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O mito de Epimeteu

No documento Culturas do Eu (páginas 177-181)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

2.8 O mito de Epimeteu

Tal como acontece nos dispositivos de reflexão com o Mito de Narciso, os dispo- sitivos de extensão podem ser, eles também, configurados numa narrativa fun- dadora da condição do humano, paralela à narrativa de Narciso. Protágoras conta a Sócrates e aos discípulos a fábula de Epimeteu e Prometeu, (cap. XI e XII) que vale a pena transcrever:

“Houve um tempo em que os deuses existiam mas não as espécies mortais. Quando o tempo que o destino atribuiu à sua criação chegou, os deuses

deram-lhes forma nas entranhas da terra com uma mistura de terra e de fogo e elementos que se aliam ao fogo e à terra. Quando o momento de os trazer à luz se aproximou, encarregaram Prometeu e Epimeteu de os fornecer e de atribuir a cada um qualidades apropriadas. Mas Epimeteu pediu a Prometeu para o deixar fazer a distribuição sozinho. ‘Quando eu acabar, virás exami- nar’, disse ele. Acordado o pedido, fez a distribuição e, ao fazê-la, atribuiu a uns a força sem a velocidade, a outros a velocidade sem a força; deu armas a estes, recusou-as àqueles mas imaginou para eles outros meios de conserva- ção; já que àqueles que alojava num corpo de pequena estatura deu asas para fugir ou um refúgio subterrâneo; para aqueles que tinham a vantagem de uma grande estatura a sua grandeza bastava para os conservar e aplicou esse procedimento de compensação a todos os animais. Estas medidas de precau- ção eram destinadas a prevenir o desaparecimento das raças. Mas logo que lhes forneceu os meios de escapar a uma destruição mútua quis ajudá-los a suportar as estações de Zeus; imaginou para tal revesti-los de pêlos espessos e de peles densas, suficientes para os preservar do frio, capazes também de os proteger contra o calor e destinadas, enfim, a servir, no tempo do sono, de coberturas naturais próprias a cada um deles; deu-lhes ainda como calçado, quer socas de chifre, quer peles calosas e desprovidas de sangue; em seguida forneceu-lhes alimentos variados segundo as espécies, a uns a erva do solo, a outros os frutos das árvores, a outros, raízes; a alguns deu mesmo outros animais a comer; mas limitou a sua fecundidade e multiplicou a das suas vítimas para assegurar a salvação da raça.

No entanto Epimeteu que não era muito reflectido, tinha, sem ter tomado atenção, despendido para os animais todas as faculdades de que dispunha e restava a raça humana a prover, não sabendo ele o que fazer. Neste emba- raço, Prometeu vem examinar a partilha; vê os animais bem abastecidos, mas o homem nu, sem calçado nem cobertura, nem armas e o dia fixado, em que era preciso trazê-los do seio da terra para a luz, aproximava-se. Então Prometeu, não sabendo o que imaginar para dar ao homem o meio de se conservar, rouba a Hefaísto e a Atena o conhecimento das artes com o fogo; já que, sem o fogo, o conhecimento das artes era impossível e inútil; e pre- senteou o homem. O homem recebeu assim a ciência própria à conservação da vida; mas não tinha a ciência política; esta encontrava-se com Zeus e Pro- meteu já não tinha tempo de penetrar na acrópole habitada por Zeus onde aliás prestam vigilância guardas temíveis. Infiltra-se portanto furtivamente no atelier comum onde Atena e Hefaísto cultivavam o seu amor das artes, rouba ao deus a sua arte de manobrar o fogo e à deusa a que é sua e presen-

teia com elas o homem e é assim que o homem pode procurar recursos para viver. Posteriormente Prometeu foi castigado, diz-se, do roubo que cometeu dada a falha de Epimeteu.” Platão (Protágoras, 1967).

Esta pequena fábula ilustra, no diálogo platónico entre Protágoras, Sócrates e os outros discípulos, a virtude, a justiça e a política, dons supostamente atri- buídos por Zeus ao homem através da mediação de Hermes. A leitura actuali- zada desta fábula inscreve nela uma outra questão, mais prosaica mas não menos importante, que é a questão da técnica e da natureza protésica do homem, natu- reza oxímora, diríamos, dado que desde logo ela incorpora tudo o que diz respeito ao arte-fício; é a arte tomada no seu sentido mais genérico, de competência prag- mática, de modus faciendi, um saber-fazer técnico.

O tratamento do mito de Epimeteu por Bernard Stiegler (1994) tem o mérito de trazer à discussão sobre o corpo a questão da técnica, dela alheada. Stiegler recen- tra a técnica na discussão sobre o humano. Segundo esta concepção, a invenção constante está inscrita na própria condição do humano já que este tenta colmatar essa falha fisiológica primordial figurada no mito grego. Para B. Stiegler, (2003: 36), “Platão pôs na boca de Protágoras um discurso quanto à proteticidade em geral e ao defeito do corpo” e, esse defeito ou falha marcará os humanos que não são propriamente imortais, daí terem de preservar e proteger a própria vida. É, por consequência, através da dotação técnica que Prometeu tenta remediar este esquecimento do irmão, esquecimento que evidencia a contingencialidade e fra- gilidade humana:

“Este esquecimento acidental, gerador de próteses e de artifícios, colma- tando um defeito de origem, é igualmente a origem da hipomnésia, que Platão oporá mais tarde à anamnésia da origem. Por oposição à metafísica em Fedro, o mito da falta em Epimeteu diz que não há na origem senão um defeito originário de origem, e que o homem, sem qualidade, não existe senão por defeito: ele torna-se.” (2003: 37)

Esta revelação coloca o humano na sua condição de faltante, falta que é ori- ginária; e só nessa condição ele se volta para a técnica. A técnica é reveladora, não de uma condição de superioridade, mas de uma falha de origem. Prome- teu aparece então como o deus da técnica, que dota o homem do seu carácter proteico ou protésico, por um lado, mas também da sua dimensão gregária, por outro. Nesta última condição está contida a segunda dimensão significante do mito de Epimeteu. Com o suplemento das artes, o homem sobreviveu e defen-

deu-se mas, no início, vivia isolado. Para se defender dos animais selvagens, teve de se reunir e refugiar-se fundando cidades, continua Protágoras, apesar destas lhe trazerem ainda outros problemas, como seja, as lutas internas. Mais uma vez, para remediar este mal, Zeus envia então por Hermes a ciência política, uma arte de viver em comum. A proteticidade humana é pois acompanhada da etnicidade que permite ainda uma economia da técnica, como o demonstra Leroi-Gourhan. Técnica e étnica formam o verso e o reverso dessa dimensão de exterioridade que caracteriza a origem do humano. Se alguma diferença se marca nesta origem, ela coloca-se antes relativamente à natureza divina, i. é, aos deuses, no que eles cons- tituem de dimensão imortal do vivo. A diferença é, antes, em relação ao divino. E ela marca-se pela finitude do humano, que é a sua mortalidade.

Nos dois mitos, o de Epimeteu e o de Prometeu, o primeiro é duplamente esquecido, esquecido na narrativa do mito, mas esquecido ainda como caracterís- tica que lhe é própria: “a língua corrente grega enraíza o saber reflexivo nessa epi- metheia, quer dizer, na tecnicidade essencial que é a finitude” (Stiegler, 1994: 194). A proteticidade como marca distintiva do humano é também a sua suplementa- ridade, daí que Stiegler continue: remetendo esta condição faltante do humano para a formulação de Musil “O homem é sem qualidades, não predestinado: deve inventar, realizar, produzir qualidades que nada indica que uma vez produzidas elas se realizem, que se tornem suas mas antes as da técnica” (1994: 201). Quer isto dizer que a morte é a própria condição humana que se exprime nessa necessidade protésica. Mas, ligada à falta está também uma certa insouciance, uma inconsciên- cia que é a própria epimetheia como defeito de origem. Então, o político, tal como o técnico enxertam-se nesta ausência fundadora e devem, segundo o autor, ser lidos nesta sua condição.

A técnica que aparece a colmatar a falha não pode entender-se como a soma do inorgânico ao orgânico, como simplesmente o tal suplemento do orgânico já que ambos criam uma dinâmica específica, a qual precede a própria dinâmica social (relação entre a tecnociência e a cultura). É na obra de Leroi-Gourhan que se encontra essa ligação entre a técnica e o corpo: “entre córtex e sílex”. O paleon- tólogo falava já da técnica como processo de exteriorização ou de exsudação do corpo. O utensílio entendido como secreção do corpo e do cérebro que desem- boca, nos nossos dias, “no sistema nervoso central (com a electrónica) e na ima- ginação (com a especialização dos produtores industriais de imagens e de sons tele-difundidos)” (Stiegler, 1996: 88). Para além da dimensão étnica da técnica, que explicaria as diferenças, não através de distinções biológicas ou genéticas mas sim de desenvolvimentos específicos dos utensílios, ela permite ainda explicar um outro salto, o de uma organização comum das percepções. Assim, da fotogra-

fia, do registo sonoro, etc., que organizam em comum a visão, a audição, transfor- mando o órgão sensorial, individual e contingencial, num órgão colectivo: o olho/ olhar colectivo, o ouvido/audição colectiva, etc. Estes dispositivos conferem ao sujeito uma capacidade de viver a experiência sensorial de outrem, que acumu- lam com ou substituem pela do próprio. O que a prótese vem permitir desde logo, e que se agudiza ao mais ínfimo detalhe, é uma transversalidade da carne (Mer- leau-Ponty havia já assinalado a impessoalidade da carne, conferindo-lhe um estatuto neutro, anónimo, inter-relacional, como vimos), do horizonte perceptivo ou afeccional. Na verdade, a inesgotável parafernália de dispositivos de media- ção sensorial permite hoje um atravessamento transindividual da experiência, uma apropriação e anonimização da experiência e com ela do corpo. É, pois pelo inorgânico acoplado ao orgânico, à corporeidade, que se dá um alargamento inco- mensurável da experiência sensorial, partilhada e atravessada pela experiência colectiva e anónima, alheia. Esta transubjectivação potencia a individual, sem lhe retirar tão pouco a sua singularidade acontecimental. O suplemento, por sobre a falta, dá-se como excesso.

Simondon já o havia referido: não há procedimento de individuação que não passe por um processo de transindividuação. Ora, é nesta dimensão gregária que, na perspectiva de Stiegler, está contida a segunda dimensão significante do mito de Epimeteu: Não bastou ao humano a aquisição da técnica porque, para se defender dos animais selvagens e de todos os perigos envolventes, teve de se reunir e refugiar-se fundando cidades.

No documento Culturas do Eu (páginas 177-181)