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O espelho como presença

No documento Culturas do Eu (páginas 117-119)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

1. DISPOSITIVOS DE REFLEXÃO

1.3 O espelho como presença

Do vampiro se diz que não reflecte nunca a sua imagem no espelho. Tal especifici- dade deste ser ambivalente advém-lhe da sua natureza espectral. Como é sabido, a mitologia do vampiro define-o como morto-vivo; como um corpo sem vida pró- pria, alimentando-se, por isso, de sangue, do princípio de vida alheio. Assim, o corpo espectral seria essa conjugação paradoxal entre o corpo (vivo) e o morto ou a morte. Ora, quando falamos de corpo, subentendemos naturalmente o vivo, a vida desse corpo. O que esta crença ou manifestação de crença, vinda lá dos Montes Cárpatos e perpetuada pelo escritor irlandês Bram Stoker, nos diz é que – abstraindo agora da natureza paradoxal de um corpo que se apresenta, mesmo sem vida – a reflexão só é possível na presença, enquanto presença. O espelho, dispositivo de reflexão, garante a imagem na presença do modelo, do corpo; a imagem que é reproduzida pelo espelho está intrinsecamente ligada à condição de presença do corpo. Uma vez ausente da frente do espelho, o corpo deixa de se reflectir nele, apagando-se qualquer traça da sua presença. Tanto o corpo vivo,

como, em última análise, qualquer corpo opaco: um objecto inerte. Como Alice, deparamo-nos, face ao espelho, com uma imagem de características especiais. Uma imagem fugaz, uma imagem efémera, uma imagem que, como se disse, só a presença do corpo face à superfície de reflexão garante enquanto imagem. Ao contrário da variedade dos suportes com os quais convivemos diariamente, que conservam essas imagens, as registam, as imagens especulares, essas, duram o tempo da própria reflexão. São imagens sem inscrição, sem registo; insaisissables, neste sentido, evanescentes. Daí o imaginário que à volta delas fabrica esse mis- tério, essa estranheza, esse acto sempre inesperado e jubilatório do seu apareci- mento. Daí a crença no estatuto não reflector desse morto-vivo que dá pelo nome de Conde Drácula.

Só haverá uma outra projecção do corpo que tem este estatuto de efemeridade equivalente à da imagem especular: a sombra. A sombra que um corpo projecta quando iluminado por um ponto de luz. Por isso se fantasia também, relativa- mente à sombra como duplo, etc. O duplo é um outro efeito da presença da vida nessa imagem que assim se anima. Que essa imagem seja em tudo igual ao seu modelo; que a mesma vida, a mesma alma a mime, a criação do duplo abre para a possibilidade da existência do mesmo, do idêntico, da reduplicação. Essa quase replicação da imagem especular relativamente ao seu modelo permite ainda a abertura ao imaginário do duplo de que o retrato de Dorian Gray é o exemplo por excelência. Nele, a representação ganha vida, ganha a vida que o modelo vai perdendo. É a imagem que, curiosamente, vampiriza o corpo do personagem, ali- mentando-se, senão do seu sangue, pelo menos da sua vida enquanto passagem do tempo, experiência vivida, envelhecimento do corpo. Imagens espectrais.

É que a imagem, toda a imagem, tem um estatuto semiótico singular: ela exige uma superfície de projecção, um suporte material. Mas, naturalmente, quando falamos de imagem, entendemos um qualquer processo de representação: a pin- tura como o desenho são procedimentos de representação (da realidade, consen- sualmente) que inscrevem e portanto fixam a imagem. As imagens que consti- tuem a nossa cultura são fixas, mesmo as do cinema que, tendo movimento, estão no entanto inscritas em sequência numa superfície. É que, o carácter icónico das imagens não dispensa a fisicalidade da sua pertença a um momento indicial, a uma qualquer inscrição ou fixação. Mas tendemos a olhar para toda e qualquer imagem como guardando ainda e sempre esse momento de inscrição: toda a ima- gem é idolatrada na medida em que nela prevalece a evencialidade do acto de presença. O mistério da presença, do toque, do ter estado lá, é a vulgar definição da imagem fotográfica, tal como Barthes a definiu.

A cultura ocidental funde, a este respeito, duas vertentes distintas: por um lado as imagens sagradas que emergem no cristianismo (a iconoclastia judaica não será uma versão repressora da compulsão à idolatria?) e, por outro, a ima- gem-tipo da mitologia grega. As imagens sagradas, como os ícones religiosos, possuem essa sacralidade pelo facto de estarem ligadas ao divino como presença, como encarnação. A Verónica e o Sudário são excelentes exemplos desse acto único e indelével da presença do divino inscrita no tecido que lhe envolveu o corpo, ele próprio transubstanciado. Sendo estes casos paradigmáticos, eles ser- vem de referência ao estatuto de toda a obra religiosa: reflexo de Deus. Quer dizer que a perspectiva pela qual a imagem – primeiro sagrada, depois des-sacralizada – entrou na cultura ocidental foi sempre, antes da representação, a da a-presen- tação como impregnação da presença. E, nessa medida, toda a imagem sagrada é, por assim dizer, na sua origem, uma imagem especular de que o pintor ou o artista é puro mediador. O seu sentido último remete para esse gesto original que não se apaga nunca, que prevalece como presença. Cabe aqui perguntar se a iconoclastia judaica interdita a imagem pela mesma razão, isto é, pela crença, justamente de que essa imagem guarda algo da presença interdita de Deus. É que o judaísmo confere um poder sacralizador à própria representação (Jabès, 1984: 16). Também Lévinas define o estatuto da representação da seguinte forma: “…na presença que esta não cessa de renovar se cumpre sempre a adequação do pensa- mento ao seu outro…” (ibid, p.110). O espelho aparece, então, como o paradigma da representação e, nela, como efeito de presença. Mas à perspectiva cristã asso- cia-se uma outra, de cariz mitológico.

No documento Culturas do Eu (páginas 117-119)