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Os limites da auto-representação

No documento Culturas do Eu (páginas 151-157)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

1.14 Os limites da auto-representação

Instituindo-se como um dos mais eficazes recursos do próprio dispositivo carce- ral, a fotografia contribuiu, tal como outras técnicas criminológicas, para a tipolo- gização do facies, permitindo a percepção de traços comuns – testa alta, cavidades oculares profundas, nariz adunco, etc. – ao que veio a chamar-se o perfil do psi- copata, etc.: “A fotografia torna-se ‘saber sensorial’ aliando-se às práticas do saber médico e psiquiátrico e desdobrando-se em técnicas de vigilância e de registo social” afirma E. Rosa de Oliveira (1984b: 51), fazendo referência às técnicas de vigilância trabalhadas por Michel Foucault. Enquanto captura, é um dispositivo maquínico que prolonga (e não tanto representa) a dimensão de instinto preda- dor relativamente a uma qualquer presa e, nesse caso, aparentada aos dispositi- vos de captura usados na caça: “Ao tropeçar a cada passo com a morte, a figura do caçador evoca a do fotógrafo que ao capturar o fortuito e o que lhe passa resvés, surpreende o real e o resguarda, delimitando-o numa forma-cerco (a moldura)”, diz ainda Emídio Rosa de Oliveira (1984b: 28).

Embora considerada como um dispositivo de captação do corpo-pele e mesmo de captura do sujeito, a fotografia instaura a dessubjectivação do corpo ao des- ligar a imagem das suas marcas identificatórias. Ao corpo-pele (Didier Anzieu, 1995) corresponde o corpo-carne de Bacon, onde o informe suplanta o corpo como forma a que o imaginário liga a própria ideia de si. É-nos possível, a partir desta imagem rude ou cruel do corpo sem pele, descarnado, passar para a problemati- zação do corpo como questão fundadora do próprio sujeito.

A arte contemporânea, ao dar nova ênfase ao auto-retrato, não vem confirmar um retorno do sujeito, uma qualquer primazia do eu como unidade indefectível mas, pelo contrário, questionar os seus limites, encenar a sua falência, visibilizar os jogos de espelhos e o equívoco da representação, da imagem como identitária, da unicidade do sujeito.

A fotografia é a grande desinquietadora da reflexividade e mostra essa fragi- lidade em que assentam as múltiplas experiências que marcaram o finalizar do século XX, em torno do auto-retrato, de que ressaltam algumas referências: Cen- tro Cultural de Belém, 1994: O Rosto da Máscara; Fundição de Oeiras, 1997: Anato- mias contemporâneas; National Gallery, 1998: On Reflection; San Francisco, Museum of Modern Art, 1999: Mirror Images: Women, Surrealism, and Self-Representation; Fun- dação Calouste Gulbenkian, 1999, retratos da colecção própria; Musée du Luxem- bourg, 2004: Moi! – Autoportraits de XXe siècle, ed. Skira. Eis, de uma forma não exaustiva, alguns exemplos de exposições, todas elas, grandes exposições temáti- cas; todas elas expondo o limiar da reflexão e o fim da comemoração identificató- ria. Salientamos, nalgumas dessas mostras, o descentramento do auto-retrato e o surgimento, diríamos, do alo-retrato, nos limites da (auto-)reflexividade.

Cara a Cara é o título de uma dessas exposições, esta patente na Culturgest, em Lisboa, já em Dezembro de 2003. W. Ewing, o seu comissário, expõe (em folha de sala) as razões de tal mostra, considerando que a “cara” pretende constituir a crítica ao retrato que é, na sua tradição, demasiado convencional. Justamente através da fotografia, o corpo veio opor-se ou sobrepor-se ao nu da pintura, assim como então a cara (fotográfica) o faz relativamente ao retrato pictórico. O nu tem uma dimensão picturalista e, no interior da pintura, mitológica, que o corpo na fotografia deixa cair. Nesta exposição, Ewing pretende desconstruir a fotografia como marca de singularidade. Aproveita a técnica para jogar com a identidade até fazer dela algo de falível. Demarca-se e contesta até essa ideologia do retrato como expressão de interioridade do sujeito. Segundo Ewing: “Assume-se e rejei- ta-se como mito a crença ainda fervorosa de que o retrato bem conseguido capta e revela a essência, o ser interior – a alma do sujeito retratado” (2003). Na verdade, a fotografia do rosto pode ser e é manipulada e manipulável. “Abundam as ilusões e as inverdades”, o que provoca a “descrença no valor facial” (ibid), jogo de palavras, que dá bem a dimensão dos investimentos significantes e, consequentemente, do “valor de troca” ou “valor facial” que o rosto possui na sociedade contemporânea. Estamos perante uma nova estética e os modelos deixam de permanecer os mesmos. O rosto é objecto de operações, transformações, implantes, retoques que põem de lado a dimensão “natural”. Ewing descreve então as crenças sobre a cara, contestadas pelos fotógrafos actuais. Tais crenças incidem, globalmente, sobre o valor de exteriorização de uma essência que o rosto e, nele, o olhar, transporta- vam para a ideologia romântica. Pelo contrário, os fotógrafos contemporâneos admitem que a cara é uma superfície moldável, com uma dimensão de máscara sociocultural, facilmente modificável quer pela manipulação cirúrgica quer até pela tecnologia fotográfica ao dispor; e, por fim, que a beleza facial mediatizada

constitui o denominador comum em vez da excepção. Deste sentido comum que o rosto revela e da sua desconstrução, Ewing passa à desconstrução do pró- prio senso comum sobre a fotografia; fotografia e senso comum fundindo-se no próprio termo que os nomeia: cliché. Assim, a fotografia não se dará tanto como captação da alma mas como sua produção; as variadas técnicas de manipulação fotográfica desmentem a verdade fotográfica e abrem as portas à criatividade e à manipulação técnica e mediática. Nesta mesma exposição percebe-se como os fotógrafos contemporâneos apresentam a face de uma forma simples e directa – neutra (Thomas Ruff, às vezes ampliando descomunalmente as fotos); como manipulam a cara, a ocultam, a disfarçam, a pintam, a desenham, como recorrem a sósias, fotografando-a sempre em cara a cara (Royal Family de Alison Jackson); como manipulam o processo fotográfico (tempo de exposição, desfocagem, dupla ou múltipla exposição, retocagem, tratamento informático da imagem) como manipulam as caras (os políticos comovidos de David, Warhead de Nancy Bur- son; os retratos compósitos de casais, de van Lawick & Muller); como manipulam ambas as dimensões, cara e processo fotográfico (as divindades pré-colombianas de Orlan). Todos eles, no entanto, repudiam o retrato convencional.

A fotografia inicial que abre a exposição, feita a partir de 2000 fotos, con- densando os traços nelas comuns é uma espécie de denominador comum da humanidade, que se aproxima da ideia comum de beleza, ela também, feita da síntese desses traços comuns. Outros jogos fotográficos, como a fragmentação e a ampliação suspendem na fotografia o seu carácter representativo ou come- morativo, para lhe conferir, pelo contrário, uma dimensão caricatural ou hiper- -realista. Pode dizer-se que as imagens fotográficas possuem diversos atributos que dependem do olhar do espectador assim como do olhar do fotógrafo. E, mais ainda, que as imagens não são só visíveis, elas tornam-se legíveis. Concluindo com W. Ewing, a fotografia contemporânea, através dos procedimentos utiliza- dos naquela exposição, revela a desfaçatez do rosto – “mas é exactamente essa a intenção: não há nada a dizer, não há nada a esconder, nada para além do que se vê. Não existe enigma, nem máscara.” (2003)

Pela fragmentação do rosto/corpo, pela refiguração ou ficcionalização do pró- prio, pela desfiguração do rosto ou do corpo, pela mumificação, travestimento ou mascarada, pela animalidade, pela dimensão visceral, escatológica, enfim, con- frontamo-nos com o descentramento do sujeito, no limite da auto-representa- ção. Porque um corpo é um limiar, é uma forma; é matéria; é um impenetrável que desde logo desaloja qualquer inconfessável ilusão de interioridade, a qual, no rosto, se marca pelo olhar, pela condensação que este sempre operou na auto-re- presentação – a de incluir, ao mesmo tempo, um exterior e um interior. Trata-se,

globalmente, na experiência do auto-retrato, tal como ele se expõe na viragem do século, do questionamento dessa identidade ilusória, ao mesmo tempo identitá- ria e alienante. O aparecimento do digital e da proliferação de possíveis manipu- lações do rosto anunciam-se desde então.

Mas a interrogação colocada por Lacoue-Labarthe à (auto)-representação não poderia deixar de servir de conclusão à problematização desta questão: “se a arte não existisse, nem sequer poderíamos questionar até à vertigem, o abismo do Mesmo” (1979). Talvez, mais do que nunca, seja essa a função da reflexividade.

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Ao abordar-se os dispositivos de extensão, necessário é colocar a problemática do corpo. Não há sujeito incorporal. É o corpo que ancora o sujeito à sua condição mesma de sujeito. Nessa medida, entender os dispositivos de extensão é pensar o humano na sua corporeidade inerente. É determinar as funções identitárias que a técnica abre ao humano fazendo parte integrante da sua condição de humano.

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