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O auto-retrato como representação do eu

No documento Culturas do Eu (páginas 125-130)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

1. DISPOSITIVOS DE REFLEXÃO

1.6 O auto-retrato como representação do eu

A relação ao corpo sempre passou por mediações, por dispositivos de repre- sentação. A pintura, a fotografia, o vídeo interpõem-se entre o sujeito e o corpo inscrevendo este em representações moldadas, formatadas. Há como que uma mediação entre sujeito e corpo que se estabelece por meio de tecnologias de representação. As imagens impõem-se como prefiguradoras do corpo próprio. O espelho, mediador por excelência dessa relação, funda, como vimos, a própria identidade. A partir da modernidade essa relação especular que deu origem ao auto-retrato fundou uma tradição das figurações do corpo. Há uma tradição da experiência reflexiva que culmina no romantismo e que tem como marca a frui- ção da imagem; o sujeito revê-se na imagem e o auto-retrato, na pintura, começa

por dar conta dessa identificação do sujeito com a imagem. A operação identitária joga-se na contemplação da imagem cumprindo a função de uma identificação idealizante. A pintura condensará esse efeito de instauração do sujeito, conferin- do-lhe um estatuto e uma identidade indesmentíveis.

A reflexão não coincide exactamente com a representação pictórica. Transpor- tá-la para dentro da tela exige pois duplicações e efeitos. O auto-retrato é um deles. Em princípio, todo o auto-retrato requere uma operação prévia de reflexão mas que se encontra fora da representação. Assim é no auto-retrato comum. O que é um facto é que a arte, desde a época moderna, usou o espelho como dispositivo garante da identificação do sujeito, assegurando-lhe uma confiança identitária, segundo António Rodrigues, (1994: 17). Na verdade, o auto-retrato moderno é “comemorativo”, no sentido em que fixa a imagem do eu, como no retrato român- tico, conferindo-lhe uma realidade imutável.

Configurada no retrato, a pintura pode ser considerada como um dispositivo de acesso ao corpo e funciona como procedimento de subjectivação, num jogo subtil de presença-ausência. O sentimento que um rosto transporta será a indes- mentível tarefa da pintura que se exprime no auto-retrato como representação por excelência do si mesmo, particularmente na representação do rosto e do olhar como “espelho da alma”. A reflexividade aponta, como se viu, para um efeito de transparência que tende a reforçar a identificação. Para José Gil, a representação ausenta aparentemente o outro; a representação seria assim o recentramento do mesmo, a mesmidade do mesmo, captada por inteiro e no seu próprio interior. O olhar reflui, como se da visão do mundo exterior pudesse des-centrar-se para ver-(se) interiormente. A auto-representação coloca o olhar em circuito fechado. É este entendimento do auto-retrato como auto-representação que funda a visão idealista do mesmo para Gil (1994). O auto-retrato ausenta o Outro da cena. Mas, paradoxalmente, segundo Gil, o centro do auto-retrato, que se quer essa interiori- dade do dentro, esse inefável que é a alma, salta para um fora, como condição do próprio auto-retrato. E é sujeito a um processo de metonimização: do corpo, o rosto, do rosto, o olhar e dessa a alma, assim procederia o auto-retrato para agar- rar o dentro a que ele, por definição sempre aspira. Portanto, o dentro revela-se um fora, um máximo de exterioridade que se projecta na tela como o seu irredu- tível corpo.

Philippe Lejeune, especialista das práticas autobiográficas, coloca ao auto-re- trato duas questões aparentemente inocentes: “Como se reconhece um auto-re- trato?” e “Qual o interesse de o contemplar?” (Lejeune,1986: 73). Para defender que, ao contrário por exemplo da autobiografia em que a instância da enuncia- ção se enuncia, o auto-retrato não possui qualquer marca interna de enunciação:

Norman Rokcwell, “Triplo Auto-retrato” (capa do The Saturday Evening Post, publicado em 13 deFevereiro, de 1960.)

“não há signo interno”. E, nessa medida, segundo ele, poderia ser sempre inte- grado no género retrato, pois não possui nenhum traço distintivo – a instância enunciativa. É que Lejeune considera que cabe ao paratexto, neste caso ao título e à assinatura, estabelecer a diferença. Mas, apesar de tudo, Lejeune considera existir um “efeito auto-retrato” que passa pela própria representação do acto de pintar. Como reconhecer o pintor senão quando ele pinta? Pintar-se pintando por dar conta dessa identificação do sujeito com a imagem. A operação identitária

joga-se na contemplação da imagem cumprindo a função de uma identificação idealizante. A pintura condensará esse efeito de instauração do sujeito, conferin- do-lhe um estatuto e uma identidade indesmentíveis.

A reflexão não coincide exactamente com a representação pictórica. Transpor- tá-la para dentro da tela exige pois duplicações e efeitos. O auto-retrato é um deles. Em princípio, todo o auto-retrato requere uma operação prévia de reflexão mas que se encontra fora da representação. Assim é no auto-retrato comum. O que é um facto é que a arte, desde a época moderna, usou o espelho como dispositivo garante da identificação do sujeito, assegurando-lhe uma confiança identitária, segundo António Rodrigues, (1994: 17). Na verdade, o auto-retrato moderno é “comemorativo”, no sentido em que fixa a imagem do eu, como no retrato român- tico, conferindo-lhe uma realidade imutável.

Configurada no retrato, a pintura pode ser considerada como um dispositivo de acesso ao corpo e funciona como procedimento de subjectivação, num jogo subtil de presença-ausência. O sentimento que um rosto transporta será a indes- mentível tarefa da pintura que se exprime no auto-retrato como representação por excelência do si mesmo, particularmente na representação do rosto e do olhar como “espelho da alma”. A reflexividade aponta, como se viu, para um efeito de transparência que tende a reforçar a identificação. Para José Gil, a representação ausenta aparentemente o outro; a representação seria assim o recentramento do mesmo, a mesmidade do mesmo, captada por inteiro e no seu próprio interior. O olhar reflui, como se da visão do mundo exterior pudesse des-centrar-se para ver-(se) interiormente. A auto-representação coloca o olhar em circuito fechado. É este entendimento do auto-retrato como auto-representação que funda a visão idealista do mesmo para Gil (1994). O auto-retrato ausenta o Outro da cena. Mas, paradoxalmente, segundo Gil, o centro do auto-retrato, que se quer essa interiori- dade do dentro, esse inefável que é a alma, salta para um fora, como condição do próprio auto-retrato. E é sujeito a um processo de metonimização: do corpo, o rosto, do rosto, o olhar e dessa a alma, assim procederia o auto-retrato para agar- rar o dentro a que ele, por definição sempre aspira. Portanto, o dentro revela-se um fora, um máximo de exterioridade que se projecta na tela como o seu irredu- tível corpo.

Philippe Lejeune, especialista das práticas autobiográficas, coloca ao auto-re- trato duas questões aparentemente inocentes: “Como se reconhece um auto-re- trato?” e “Qual o interesse de o contemplar?” (Lejeune,1986: 73). Para defender que, ao contrário por exemplo da autobiografia em que a instância da enuncia- ção se enuncia, o auto-retrato não possui qualquer marca interna de enunciação:

Norman Rokcwell, “Triplo Auto-retrato” (capa do The Saturday Evening Post, publicado em 13 deFevereiro, de 1960.)

será pois a instituição de uma retórica do auto-retrato que se inscreve no interior da tela, na própria mancha pictórica. Este fenómeno que invade o auto-retrato a partir da época moderna, é aliás complemento de um outro género comum que é a representação do atelier de artista, onde justamente a figura do artista pode estar ausente para surgir o material e a pintura como o próprio tema da tela. Ao contrário do que defende Lejeune, o que justamente se joga no auto-retrato como efeito é a própria pintura como representação, quer dizer, o próprio acto de enunciação. Se, por um lado afirma: “Se o pintor aparece a pintura desaparece” (1986: 82), é para logo a seguir emendar: “o pintor está, na pintura, duplamente presente: como personagem representado e pela própria pintura” (ibidem). Dupla aparição, portanto, na representação e na própria apresentação. O que nos traz esta reflexão, para além da própria configuração identificatória, é uma espécie de transcendência da prática em que, para além da figura a pintura se transforma numa “luz que dá a ver de forma vertiginosa a essência da arte”, “o auto-retrato tornando-se alegoria da própria arte” (1986: 80).

Exemplo marcante é o O triplo auto-retrato, de Rocwell que poderemos definir como uma mîse-en-abyme da auto-representação. Antes de mais, e recorrendo à perspectiva pragmática de Lejeune, o que faz desta pintura um auto-retrato é a assinatura. Depois, o título que funda a relação do retrato com o seu refe- rente. O título instaura o regime sígnico de leitura, a relação ao referente, indi- cando que a representação se instaura desde logo com o próprio pintor. Mas, esta pintura, na sua especificidade muito própria, instaura múltiplas relações, saturando a própria representação. Assim, o 1º nível de representação é, dir-se-ia, a representação de si, de costas voltadas para o espectador. Esta representação, embora directa, pode pressupor um espelho reflectindo aquilo que o pintor não vê de si; de seguida, a representação do espelho como dispositivo por excelência de mediação da própria pintura e que é o garante da própria exequibilidade do auto-retrato, dado que o modelo não se vê a ele próprio directamente. Este nível de representação, que seria da ordem da apresentação dada a superfície reflec- tora o ser provisoriamente, está normalmente elidido da representação, embora toda ela, quando auto-reflexiva, o suponha. É de salientar como traço irónico, o cachimbo levantado e a ausência de óculos na representação, assim como a pro- fusão de suportes da pintura como técnica: banco, cadeira, cavalete. Outros traços secundários ajudam a “fechar” a representação: a águia encimando o espelho, o capacete encimando a tela. Mas as remissões à própria pintura vão mais longe: como ante-texto (Lejeune, 1986: 77) adivinha-se um croquis da própria represen- tação, pregado do lado esquerdo da tela e o recurso às figurações intertextuais pelas citações de auto-retratos famosos: Dürer, Rembrandt, Picasso, Van Gogh.

Esta alusão, ao legitimar o auto-retrato, vem também enformar, codificar a repre- sentação de si, formatando-a a partir da representação dos outros. Daí que note- mos explicitamente o abismo entre a figura reflectida no espelho e aquela que vai surgindo na tela. O écart vem, por exemplo, da ausência dos óculos. O olhar torna- -se então o objecto por excelência da representação de si, não podendo falhar pela ocultação que os óculos trariam ao suposto referente.

Estamos perante a passagem da reflexão à sua representação. A pintura, neste sentido, é ilusória, porque inscreve o representado enquanto dimensão icónica, imagem. E esta representação dá-se em abismo. A cópia e o reflexo, a imagem como fantasma, a representação da representação.

Esta é talvez a condição do auto-retrato na arte contemporânea, em que nem o espelho, nem a própria auto-representação devolvem imagens jubilatórias, iden- tificatórias, ou porque elas questionam a subjectividade ou porque procuram mesmo desmontar os processos identificatórios através do seu questionamento, da visibilidade desses processos enquanto unificadores do eu. Na verdade, o que o auto-retrato contemporâneo vem trazer à cena da representação é o seu próprio limite, enquanto desdobramento infinito da cena e dos seus bastidores. Daí tam- bém o carácter evanescente da própria representação, das figuras que se tornam cada vez mais opacas, tomando a representação uma dimensão metadiscursiva, que resulta dessa/nessa mîse-en-abyme. Se a auto-representação se dá a ver na arte contemporânea, podemos dizer que o seu enquadramento e a sua dimensão significante são claramente de outra ordem. Ela suscita a interrogação da própria figuração e da pintura como representação. Ao falar do próprio, é o Outro que emerge na própria representação, desfigurado, evanescente, ironizado ou paro- diado, mascarado ou travestido. Trata-se já de uma assunção do próprio disposi- tivo da representação como re-figurador ou mesmo des-figurador do sujeito. O auto-retrato perdeu a sua inocência romântica; ele é hoje a própria assunção da máscara, uma lucidez ganha aquando da própria perda da representação.

Assistimos ao descentramento do auto-retrato e ao surgimento, diríamos, do alo-retrato ou alter-retrato, nos limites da auto-reflexividade. Pela fragmentação do rosto/corpo pela refiguração ou ficcionalização do próprio, pela desfiguração mesmo do rosto ou do corpo, pela mumificação, travestimento ou mascarada, pela animalidade, o visceral, confrontamo-nos com o descentramento do sujeito, no limite da auto-representação: desfiguração; devir-monstro; inumano. Porque um corpo é um limiar, é uma forma; é matéria; é um impenetrável que desde logo desaloja qualquer inconfessável ilusão de interioridade, a qual, no rosto, se marca pelo olhar, pela condensação que este sempre operou na auto-representa- ção, de incluir, de conter ao mesmo tempo um exterior de um interior. Trata-se,

globalmente, na experiência do auto-retrato de final de século, do questiona- mento dessa identidade ilusória, alienante e identitária. Neste campo, dir-se-ia do auto-retrato o mesmo que Lacoue-Labarthe (1979), a propósito da arte: “se a arte não existisse, nem sequer poderíamos questionar até à vertigem, o abismo do Mesmo”.

No documento Culturas do Eu (páginas 125-130)