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CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDENTIDADE À LUZ DA ALTERIDADE

No documento Culturas do Eu (páginas 30-33)

Aquilo para o qual se pretende alertar, neste primeiro momento, é a viragem que o pensamento filosófico sobre o sujeito efectuou na modernidade questionando o princípio da representação e, na sua forma mais absoluta, o princípio da refle- xividade pura.

O princípio da representação, assente na ideologia da mesmidade, sempre incutiu a ideia de que era possível a reprodução do modelo, fosse ela a do outro ou a do próprio. É que a ideologia da representação confunde-se precipitadamente com o efeito de reprodução, clonagem. Ora, para haver representação exige-se distância, presença à distância, ausência. A representação do mesmo e, no caso, a reflexividade não estão tão isentas assim de infiltrações, de brechas por onde emergem, desde logo, sinais de alteridade: do corpo para a tela; do gesto que assina para a marca dessa assinatura; do corpo que vê para a sua reflexão como corpo visto. Ao princípio da igualdade que diz a identidade das entidades corresponde o princípio da diferença que intercala a alteridade entre modelo e representação, entre representante e representado.

Partir do princípio de que a mesmidade não é englobante dos processos de subjectivação que, ao desenvolverem-se, instalam, arrastam como que uma alte- ração ínfima na subjectividade, um grão diferencial por ínfimo que seja, equivale a dizer que todo o mesmo é sempre já também outro e que toda a identidade releva da alteridade. É esta a desconstrução que opera Jean-Luc Nancy a propósito de Descartes, quando afirma que, se a psicanálise lacaniana defendeu claramente que o moi não coincide com o je, a redução imediata deste enunciado é que o ver- dadeiro ego é o je. O próprio Lacan chamou a atenção para esta redução. Aí reside o equívoco do mesmo e do outro. Não há uma instância, seja ela discursiva, mais ou menos verdadeira do que outra: “1) o ego é esse outro que é também o mesmo/…/” (Nancy, 1979: 25 – nota 19). Para Nancy, pois, o ego nem é totalmente o je nem totalmente o moi. Ego será, então, aquele que ao mesmo tempo se enuncia e se denuncia (Nancy, 1979: 24).

Essa suposta interioridade que se pensa como anterioridade metafísica do sujeito só é perceptível nas várias configurações que lhe dão corpo, sempre “um murmúrio, sempre inactual” (ibid). Antes de pensar o outro como o absoluta- mente outro, assente, também ele, numa identidade do mesmo, falta indagar se os processos fundadores da identidade, quer eles se verifiquem na linguagem, na imagem ou na marca em geral, não serão, desde logo, corroídos por aquilo que nunca poderá ser da mesma ordem, da mesma natureza. Quando me nomeio, me vejo, me represento, me inscrevo, sou ainda eu ou inevitavelmente já outro?

Paradoxo máximo da auto-reflexividade: a emancipação do sujeito face à ima- gem ou, dito de outro modo, a exterioridade máxima da imagem face ao sujeito. “Ver-me de fora” como lucidamente afirma Pessoa/Bernardo Soares. O próprio fenómeno de reflexividade supõe sempre um deslocamento do campo da visão, o que não acontece com a representação comum a qual pode incluir-se na direcção da visão: vejo uma paisagem e, ao vê-la, represento-a, alterando-lhe a escala, etc., mas mantendo o mesmo campo de visão. Pelo contrário, a reflexividade, como aliás toda a reflexão, assenta num paradoxo: a visão, para mudar de campo, para ver aquilo mesmo onde se insere necessita de opacificar o campo de visão e tor- ná-lo ecrã reflector, impedir a linha de fuga do olhar fazendo-a retroceder; exige como que uma reduplicação do olhar, um dispositivo opaco que lhe devolva a imagem como se o próprio olhar, autonomizando-se e saindo para fora do corpo, se pudesse, só então, apropriar dele. A auto-reflexividade, a experiência aparen- temente mais autêntica da representação, exige sempre, no entanto, da parte do próprio, o recurso a um dispositivo de mediação, além de exigir um movimento de projecção, de exterioridade que subverte já, no próprio acto em que se produz, a identidade pura. Voltaremos a esta questão adiante. Mas fica desde já a refe- rência a Husserl que Derrida convoca a propósito desta espessura da mediação especular:

“… esta mediação do espelho, que não pertence ao meu próprio corpo, tor- na-se ‘técnica’ em razão da via indirecta que introduz e coloca-me face aos meus próprios olhos como em face dos olhos do outro, fazendo apelo a pro- cessos de intropatia, a saber de apresentação analógica privados de qualquer intuição plena, originária, imediata” (2000: 195)

Dotada de uma proximidade táctil – háptica – a imagem especular revela-se, neste reenvio óptico, como estranha ou alter-ada.

Ora, a aporia dos processos identificatórios, levada às suas últimas conse- quências, redunda numa outra determinação que se transforma no próprio tema/ sujeito da questão e que é curiosamente a questão-sujeito, a questão do sujeito: assim, aquilo que aqui se joga, nesta inconciliação entre modelo e cópia, repre- sentante e representado, sujeito e auto-retrato, é a questão da presença-ausência do sujeito. É que a representação, inscrita na tela, mas também no papel fotográ- fico, torna-se registo, autonomia, exterioridade pura. A designação de fantasma aplicada por Platão à technè – imagem mas também escrita – como procedimento de exterioridade, dá-nos essa ideia da diferença entre a presença viva do sujeito e a sua ausência como vivo: espectro. O fascínio que é, ao mesmo tempo, eu e

outro, vertigem, dissolução, im-pessoalidade. Como diz José Gil, “assim, no auge da coincidência volta a surgir a iminência (da coincidência) que é diferença, estra- nheza máxima na máxima semelhança, alteridade. Nela, é o outro, o espectador que olha, que se introduz. Ele está já no olhar do pintor que se olha.” (1994: 48). Daí que, em última análise, não haja reflexividade pura mas tão só auto-representa- ção (em abismo) dado que a incoincidência entre o sujeito e a sua representação é de lei. Não há, portanto, reflexividade pura mas representação como mediação e distanciamento: alterização. Como refere J.-L. Chédin a este propósito (1997), a representação implica sempre uma distância, uma relação indirecta já que ela passa pela mediação, por um qualquer dispositivo de mediação. Neste sentido, não há decalque – reflexividade – mas antes des-locação.

Desde os conceitos freudianos de narcisismo como “experiência jubilatória” e de “inquietante estranheza” que alia ao mesmo o já-outro, um salto foi dado pelo modo como a cultura contemporânea experiencia a reflexividade. A desco- berta freudiana do inconsciente não é senão a abertura a esse outro de si mesmo, desconhecido, diferente: o id. Ora, com Freud, o sujeito descentrado deixa de ser instância plena, fundadora: o sujeito da consciência. O Outro, como desconhe- cido – ça, id – opera a estratificação do sujeito e o fim da identidade unária. Se ao sujeito lhe está vedado o Outro, o inconsciente enquanto inacessível, pois só aquando da quebra do recalcado emergindo à consciência é que o sujeito se torna consciente desse fenómeno, pelo menos é-lhe possível reconhecê-lo em determi- nados momentos como seja os da actividade onírica.

É pois, à psicanálise, nomeadamente lacaniana, que revém a crítica à unidade do sujeito, a partir da instância da enunciação, interrogando aquilo mesmo de que parte, a saber, o sujeito linguístico. A crítica lacaniana tem como alvo a unidade do sujeito cartesiano e opera um descentramento nessa mesma unidade através da cisão entre o je e o moi (o eu da enunciação e o eu objectivado: complemento de objecto). Lacan parte da fórmula cartesiana como apogeu da transparência entre o sujeito pleno, identitário, e o sujeito da existência. É a coincidência destes dois estatutos do sujeito que põe problema, demonstrando Lacan a sua incoincidência fundadora: trata-se de saber se, quando falo de mim, sou o mesmo do que aquele de que falo, donde resulta que: “eu penso aí onde não estou e portanto estou onde não penso” (1966: 277).

O sujeito da psicanálise – o sujeito lacaniano – é uma cisão, uma brecha, um sujeito unário, já que o “núcleo do nosso ser não coincide com o moi” (Lacan, 1978: 59). O eu inconsciente não coincide com o eu imaginário, nascendo assim toda uma topologia do sujeito nas variantes: eu/ isto/ mim. A leitura lacaniana de Freud fixará a clivagem do sujeito na tópica do inconsciente até à discussão

contemporânea, encetada pelas ciências cognitivas. A analítica do eu desenhou-a Lacan na reelaboração da tópica freudiana que é uma estratificação do sujeito. Lacan irá operar a triangulação do sujeito freudiano, já de si composto de três estratos, o id, o ego e o super-ego, projectando-o nas três instâncias Real, Imaginá- rio e Simbólico. Da articulação entre as três instâncias nunca obteremos, porém, um sujeito fundido. O eu será sempre acossado pelos as, pequenos outros – objec- tos do desejo – ou por A – o grande Outro, a linguagem, o Significante – com o qual manterá uma clivagem constante.

As identidades podem tomar a forma de nomes, de máscaras, de estatutos, etc., que se confrontam com as alteridades. A subjectividade, enquanto processo de subjectivação, é sempre dinâmica. Como conclusão a esta introdução à sub- jectividade, dir-se-ia que o implícito que sustenta a diversidade de manifestações será surpreendentemente, ou talvez não, o princípio da alteridade como des- construção da identidade. Dois fundamentos podem ser apontados às filosofias do sujeito: o da mesmidade, produzindo a noção forte de identidade, de sujeito pleno; o da alteridade, descentrando o sujeito, estratificando-o e espaçando toda e qualquer cópia do seu modelo, lendo a duplicação, não como reprodução do mesmo mas como princípio de repetição do mesmo enquanto outro. Esta alter- -ação na máquina reprodutora inscreve a alteridade como fundadora da identi- dade, através de descentramentos ínfimos.

No documento Culturas do Eu (páginas 30-33)