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O ponto de vista semiótico

No documento Culturas do Eu (páginas 145-148)

DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO

5 Panofsky, citado por Baptista Pereira (1998: 199) É ainda apoiada em Panofsky a referência ao

1.11 O ponto de vista semiótico

Aparentemente, a fotografia prolonga o efeito reflexo no tipo de imagem que produz. Poder-se-ia assim pensar que as imagens fotográficas estariam do lado das imagens especulares, dada a sua capacidade de reprodução “fiel” do modelo, isto é, dada a iconicidade de ambas. Tal como o espelho, a fotografia alimenta uma similitude com o representado, honrando a ideologia da representação e da mesmidade. É pelo seu lado icónico que ela foi analisada durante algum tempo. É essa iconicidade que permite a identificação do sujeito, que tem uma

função unificadora do eu, tal como a imagem reflectida no espelho, ou o retrato romântico que possui uma dimensão comemorativa. Ser é parecer e parecer é ser, duplicidade da relação identificatória criadora de uma imagem-de-si estru- turante do próprio processo imaginário. Neste regime de leitura, encontram- -se os álbuns individuais ou de família, tão caros à burguesia desde o século XIX, celebrando, por cima das aporias temporais, a imperceptível passagem/ paragem do tempo. A projecção da ideologia identitária na análise da fotografia remete para essa mesma função comemorativa que ela exerceu como substi- tuta da imagem pictórica. Na verdade, esta aproximação entre imagem pictó- rica e imagem fotográfica só é possível mantendo o mesmo quadro de referên- cia, o da captação identitária. Daí que alguns teóricos do dispositivo fotográfico tendam a estabelecer uma diferença na fotografia, entre significação e referên- cia. Nesse sentido, a fotografia, ao contrário da pintura, ao evidenciar a coisa – mesmo que humana – apaga ou emudece a sua significação (P. Dubois, Jean Marie Schaeffer, V. Flusser).

Mantendo-se o processo de identificação, há, no entanto, uma contínua modi- ficação do mesmo em já outro. Este é o estatuto paradoxal da imagem fotográfica. Ao substituir o retrato como representação identificatória, esta imagem muito especial está sujeita à erosão do tempo, dada a sua imediaticidade, a sua colagem inexorável ao momento e ao momentâneo. Também a imagem especular releva desta momentaneidade. Mas o que se passa com a imagem fotográfica é que ela será sempre incoincidente com o presente da observação. O observador, neste caso, o sujeito que assim se olha e se confronta com a sua imagem, está dela des- fasado no tempo e no espaço. Para sempre. Dessa dimensão espectral da imagem fala Barthes, a propósito daquelas fotografias que lhe são muito próximas, fami- liares: “quando a meditação (a sideração) constitui a imagem em ser destacado, quando faz disso objecto de uma fruição imediata, nada mais tem a ver com a reflexão, mesmo sonhadora, de uma identidade;” (1975: 5). Na verdade, o que a fotografia transporta para o encontro com o espectador (mais do que observador) é da ordem da memória, da ordem de uma exterioridade mesmo se própria, o que não acontece com a imagem especular, tão dependente que está do próprio corpo e da sua pose. A fotografia, pelo contrário, tem algo de espectral, que Bar- thes sublinha e formula como “regresso do morto” (1981: 24). A importância da semiologia barthesiana numa teoria da identidade fotográfica consiste neste des- centramento que opera da relação icónica para a relação indicial que poderíamos formular como o descentramento do dispositivo técnico do campo espacial para o campo temporal. A semelhança, digamos que, é absorvida pela contiguidade, isto é, pela referenciação (1981).

É assim que a encara Emídio Rosa de Oliveira no seu ensaio sobre este dis- positivo técnico: “Toda a fotografia é o resultado de uma marca/ empreinte física depositada numa superfície sensível pelas reflexões da luz” (1984ª: 56). A partir daqui, o autor desenvolve o carácter indicial da fotografia como dispositivo de captura citando P. Dubois, “onde a semelhança se apaga ‘face à imperiosa necessi- dade da contiguidade’ ” (idem: 56). A dimensão indicial, tal como ela nos é apresen- tada por E. R. Oliveira, através de Barthes ou de Dubois, não hipostasia de forma nenhuma uma continuidade, ou mesmo uma proximidade que a remeteria para a imagem especular. A contiguidade que indicia a dimensão impressiva do acto fotográfico, particularmente visível na fotografia analógica e na sua desnaturali- zação por efeitos de solarização, implica, isso sim, uma distância (ibidem: 57) e até uma durée. Distância e captura exercem a sua função poiética no acto fotográfico. Face à fotografia de si, o sujeito, ao mesmo tempo espectador e objecto de cap- tura, sentirá sempre esse desfasamento de “ser eu e já outro”. À fotografia como dispositivo de retenção aplicar-se-ia plenamente esse abismo do sujeito que a linguagem tão bem conhece: “je est un autre” do poeta Rimbaud. Destinada à fixação do momento, no fluxo contínuo do tempo, este dispositivo confronta o sujeito com a sua passagem, com a dissociação constante em que este se encon- tra face à sua imagem. As técnicas de registo e de fixação, quer da imagem quer do som, instauram irremediavelmente algo que é da ordem da contra-natura: o próprio enquanto fora de si-mesmo. Até ao aparecimento das técnicas de registo, voz e figura eram insaissisables, no sentido de inapreensíveis. O aparecer irradiava de dentro para fora. Da essência à sua aparência ou aparição. A partir da invenção do registo, fono- ou foto-gráfico, o sujeito vê-se confrontado com um fora que lhe é devolvido mas dessincronizado, i. é, em diferido. A imagem (pictórica) deixa de remeter para a idealidade intemporal do sujeito, para a sua suposta essência, para passar a designar um momento, fragmento de tempo, sempre já passado, sempre momentâneo, sempre evanescente. Assim da voz, esse sopro inefável e evanes- cente. A fotografia, como todas as outras técnicas de registo, instaura-se nesse paradoxo que é a fixação do instante, essa aliança entre o efémero e o registo, que deixa de ser da ordem da intemporalidade para marcar bem a sua passagem, nessa mesma resistência.

Toda uma outra vertente da imagem pode ser analisada, a qual, ao contrário de uma dependência iconológica, se inscreve numa dependência indicial, mais ancorada no real do corpo do que na sua imagem. Assim, por exemplo, na tradi- ção cristã, o verdadeiro ícone (de Cristo) é, não uma representação puramente icónica, por similitude, mas antes um rasto, um vestígio do ter estado lá do corpo: Verónica.

Esta imagem a que poderíamos chamar fotográfica avant la lettre estabelece, pelo seu carácter paradoxal, uma viragem na própria economia das visibilida- des religiosas. Didi-Huberman fala mesmo da instauração de um novo regime de visibilidade que seria um compromisso entre a demasiada visibilidade dos deuses pagãos greco-latinos e a invisibilidade total do monoteísmo hebraico. O regime cristão situar-se-ia então entre uma iconoclastia rígida e uma tendência idólatra pagã propícia à determinação ao mesmo tempo de presença e representacional da imagem (2008: 76/77).

A inscrição supera, através da contiguidade, a própria representação instau- rando-se com uma mais-valia veridictória relativamente ao ícone. É que o índice é sempre já ocorrência. E esta, particular, dado que o registo se impregna de real. A impressão fotográfica está, para a ideologia da presença, impregnada pelo instante.

No documento Culturas do Eu (páginas 145-148)