Eu (páginas 167-169)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.5 O Corpo enquanto pele

Há uma configuração que vem tomando o lugar do corpo e que é a pele, não como embalagem, invólucro, mas como forma sensível e materialidade visível do corpo. Numa perspectiva antropológica, a pele tendeu realmente a funcionar como limite, zona de separação entre o dentro e o fora, fronteira instituinte de um espaço sagrado, e de uma zona de poluição, de interdito, sujeita a legislação das práticas corporais, das condutas sociais e dos valores prescritos ou interditos (Douglas, 1971). Uma antropologia do corpo mostra assim a assunção da dimen- são político-sagrada dos limites identitários, organizando códigos mais ou menos rígidos. É por referência a uma ordem do simbólico instituída que a impureza se marca no limite do corpo e que esse limite ajuda a formar a própria identidade, instaurada nas duas vertentes: a da rejeição, como limite para fora, e a do segredo, como limite para dentro (Descombes, 1977).

Fenómeno curioso e que vem marcar novas abordagens ao corpo é o da atri- buição de uma espessura significante à pele, entendida comummente como pelí- cula, limiar, fronteira e contorno da carne. A espessura da pele permite olhar o corpo aglutinando várias cadeias semiósicas e conceber assim um novo topos de análise por onde passam muitas das questões actuais sobre o corpo. É Didier Anzieu o autor deste novo conceito que hifeniza o eu à pele. A pele adquire a fun- ção de continente de todo o fluxo sígnico que investe o corpo desde a alimen- tação à competência linguístico-cognitiva, não deixando contudo de ser limite, couraça protectora das agressões externas as mais variadas e demarcando os limites topológicos do corpo. Esta perspectiva reforça, no corpo, as dimensões visual e táctil que têm na pele o seu ponto respectivo de ancoragem. Por isso, o corpo-enquanto-pele é por excelência superfície de contacto, abertura ao mundo e ao(s) outro(s), lugar de comunicação e partilha. O eu-pele é entendido por Anzieu numa tripla derivação tropológica: em primeiro lugar, há uma correspondência metafórica entre o eu como envelope psíquico e a pele como envelope orgânico; em segundo lugar, uma relação metonímica liga o eu à pele na medida em que eles se inscrevem ao mesmo tempo como dentro e fora, um englobando o outro; por fim, oeu e a pele estabelecem uma elipse, como figura englobante, da mãe e da criança. Na verdade, este eu-pele recobre um lugar físico que serve ao mesmo tempo de ancoragem à fabricação de uma imagem de si. E é justamente sobre este lugar de confluência que é possível inscrever marcas, marcar o corpo, tornando-o, à partida, superfície de inscrição (1990).

É desmontando toda a tradição que remete a pele para o estatuto de couraça, com uma função de protecção, que argumenta François Dagognet, quando consi-

dera que a herança do corpo é a herança do “fantasma da interioridade (orgânica ou mesmo ontológica), como se todo o ser se dissimulasse /.../ por detrás de uma armadura, quando o que acontece é que ele vive na sua vibrante periferia (simul- taneamente sólida e vulnerável, ou ainda, frágil e resistente)” (Dagognet, 1993: 90). Partindo do discurso clínico sobre o corpo, nomeadamente da dermatologia, o filósofo desenvolve toda uma análise que designa por dermociência e que tem como argumento fundador essa mesma ideia de que a pele é espessa dado que ela é reveladora do estado do corpo orgânico na sua totalidade. Não sendo pro- priamente uma película, a pele permite olhar o corpo como um todo, como uma forma material que possui, como todas as formas, o seu verso e reverso, para que o corpo-pele remete. Não se afirma aqui qualquer pensamento da aparência, a pele não é puro invólucro de uma qualquer essência velada, a pele é, por excelên- cia, a zona de interface do corpo. Ao entender-se como interface, ela participa de um estatuto de reversibilidade que não possuía até então.

A própria medicina vem operando um descentramento do interior do corpo para a pele. Dá-se uma inversão da ideologia do dentro/fora, visto que o fora não é um simples envelope, uma fronteira, mas o próprio lugar da sensação. A impor- tância da pele vem do facto de ela estar em contacto com o Outro. Retomando a medicina hipocrática, marcadamente cutânea, a sintomatologia apoia-se na pele como zona capaz de reflectir o estado clínico do corpo. Sendo ela o espaço de tea- tralização somática do eu, tem na alergia o seu revés: allos – outro+ ergon – acção. Todas as erupções cutâneas são tratadas nesta perspectiva alergológica, como zona e efeito de contacto ou contaminação do/pelo outro. Os problemas alergo- lógicos poderão ser lidos, independentemente da sua dimensão clínica, como reacções extremadas do corpo face ao exterior. A cútis deixou de ser barreira para funcionar como ponto de confluência entre o corpo e o mundo, o interface do corpo. É que a superfície cutânea é ainda o lugar de erupção e visibilidade das patologias orgânicas o que indistingue, a partir daí, as categorias da medicina interna e externa. É toda uma perspectivação nova do corpo que abandona as grandes clivagens de especialidade, assentes numa perspectiva funcional dos órgãos, para adoptar uma visão do corpo como um todo, de que a pele é, não um invólucro passivo, mas a verdadeira “potência que assegura a nossa identidade e a sua defesa” (Dagognet, 1993: 90).

Também Jacques Fontanille (2001), se serve dessa figura que é o moi-peau para encetar toda uma tipologização das relações do ego com o mundo. Por um lado, a ideia de eu-pele permite pensar a reversibilidade do corpo: a forma do corpo enquanto pele estabelece ao mesmo tempo uma pregnância do corpo no mundo, como matéria formada, protuberância; por outro, permite pensar o negativo do

corpo que a ergonomia hoje desenvolve. O par funcional vestígio/forma leva-nos a um tratamento específico das formas dos objectos-extensão, objectos que, aco- plados ao corpo, lhe aumentam a performance, de modo a ver neles essa marca moldada do corpo ausente-presente. A ergonomia tem como sustentáculo a ideia de corpo como interface, estabelecendo na proliferação de objectos-exten- são que fabrica, aquilo a que Fontanille chama “um mundo povoado de corpos e de simulacros e de projecções do corpo sensível” (2001). Essa reversibilidade do eu-pele permite a tais dispositivos extensionais tornarem-se próteses incor- poradas. É que, ao contrário dos dispositivos de reflexão, espelhos e ecrãs, os dispositivos de extensão inserem-se numa dimensão semiótica particular que opera por contiguidade ou mesmo por acrescento, colagem ou sutura. Por isso eles não se encaixam na ordem da representação, não são produtores de ima- gem, mas são antes amplificadores ou potenciadores de performance. Situam-se na ordem do fazer e não do ser/parecer, embora possam, uma vez soldados ao corpo, serem também produtores de imagens mais ou menos fantasmadas, do corpo próprio. As próteses instauram um regime de indicialidade que substitui o regime da iconicidade em que assentavam as representações com base na refle- xão. Na verdade e, independentemente da semiose que o carácter indicial possa produzir, tais procedimentos operam por contiguidade física com o corpo, reve- lando a sua natureza impressiva ou de apêndice e já não reflexiva ou identitária. U. Eco propõe uma distinção das funções que as próteses podem adquirir na sua relação ao corpo. As próteses extensivas, na tipologia de Eco, são prolongamen- tos da acção natural do corpo e distinguem-se das amplificativas, que têm por função um aumento até então não imaginado da performance do corpo. Sendo questionável esta distinção, ela oferece no entanto um instrumento de trabalho capaz de pensar uma semiótica do objecto que abarca desde o utensílio até à própria tecnologia. É o caso de todos os dispositivos tecnológicos de informação que operaram uma mutação cognitiva no utilizador e que permitem desdobrar, amplificar e armazenar a informação. Mas, o avanço tecnológico das próteses colocam o próprio corpo num outro patamar de conceptualidade que desenvol- veremos adiante.

No documento Culturas do Eu (páginas 167-169)