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Características catóptricas da imagem especular

No documento Culturas do Eu (páginas 114-117)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

1. DISPOSITIVOS DE REFLEXÃO

1.2 Características catóptricas da imagem especular

Várias são as propriedades inerentes à imagem especular. Do ponto de vista semiológico, já no século XVII, os filósofos de Port-Royal consideraram a ima- gem reflectida um signo natural da coisa representada. Essa naturalidade é con- ferida pela simultaneidade da presença do representante e do representado, na representação, o que não acontece com inscrições, capturadas ou artificiais que se substituem ao representado, funcionando na sua ausência, indiciais, por exem- plo. Essa é uma das questões que coloca o signo pictórico precisamente no séc. XVII, em que o espelho se divulga a partir de Veneza para invadir os salões e salas mais majestosas da Europa: as Galerias dos Espelhos. O espelho, como assinala Eco, não é produtor, só por si, de uma função sígnica mas, enquanto operador mimético, pode ser investido de semiose. Neste sentido, qualquer imagem espe- cular é simples ocorrência sem nunca ganhar o estatuto de tipo. Ora, para haver signo e semiose é necessário uma mediação de carácter universal, isto é, uma relação entre tipos (1989: 30). O espelho, sublinhe-se, erige a presença como um incontornável do processo de reprodução. A presença do representado à repre- sentação é uma constante, instaurando assim, por outro lado ou por isso mesmo, uma idealidade da representação, dada a inigualável similitude que ele oferece entre ambas as instâncias.

Além disso, considera-se, normalmente, que o espelho introduz uma inversão dos mecanismos ópticos da visão já que, através dele, o olhar não se dirige para a frente mas, digamos assim, é reenviado para trás. É que a reflexão não assenta na transparência, mas na opacidade. Neste sentido, e por oposição à janela, disposi- tivo vítreo, o espelho funciona como dispositivo de “decepção do real” (Nazaré, 1997: 8), dado que impede o olhar em frente, o atravessamento vítreo, a trans- parência, em suma, para operar um reenvio do sujeito face a si mesmo, desven- dando aquilo que lhe é vedado – a sua imagem própria. O carácter deceptivo do espelho advém do facto, passado despercebido geralmente, de o espelho contra- riar a direcção comum do olhar. O olhar dirige-se sempre para a frente do corpo e os dispositivos vítreos, da janela às várias lentes funcionando como próteses do olhar, são todos eles direccionados da mesma forma. O espelho, pelo contrário, funciona como obstáculo à visão recta ou frontal, embora, entendido também como prótese ocular (Eco, 1989), ele dê a ver aquilo que estava oculto, que sempre

está oculto para o sujeito: o seu próprio corpo e o limite deste relativamente ao meio circundante. O espelho permite a visibilidade da ex-cena pelo facto de ocul- tar aquilo que se daria a ver, sem mais, ao olhar. Isto é, se uma porta, em vez de vidro, for constituída por um espelho, ela não permitirá a visão do que está para além dela mas, antes, a visão do que ficou para trás do observador, do espaço de que ela é limite e fronteira. A reversão da visão explica a ideia de que o espelho inverte a perspectiva, invertendo até a própria postura do corpo – corpo invertido. Umberto Eco dá de espelho a seguinte definição: “Entendemos por espelho plano uma superfície que fornece uma imagem virtual, direita, virada (ou simétrica), especular (de dimensões iguais às do objecto reflectido), […]” (1989: 14). Como o semiólogo desde logo assinala, do ponto de vista catóptrico, o espelho não inverte a imagem, isto é, não modifica a posição do lado direito do corpo relativamente ao lado direito do modelo nem o troca com o lado esquerdo. O que se passa, é que a imagem reflectida se sobrepõe exactamente ao corpo reflector, como se ambos estivessem ligados indissoluvelmente pelo tacto, pelo toque. A coincidência é per- feita entre as mãos – esquerda e direita – se aplicadas sobre a superfície reflec- tora. Justamente, o que se passa é que a imagem não sofreu nenhuma inversão de modo a recolocar a esquerda na esquerda e a direita na direita. Tal característica catóptrica é designada por enantiomorfismo, isto é, uma correspondência, ponto por ponto, do modelo e da imagem. A propriedade enantiomorfa (enantia – con- trário) designa esta aparente inversão morfológica ou topológica; equivalente, na linguagem, ao palíndromo, ex: “Roma me tem amor” ou, um exemplo francês: “Etna lave dévalante”.

U. Eco fala de “absoluta congruência” entre ambas as entidades, imagem e corpo. O exemplo para o qual remete é o do mata-borrão. Na verdade, a tactili- dade aqui invocada tem muito de indicial e por isso é possível aproximar os dois fenómenos. Trata-se de impressões “in atto” (1989: 17) porque a contiguidade pres- supõe esse momento de presença.

Por outro lado, para Sabine Melchior-Bonnet, especialista deste dispositivo, há uma espécie de “dislexia originária”. É que a imagem no espelho não é uma imagem qualquer, é “física e analógica” (1994), relativamente ao objecto. Podere- mos fazer corresponder estas propriedades à tipologia peirciana do signo e dizer que a imagem especular é, ao mesmo tempo, icónica e indicial. Daí o seu estatuto híbrido: “icónica, já que é mais semelhante que qualquer outra imagem, mas indi- cial já que é fisicamente determinada como traça material de um fluxo fotónico”; explica Michel Thévoz, autor que se dedica também à análise da imagem espe- cular, prosseguindo: “A singularidade do reflexo deve-se portanto à subtil inter- ferência entre a contiguidade indicial própria à irradiação luminosa e o intervalo

representativo próprio da imagem” (1996: 25). Quer dizer que, para que a imagem especular ocorra, é necessário a existência face a face, em simultâneo, do modelo que assim provoca a sua imagem. Por isso, o fenómeno especular apresenta sem- pre a simultaneidade da presença do modelo e da imagem, o que não acontece com a fotografia, o cinema e qualquer imagem de registo, por definição, sempre descontínua. De todas as imagens obtidas nos diversos regimes de inscrição – fotografia, pintura, etc. –, a imagem especular distingue-se pela sua incapacidade fundacional de se tornar uma imagem retida, a não ser, complexificação dos dis- positivos que essa mesma imagem presencial seja objecto de captura fotográfica ou outra.

Por agora, mantenhamo-nos face ao espelho: a facilidade com que me identi- fico à imagem do espelho advém da proprioceptividade, “quer dizer, de uma con- tinuidade quase táctil entre mim e a imagem” (1996: 26). Thévoz chama-lhe uma apreensão pré-visual, neste sentido em que é uma percepção quase táctil do corpo próprio. Há como que, paradoxalmente, uma “irreflexão” da imagem própria do corpo. Existe, pois, uma ambivalência no espelho, entre a imagem proprioceptiva, indicial, contínua, e a descontinuidade icónica alienadora da imagem enquanto tal. “Assim, continua o autor, o espelho reporta-me a um estado transitório da minha identidade, no entre-dois da intimidade fusional e da objectividade determinada como campo do outro”, que poderíamos aproximar das esferas de eu especular e de eu social de Lacan, ou de narcisismo primário e de narcisismo secundário de Freud. A imagem especular “reactualiza o hiato do quiasma origi- nário” (1996: 28). A exigência de uma mediação como dispositivo de apropriação do corpo próprio vem mostrar que a relação do sujeito com o corpo é complexa e não imediata, revelando-se a apropriação da imagem totalizante do corpo próprio sempre segunda relativamente à imagem de outrem, do corpo de outrem. Além disso, porque táctil e, em última análise, fusional, a imagem especular paira num intervalo ambivalente entre a imagem presencial, não-desprendida, subjectal, e a imagem registada, desprendida, objectal. Tanto Sabine Melchior-Bonnet como Michel Thévoz corroboram este entendimento da ambivalência do espelho, no sentido em que ele é sempre “tributário de um uso ideológico, social, cultural, his- tórico, fantasmático”; é a sua natureza de ilusão, de simulacro: “o espelho visua- liza a relação existencial do homem com a sua própria imagem, relação instável, oscilando entre os pólos do ser e do parecer, da objectividade e da subjectividade, da verdade e do fantasma, da intimidade e do colectivo” (Thévoz, 1996: 20). E esta consciência reflexiva tem no aparelho enunciativo o seu dispositivo por excelên- cia. O sujeito advém pela capacidade de se colocar nesse mesmo lugar de sujeito, isto é, de se colocar enquanto um eu.

Há ainda uma outra faceta da imagem especular que convém focar: ao des- velar, o espelho ocultará sempre ao sujeito uma parte de si, revelando-se essa, unicamente, na duplicação do movimento especular, em abismo. É que, apesar de devolver o que é invisível para o sujeito – a sua face, o rosto próprio – o espelho não revela, por si só, o lado posterior do corpo. Magritte chamou-lhe, por isso, a reprodução proibida, dado que ela é o ponto cego da imagem reproduzida. No quadro, Edward James, o pintor encena uma situação onde aquele que se vê ao espelho, de frente, aparece, nesse mesmo espelho, de costas, transgredindo assim o impossível da representação especular. O paradoxo deste espelho, segundo Jonathan Miller é que “o reflexo não duplica a figura, mas duplica a própria repre- sentação” (1998: 88), num efeito de mise en abyme, como condição da duplicação especular. Na verdade, a mise en abyme configura uma topologia de espaços encai- xados, em abismo. Nesta figura topológica e literária, da autoria de André Gide, desenha-se, por reflexo, a figura ou a cena, na própria figura ou cena que a con- tém, em encaixes sucessivos e teoricamente infinitos. Este procedimento é, ao mesmo tempo: a) uma reflexão – porque se trata de uma semelhança entre repre- sentante e representado; b) uma duplicação – da cena e da sua representação (ou representação da representação) – e, ainda, c) uma miniaturização – na medida em que o abismo será também o encaixe infinito da representação no interior da própria representação.

No documento Culturas do Eu (páginas 114-117)