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Desconstrução da reflexividade e introdução à retenção

No documento Culturas do Eu (páginas 140-143)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

1.9 Desconstrução da reflexividade e introdução à retenção

Ao princípio de reflexividade como operação mimética de redobramento ou duplicação, Derrida contrapõe a operação performativa de instituição ou de ins- tauração da subjectividade, na medida em que, seja através do espelho ou da lin- guagem, esta é sempre já um efeito de sentido. A filosofia da diferância prefere pois, à noção de sujeito, a de “efeito de subjectividade”, impondo-se como crítica da noção de reflexividade e do seu fundamento metafísico. Assim e desde logo, a brecha aberta na identidade vem dessa interrogação da relação a si do sujeito. Nessa relação a si, Derrida vê já a instauração da diferância, isto é, de uma traça ou princípio de alteridade que descentraliza o sujeito e o retira da hipóstase subs- tancialista (Nancy, 1989). Aquilo que se entende por sujeito é antes da ordem da não coincidência a si, da não origem absoluta, e da não presença a si de uma consciência total (1989: 98).

A partir da abordagem filosófica de Derrida, poderemos dizer que o que as “filosofias da diferença” tendem a apontar e a desconstruir na reflexividade é a própria noção abrangente de presença. Não que ela deva ser negada ou eliminada mas porque não pode ser entendida senão na articulação estreita e constante com a de ausência: a desconstrução da presença faz-se, antes, pelo encavalitamento

indissolúvel dos dois opostos. Assim, a formação da subjectividade é algo de com- plexo, não excluindo a interioridade do sujeito, ela deve passar imperativamente por uma exterioridade fundadora.

Por outro lado, a relação com o corpo não é imediata: a imagem própria é sem- pre segunda relativamente à imagem de outrem. É preciso passar pelo Outro para devir próprio. Michel Thévoz dá um contributo muito claro para a compreensão da desconstrução da subjectividade como identidade a si em Derrida ao afirmar o seguinte: “A auto-identificação especular só intervém num segundo momento e retroactivamente, e somente no ser humano; ela ilustra de uma forma exemplar o que Jacques Derrida entende por ‘secundaridade original’.” (1996: 19) É ela que vai permitir a construção de uma imagem de si, imagem que, embora reflexa, cons- titui-se sempre através do outro. O reconhecimento dos dispositivos de media- ção torna a reflexão um acto não imediato mas mediado, complexo, enquanto a perspectiva metafísica vê nesse acto fundador da reflexividade a presença a si do sujeito absoluto. Interrogando a reflexividade como fundadora do sujeito, a filo- sofia derrideana vê no reflexo uma estabilização da imagem e do sujeito que não corresponde à instabilização existencial dessa singularidade. Há como que uma incapacidade de apropriação totalizante da identidade.

A noção de retenção permitirá, de uma forma frutuosa, rever a crítica à meta- física do sujeito e introduzir, ao mesmo tempo, a questão da temporalidade na sua formação, já que a retenção se pode definir, e esta definição remonta a Hus- serl, como marca presente do tempo passado. Derrida lê em Husserl essa aglo- meração entre o presente do agora e o passado, entre a percepção e a não-per- cepção, entre a percepção presente e a sua retenção como lembrança (Derrida, 1967: 67/77). Bernet, no seguimento de Derrida, fala de uma consciência de si retencional, isto é, de uma apreensão diferida e não objectivante da vida do sujeito que contrapõe à vertente metafísica que, ela, exige “a evidência abso- luta e imediata do cogito reflexivo” (1994: 288). A noção de retenção, porque faz intervir o diferimento na consciência presente de si, é não reflexiva. “Ela é cons- ciência do Si na sua duração passada e não de um Si actual” (ibid). Mas como a retenção não é tão pouco um acto objectivante – só um diferimento – esse Si não é objectivado: “Na retenção, a consciência permanece consciência do que já foi, já não o sendo, sem o reviver de novo sob a forma de uma re-lembrança” (ibidem). Há portanto uma movimentação e uma mudança constantes caracteri- zadas por essa incoincidência fundadora, já que será impossível fazer coincidir os dois termos e portanto obter um sujeito pleno, constituído do seu passado como presente e do seu presente por inteiro. A retenção recusa uma apreensão da mesmidade e da permanência da identidade, assegurando, no entanto, uma

ipseidade. Aquilo em que consiste a proposta filosófica de Derrida é no facto de evidenciar que a constituição identitária não se faz na pura interioridade do mesmo – apreensão do seu próprio pensamento; escuta da sua voz interior – mas sim, num desvio pela exterioridade do signo, da traça. Há impurezas na mesmidade, há mediações exteriores: as próprias marcas mnésicas, reten- cionais, são incoincidentes com o presente do sujeito. A imediaticidade pura, como a intuição pura são termos de uma perspectiva idealista da formação da subjectividade. Para regressarmos à reflexividade, diríamos que ela não é pura. Não há presença pura e absoluta; o espelho tem, para empregarmos a expressão de Rudolphe Gasché (1995), sempre já uma patine.

Para B. Stiegler, entre outros pensadores contemporâneos, a desconstrução da metafísica da presença passa pela interrogação da função do espelho como sua figura por excelência. Na verdade, trata-se de compreender que a total pre- sença a si do sujeito é sempre já impossível, que o espelho aponta desde logo para o desdobramento, para o aparecimento do Outro e que a presença é sobre- tudo desalojada pela retenção. Este mecanismo está presente no funcionamento da memória. Ora, no quadro mental do pensamento identitário, a memória seria o dispositivo de reflexão mais acabado. Uma vez que o sujeito está presente no presente das suas acções, a memória salvaguardaria esse presente para o devol- ver intacto – mas tal não acontece, nem mesmo com a madalena de Proust. Na verdade, a memória é inscrição e não reflexão, diferindo assim no dispositivo que a configura. Ela está subjugada à retenção e não à reflexão. Retém e inscreve algo presente mas como passado, não oferecendo a possibilidade de fazer coin- cidir o presente da presença com a sua rememoração. A retenção abre e exprime esta incoincidência que é também a incoincidência fundadora do sujeito. Daí a autobiografia não ser propriamente reflexiva, como se poderia pensar à pri- meira vista, mas mais de ordem retencional. Daí a impossibilidade existencial de encontrar mecanismos totalmente presenciais. Toda a mediação é retencional. Porque inscritiva, como a fotografia, e outros registos que dizem o eu ou mesmo que dizem eu. A memória, como dispositivo retencional por excelência releva de um procedimento de escrita já que modifica toda a relação do sujeito ao passado, tido como seu, e ao passado geral, o da humanidade. O carácter artificial do dis- positivo retencional da escrita é, como se sabe, posto em dúvida desde Platão até à sua hierarquização em Ricoeur (2000). Este filósofo fala de memória artificial que se distingue da memória natural ou presencial, essa que estaria ligada à expe- riência do sujeito, memória viva.

As técnicas do grafein abrem para uma viragem retencional que interpela os dispositivos de diferimento – operações retencionais tais como a escrita, ou a

assinatura, mas também a fotografia e todo o registo de imagem em geral – onde a inscrição é marca exterior mas, sobretudo, alteridade.

No documento Culturas do Eu (páginas 140-143)