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A Prótese como suplemento

No documento Culturas do Eu (páginas 181-184)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.9 A Prótese como suplemento

A temática das próteses, portanto, assenta na irredutível questão que é a questão do corpo e seus limites, da finitude e dos interfaces que ligam o corpo ao mundo envolvente. A prótese é um acrescento e deve entender-se a partir deste limite, como potenciadora da acção do corpo, como um prolongamento autónomo do sujeito. “Prótese” vem da palavra prothesis – colocar antes, na frente; preposição, termo que significa junção inicial a uma palavra de um elemento, letra, não eti- mológico. A própria etimologia de prótese nos devolve a ideia de um “suplemento de origem”, para utilizar a expressão desconstrucionista de Derrida. Esta difere ainda da ortótese – orthos – direito, que corrige as deformações, dado que não tem a pretensão de domesticar o corpo, exigindo-lhe antes posturas adaptativas. Por outro lado, o termo prótese, no seu sentido corrente, designa um qualquer acres- cento tecnológico ao corpo que vem superar uma falha ou mesmo uma amputa-

ção. Assim a prótese ocular, dental, de membros, ou de órgãos, etc. As próteses como extensões ou como substitutos de membros amputados implicam sempre, algures, uma ideia de falha ou de perda. A prótese incorpora o limite, a falha ini- cial; não é um simples prolongamento (do braço na raquete, por exemplo) mas dá-nos a noção de como o corpo protésico pode potencializar as suas faculdades. O corpo que acolhe a técnica é assim um corpo mutante, que incorpora “marcas, próteses, substituições, metonímias, expropriações” (Derrida, 2000: 247) e, por- tanto, que deixa de ser um limite, uma unidade, uma totalidade fechada. A ques- tão que se coloca portanto, é a de olhar o corpo como apto a definir-se pelo que lhe é exterior. O corpo, neste caso humano, define-se, não só pelas suas propriedades intrínsecas, mas por uma aptidão à adição que é a sua forma de ser afectado pelo meio exterior: corpo aberto ao acolhimento da prótese, do artefacto, do utensílio, do inorgânico como extensão e complemento do orgânico, do inorgânico organi- zado, na formulação de Stiegler (1994).

A paleontologia vem ainda explicar como, esse corpo desmunido mas aberto ao mundo opera uma série de descentramentos e de limitações. Trata-se, na evo- lução do ser humano, de uma série de libertações sucessivas operadas no corpo que provocam mutações várias no próprio ser humano. A do corpo em relação ao ambiente líquido, a da cabeça em relação ao solo, a da mão em relação à locomo- ção, a do cérebro, que aproveitou dos progressos da adaptação locomotora e não o contrário, em relação à máscara facial. A da mão, em relação à palavra, dado que a boca tinha por função primeira a preensão. Quer o sujeito se defina pela exterioridade constitutiva do outro, quer pela abertura vazia da sua interioridade, há, por certo, um espaçamento irredutível, que nenhum preenchimento poderá nunca tornar pleno. Mas, tal libertação do corpo tem como corolário a incorpo- ração sistemática da prótese, ou de extensões que favorecem e potencializam as performances do sujeito, como vimos afirmando. A paleontologia ocupa-se jus- tamente de analisar a evolução dos utensílios, desde a mais rudimentar forma de sílex, definindo o humano nessa dependência estrutural das extensões que configuram culturas e etnias. O utensílio é realmente uma prótese que, apesar de acoplada, difere do corpo, embora acabe por ser um corpo estranho naturali- zado. Ele exerce uma acção sobre o próprio corpo que não é de subestimar. Não morrendo com o corpo, também não se transmite por hereditariedade mas sim por herança, o que quer dizer que exterioriza e realiza as performances huma- nas não as fazendo depender das propriedades intrínsecas ao próprio corpo. Não sendo abandonado ou retomado ocasionalmente, nem tão pouco herdado gene- ticamente, o utensílio tem uma dimensão estruturante na constituição e aptidão do corpo e também do humano. Ele transmite-se, sim, de geração em geração,

aperfeiçoado, o que introduz, desde logo, a ideia de cultura como campo de exte- rioridade e como possibilidade de fixar e transmitir um adquirido, num tempo autónomo da vivência do sujeito. A especificidade biológica do humano mani- festa-se na criação do utensílio artificial, inorgânico, permitindo diversificar ao infinito o esforço e os resultados. É a capacidade de explorar, acoplando, o inor- gânico que acaba por definir o orgânico. O processo conhecido por hominização não se caracteriza pelo aparecimento de uma espécie nova mas antes pelo apare- cimento de uma nova forma de vida. Para Bernard Stiegler, o problema colocado pela paleontologia e nomeadamente por Leroi-Gourhan, carece de análise bem sustentada, pelo que transpomos aqui a sua argumentação:

“é o da evolução não somente biológica desse ser essencialmente técnico que é o homem, apesar da dimensão zoológica ser uma parte essencial do próprio fenómeno técnico e como que o seu enigma. É a evolução da ‘prótese’ que não é nela mesma viva, e pela qual o homem se define no entanto enquanto ser vivo, que constitui a realidade da evolução do homem, como se, com ele, a história da vida devesse prosseguir por outros meios que não a vida: é o paradoxo de um ser vivo caracterizado nas suas formas de vida pelo não-vivo – ou pelas marcas que a sua vida deixa no não-vivo” (1994: 64).

Esta exterioridade que parece desumanizar o humano retirando-lhe a aura que transporta desde a renascença, é, na sua relação e performatividade com o próprio corpo do indivíduo, aquilo mesmo que permite ao humano desenvolver a sua humanidade, seguindo no caminho aberto ao meio, ao outro, ao mundo como parte imprescindível da sua própria constituição.

Por outro lado, na investigação levada a cabo sobre as transformações opera- das no corpo pela descoberta e utilização do utensílio, Serge Tisseron, evocando Leroi-Gourhan, considera que “o utensílio não modifica somente a mão e o cór- tex frontal, ele modifica também as condições de gestão pessoal das experiências vividas por cada um e dos sentimentos que configura, a partir delas, cólera, ter- nura, emoção estética, amor...” (1999: 63). Quer isto dizer que, na longa história do corpo face aos objectos, há uma interacção constante de modo que o corpo se relaciona não de uma forma opositiva ou dualista com o utensílio mas inte- grando as próprias funções do objecto que entretanto lhe determinam e alteram a própria postura. Digamos que há, entre o corpo e o utensílio, sempre houve, um fenómeno que é da ordem da incorporação. O corpo incorpora as próteses e suas funções sendo sempre, desde logo, um corpo culturalizado. O corpo deixa de ser natureza pura, dada a sua aptidão à incorporação, pela experiência: “O mundo

social, o mundo psíquico e o mundo técnico desenvolvem-se ao mesmo tempo, à medida que o ser humano simboliza as suas experiências do mundo, /.../” (1999: 64). O sujeito tem no corpo o operador de uma mediação com o mundo, como vimos, e que é um espaço fusional, de indistinção, de ambivalência entre natu- reza/cultura. SergeTisseron, distingue, na função de simbolização, a interme- diação da linguagem, da imagem e do gesto, considerando que: “enquanto pela linguagem se opera uma simbolização que distancia, pelo gesto a simbolização ‘instancia’” (1999: 60). Ora, o gesto releva exactamente dessa fusão do corpo com o espaço envolvente, na sua dimensão cultural naturalizada ou natural culturali- zada. Quer isto dizer que a natureza é desde logo um constructo, que é impossível dissociar do meio, do tempo, das mediações.

Mas, para além disso, a prótese pode ainda ser concebida como substituto de um membro ou órgão em falta, referido atrás. A prótese substitutiva marca uma amputação, uma ablação e assume-se como incorporação de um disposi- tivo substitutivo da função perdida ou enfraquecida. As próteses biónicas, entre o biológico e o electrónico, são muito elucidativas do grau ou estatuto das novas substâncias artificiais que podem ser incorporadas no organismo. Não se trata já ou unicamente de “hightech”, cujo circuito tecnológico é orgânico, e integra já uma forma de biotecnologia. Tais próteses que, para além da função utilitá- ria que podem cumprir, potenciando os membros e órgãos ou substituindo-os, revelam-se estigmas de acidentes no corpo, irrecuperáveis do ponto de vista da organicidade da carne, vêm sendo cada vez mais inseridas numa certa estética do corpo dito pós-humano, que não só as incorpora como lhes concede uma dimen- são afeccional e até estética.

No documento Culturas do Eu (páginas 181-184)